Diário do lado de cá - V - Entrevista com um neonato, parte 5 - Delirium Macabre
- E quanto às outras crianças? Você disse que o lugar era cheio de delirantes.
- Bom, havia várias... É muito difícil para crianças renascidas escapar do delírio. A chance de uma delas não ser mais louca do que um xamã do deserto depois de tomar um chá de seus cogumelos é basicamente a mesma chance de um legionário tratar um favelado com carinho!
"...Uma outra minoria, no entanto, possui memórias vívidas de sua vida passada, ou pelo menos diz as possuir: São as chamadas delirantes, vítimas de um dos mistérios mais curiosos que se tem notícia do lado de cá: O Delírio da Morte, ou "Delirium Macabre".
A consistência das memórias dos Delfínicos permitiu à comunidade acadêmica de Xibalba, a Grande Biblioteca, criar e catalogar uma espécie de coleção de relatos do lado de lá, assim trazendo conhecimento através das barreiras da morte e armazenando-o aqui. Esse cânone enciclopédico institucionalizado define como realmente era o "mundo do lado de lá" através dessa colcha de retalhos de memórias individuais.
No entanto, essa definição institucionalizada muitas vezes é desafiada: Muitos renascidos simplesmente não concordam com o relato oficial do lado de lá, ou trazem relatos extremamente conflitantantes em relação ao da maioria dos delfínicos: Pessoas que dizem vir de países que nunca existiram, que se comunicam em idiomas que nenhum delfínico nunca ouviu falar, que juram que certos fatos absurdos aconteceram na História, ou serem profetas reencarnados, dentre outros vestígios de loucura.
São tratados como loucos na sociedade, e uma boa parte realmente é extremamente excêntrica ao ponto de ser totalmente impossível manter qualquer interação social, e terminam isolados em vielas da cidade, das favelas ou mesmo em ilhas próximas.
Essa loucura é combustível para um dos maiores debates entre os intelectuais da Biblioteca: Qual a natureza dessa loucura? Seriam eles já loucos antes da morte? Seria a morte a causa dessa loucura? Seria o renascimento? Ou talvez algum tipo de choque por estar em um novo mundo? Porque apenas poucos são afetados?
Esse debate possui até mesmo vertentes mais radicais e não muito populares como o Abrangismo - A filosofia que defende que os delirantes não estão delirando, mas falando a verdade, e são na verdade originários de outros mundos do lado de lá (ou que realmente viveram o que dizem), e são reprimidos pela sociedade "Reencarnocêntrica" (isso é, que concede maior status aos renascidos "normais") por seus relatos serem alienígenas demais - e o Perspectivismo, que defende que, como nossa visão do mundo pré morte é feita na verdade de meros relatos que se encaixam, os relatos delirantes são perspectivas preciosas pois mostram aspectos desse mundo que talvez tenham sido ignorados pelos oráculos em nossa vida passada - e talvez essa insanidade esteja apenas expressando fatores insanos do lado de lá, que são tão dignos como qualquer outro"
Zara se calou um pouco. Essa ironia não era cômica dessa vez, mas trágica, e continuou:
- Coitadas... Elas assustavam os outros, sabia? Era impossível se relacionar com elas, e todos nós as evitávamos por puro medo....
Zara abriu o pote de ervas e as cheirou, averiguando-as. Satisfeito com o cheiro, colocou-as dentro da pequena chaleira de ferro, a encheu com agua da pequena torneira, também de ferro, e a colocou sobre o fogo.
- Mas como elas eram? Que tipo de comportamento insano elas tinham? - Perguntou Orfeu.
- Elas eram como meras obsevadoras - Respondeu seu amigo, que depois de apoiar a chaleira no fogo, virou-se, apoiando-se de costas no pequeno armário ao lado da pia - Quietas, andando sem nenhum sentido, ficando horas paradas, olhando de olhos abertos para as coisas, ou para o nada, ou para as outras crianças, enquanto fazíamos nossas atividades corriqueiras de crianças e adolescentes, sem expressão... - Parou um pouco, e continuou - Elas simplesmente nos observavam.
Ele fez uma pausa, enquanto olhava para baixo, e Orfeu quebrou o silêncio, brincando:
- Olhando para o nada, como você está fazendo agora?
Zara sorriu levemente:
- Ah, meu amigo, você não sabe o que era aquele olhar... Não era o olhar de alguém que está pensando coisas normais, isso eu posso dizer... - e continuou, sem sair de sua pose - Dificilmente elas abriam a boca para falar algo, viviam quietas, observando assustadoramente a tudo.
- Elas não se comunicavam?
- Às vezes elas simplesmente olhavam umas para as outras, fixamente, por longos períodos. Era como se estivessem conversando com a mente - Respondeu Zara, sério.
Orfeu estava incrédulo:
- Você está de brincadeira? Elas se comunicavam telepaticamente?
Zara cruzou os braços e deu de ombros:
- Não sei se é isso que faziam, mas com certeza era o que parecia.
Ao que Orfeu rapidamente respondeu, mantendo-se incrédulo;
- Isso é impossível!
- Não sei, talvez. Elas reconheciam umas às outras como semelhantes, isso dava pra perceber, e não é demais esperar que seres humanos se comuniquem com seus semelhantes, não?
- Bom, talvez elas se comunicavam de formas sutis que vocês não percebiam.
Zara olhou para Orfeu e disse com autoridade:
- Você não está visualizando a bizarrice da situação, Orfeu. Eu presenciei mais de uma vez, em meus momentos de insônia nos nossos grandes alojamentos repletos de camas, alguns vultos sentados na cama ao invés de deitados - E aumentava o grau de seriedade conforme avançava - Eram elas, olhando umas para as outras, fixamente, alternando o olhar entre si.
Orfeu franziu as sombrancelhas, começando a acreditar, e Zara continuou:
- Conforme elas se olhavam nessa sessão, algumas voltavam a dormir, e outras se levantavam, como que se tivessem sido chamadas para esssa conversa.
- Bem... No mínimo assustador - confirmou finalmente Orfeu, que havia percebido uma leve mudança no tom de Zara que o dizia que essas memórias eram realmente assustadoras para o neonato, mesmo após todos esses anos.
Zara saiu de sua pose finalmente, chacoalhando essas memórias de volta para seu lugar, e checou a água fervendo:
- Você está prestes a tomar um chá extremamente forte e saboroso, feito de uma bela mistura de ervas do deserto!
- Ervas do deserto, ein - indagou Orfeu, que segurava o lápis nas mãos sem escrever nada - Você não trouxe nenhuma das ervas ilegais para cá, não é?
Zara riu:
- Desde quando você se importa com legalidade? Mas não, não se preocupe, essas não são ervas de Ea, eu não iria te drogar assim se quisesse continuar tendo uma conversa bem estruturada com você!
Enquanto Zara pegava duas canecas no armário e as servia de uma dose do chá, que era vermelho como vinho, Orfeu retomou o assunto:
- E como vocês viviam com essas crianças, sendo que elas eram tão excêntricas?
- Nós não mexíamos com elas - Respondeu prontamente - Nós as evitávamos completamente, não nos aproximávamos, e fugíamos delas quando elas se aproximavam. Simples assim. Nós as chamávamos de fantasmas, e quando mais distante de um fantasma, melhor.
- Então você tem medo de fantasmas? - Disse Orfeu, e riu provocativamente - Você já não era um cético desde a infância?
Zara respondeu, enquanto trazia as duas canecas, diferentes, para a mesa, ferventes, uma em cada mão, e colocou uma na frente de seu amigo:
- Meu amigo, a questão não é acreditar em fantasmas, mas sim viver com eles, e vê-los olhando para você com olhos vazios, todos os dias. E elas não eram um mito, uma lenda. Eram crianças de carne e osso. Isso é muito mais assustador do que qualquer fantasma imaginário que você possa imaginar.
Orfeu se aproximou da caneca, cheirou o vapor e agradeceu, satisfeito com o cheiro:
- Nada mal ein, obrigado!
- Não precisa agradecer, as ervas já existiam, assim como a água, tudo que eu fiz juntá-las! - e sorriu satisfeito.
Orfeu tentou experimentar o chá, mas estava muito quente, e queimou levemente seu lábio superior. Em meio à expressão de dor disfarçada, colocou a caneca de volta à mesa e decidiu esperar o líquido esfriar um pouco mais. Zara notou o acidente e debochou:
- Cuidado amigo! Ou a morte te fez esquecer como se toma chá?
- Não foi a morte, mas sim as histórias dessa sua vida infantil bizarra! - Respondeu.
- Ah, então a culpa não é da morte, mas da vida? - Riu novamente Zara, e tentou beber o chá. Realmente, estava muito quente.
Passado o choque, Orfeu continuou:
- Bom, elas parecem ser muito diferentes dos adultos delirantes que eu conheci - Notou Orfeu - Daqueles que ficam nas ruas, dizendo baboseiras e groselhas sem sentido, proclamando o apocalipse, mexendo com as pessoas...
- Essas são mais parecidas com as pessoas religiosas, não? - Respondeu Zara, rapidamente, e riu inocentemente - Talvez a loucura infantil seja algo diferente. Mais pura, menos corrompida... Talvez elas tenham visto, sentido ou pensado algo durante o renascimento que os adultos não conseguem, e isso faz com que elas sejam assim... Fora da realidade ao ponto de serem basicamente outra espécie de pessoa, com... características não humanas... - Zara hesitou um pouco antes de dizer essa palavra. Sua intenção era dizer "capacidades", mas ele percebeu que essa palavra não era tão apropriada
- O que mais elas faziam? - Continuou, investigando, Orfeu.
- Elas desapareciam, simplesmente.
- Desapareciam? - Orfeu se surpreendia cada vez mais - Como assim? - Zara estava provocando sua curiosidade de forma muito intensa com esse diálogo.
- Simplesmente se levantavam e saíam andando, e nunca mais eram vistas. Bom, uma boa parte das crianças acabava fugindo eventualmente, inclusive eu, mas com elas, era diferente, havia algo de místico e inexplicável na forma como se dava... - Respondeu Zara, olhando para baixo, buscando as memórias.
Havia uma certa hesitação no tom de Zara, como que duvidando dessas memórias, ou tentando explicá-las melhor para si mesmo: Zara sempre fora o cínico cético, e, ao ouví-lo falar sobre misticismo, Orfeu não pode deixar de sentir que seu amigo já havia tentado convencer a si próprio de que outra explicação pode ser plausível, e acabou desistindo.
Depois de uma pausa, Zara encontrou as memórias e continuou:
Elas se levantavam da cama durante a noite e... - Parou novamente, surpreso com as próprias experiências, enquanto olhava para o nada.
- O quê?
Zara saiu de seu transe do passado e levantou os olhos para Orfeu:
- Levantavam das suas camas e saíam andando, como fantasmas. E desapareciam.
- Como assim, desapareciam? - Orfeu disse com um toque involuntário de descrença
- Elas simplesmente nunca mais eram vistas. As vezes, de manhã, simplesmente haviam menos delas do que antes. Muitas das crianças tentavam escapar, algumas conseguiam, algumas voltavam... Mas elas... Elas simplesmente sumiam. - Zara continuou, com um medo nos olhos que dava uma enorme ênfase em sua história - Elas se levantavam da cama, às vezes naquelas assembléias telepáticas, às vezes sozinhas, de forma repentina, como se tivessem ouvido um despertador, e saíam andando, lentamente.
- E nunca mais eram vistas?
- Nunca mais. Nem pela cidade. Elas simplesmente iam para algum lugar escondido, provavelmente. Ou inacessível... Era como se a hora delas tivesse chegado.
- A hora delas? - indagou desacreditado Orfeu - A hora de quê?
- Não sei - Zara respondeu.Ele olhava para o nada, perdido e inconsolado. Orfeu supôs que havia alguma memória que o estava abalando, algum trauma, e hesitou um pouco antes de investigar mais. Seria cruel com o seu amigo investigar essas memórias traumáticas? Certas coisas são melhores se externalizadas, concluiu, e no fim justificou com isso a sua curiosidade, cedendo a ela e considerando que a coisa mais humana a se fazer seria sim investigar:
- E é só isso? Não sei, tem algo de estranho em ter certas crianças tão estranhas no meio de várias outras, todas sozinhas, perdidas e traumatizadas, e essa interação se dar de forma tão... pacífica. Nunca havia conflito?
Zara recuperou aos poucos sua postura, mas não olhou para Orfeu. Ao invés disso, trocou o olhar baixo por um olhar alto, para o teto da pequena cozinha, e disse:
- Sim, com certeza. Todos tinham medo delas, e era uma regra não verbal não se aproximar delas. Um tabu, digamos, devido ao número de superstições que tínhamos em relação a elas: Elas eram fantasmas, afinal. No entanto, crianças têm sempre um quê de iconoclasta, não?
- Eu imagino que ter coragem de mexer com elas era uma espécie de forma de adquirir status, ou um ritual de passagem?
- Na mosca, meu caro. Você realmente é um intelectual. E os fantasmas não gostavam nada disso.
- Como era isso? O que acontecia? - Orfeu estava cada vez mais curioso.
- Bom, vejamos. De vez em quando alguém era desafiado a gritar com elas, debochá-las, agredí-las, quebrar suas coisas... Mas as crianças que faziam isso eram as verdadeiras loucas, na minha opinião,das mais perigosas. São loucas como essas que dão origem à violência quando crescem, ao estado e à polícia legionária... mas enfim... - Zara não queria sair do assunto e entrar em mais um de seus discursos contra a autoridade.
- Elas não respeitavam o tabu? - Indagou Orfeu.
- Todo tabu convida à transgressão, para os ouvidos certos, não? Uma pena que essa força iconoclasta infantil seja direcionada para lugares tão errados... Tanta energia, sem direção... - Zara respondeu, decepcionado, e continuou - Elas sempre recebiam as agressões verbais passivamente, como se não pudessem entender o que estava acontecendo, com olhares perdidos - Lembrava Zara - Então não demorava muito para as coisas partirem para algo físico. Uma vez ou outra alguma delas era agredida. Alguns achavam divertido a forma como elas caíam, moles, como cadáveres. Os órfãos que não eram perturbados a esse ponto, no entanto, tinham calafrios.
- E como elas reagiam?
- Elas simplesmente devolviam com um olhar. E aquele olhar era tão poderoso, que todos que o recebiam...
Orfeu não podia aguentar isso, e nesse ponto, já não duvidaria de nada:
- O que havia naquele olhar? - Pergutou
- Todos se arrependiam - Respondeu Zara, voltando ao presente - Todos. Eles nem sempre admitiam na hora, preferiam gozar um pouco do status de corajoso que haviam recebido, mas não havia felicidade naquele proveito. No fundo, todas preferiam não ter enfrentado os fantasmas. Aquele olhar era tão... - E parou.
Orfeu percebeu algo suspeito nessa descrição, e afirmou:
- Você já recebeu esse olhar.
- Sim... - Zara começou a contar - Uma garota... o nome que ela recebeu em seu batismo foi Iamat... Ela devia ter cerca de 12 anos, pelo menos essa era a estimativa que fizeram quando ela foi trazida. Eu tinha uns 13, e ja nao aguentava mais aquele lugar. Já tinha colocado na minha cabeça que meu lugar não era lá e que eu devia fugir, mas eu demorei mais alguns anos para realmente concretizar esse plano. Eu não devia me assustar com uma menininha mas... ela era terrível... - Seus olhos encontraram os deu Orfeu, e seus lábios esboçaram essa última palavra com um traço mais realçado - Ela era bonita, loira, pequena, e parecia um fantasma de tão branca e magra. Você sabe o que eu quero dizer se eu disser "beleza terrível?"
- Acho que posso imaginar - Respondeu Orfeu, tentando ser compreensivo enquanto montava essa imagem em sua mente. Imaginou uma pessoa tão bela que assustava, e se surpreendeu ao perceber que isso não é difícil de imaginar.
- Pois é isso que ela era. Terrivelmente bonita. Fantasmagoricame bonita - Zara continuou - as crianças não afetadas pelo delirium macabre se portavam e se vestiam normalmente, e as garotas, claro, se arrumavam e penteavam seus cabelos. Mas as garotas delirantes tinham cabelos soltos, despenteados, e ela tinha longos cabelos loiros e lisos caídos na frente do rosto, escondendo-o.
Orfeu estava impressionado com a descrição, que o fez imaginar uma garota cliché de filmes de terror do lado de lá. Voltando mentalmente à razão dessa lembrança - o olhar de retribuição dos fantasmas, decidiu ir direto ao ponto, e não sabia se devia perguntar o que estava pensando, pois já estava decepcionado com uma das possíveis respostas,mas acabou perguntando:
- Você mexeu com ela? Você foi desafiado? - Perguntou, cuidadosamente e sério.
- Não, não foi isso - Respondeu Zara, e Orfeu suspirou internamente, aliviado por saber que seu amigo não foi uma das crianças perturbadas - Mas ela me deixou curioso.
- Curioso? - Indagou Orfeu, com ênfase.
- Sim... Ela... desenhava - Zara respondeu pausadamente - Ela andava lentamente, como os outros fantasmas, mas sempre carregava um lápis e um caderno. Ela subia em uma árvore com uma delicadeza inacreditável, como um esquilo, rápida demais para uma fantasma.
Orfeu percebeu que os olhos de Orfeu brilhavam, mesmo sendo simultaneamente tristes e arrependidos. O renascido decidiu testar o chá novamente: Estava quente, porém em uma temperatura boa para beber. No entanto, o clima quente daquela tarde de Xibalba o desmotivou a tomar naquele momento, e ele decidiu esperar um pouco mais, enquanto Zara continuava, perdido em suas memórias:
- Ela subia naquela árvore rapidamente, e sentava sempre no mesmo galho. De lá, ela observava tudo com olhos bem aabertos, quieta, mas ela fazia algo que nenhum outro fantasma fazia... Ela desenhava.
- O que ela desenhava?
- Exatamente, aí que estava a minha curiosidade. Ela possuía uma visão panorâmica, e seu olhar era... Imparcial, observador... Ela era um mistério para mim - Respondeu Zara.
- E o que você fez?
Zara tentou experimentar o chá. Ao contrário de Orfeu, decidiu que já era apropriado beber, e tomou um gole, que o trouxe de volta à realidade, temporariamente, e continuou:
- Um dia, eu acordei de um sonho extremamente lúcido: Eu estava andando pela cidade, que eu conhecia muito pouco, porque tinha apenas acabado de atingir a idade em que era permitido sair do orfanato acompanhado. Eu estava sozinho pela cidade, uma fantasia das crianças de 13 anos - Zara pausou para tomar um gole do chá
- O que essa sonho tem a ver com a história? - perguntou Orfeu, aproveitando essa pausa.
Zara pousou a xícara:
- Tudo a ver. Enfim, eu andava e andava, e o meu destino era um morro, no horizonte, que era a junção de todos os outros morros.
- A junção de todos os outros morros? O que isso quer dizer? Perguntou Orfeu, cético.
- É assim que funciona a lógica dos sonhos, não? - Respondeu - Era o morro perfeito, dentre todos os morros da cidade. Ele era ao mesmo tempo habitado e deserto, repleto de favelas e de mansões e árvores e cachoeiras e cavernas. Repleto de tudo.
- E o que esse morro representava para você? Você sabe, isso é o que realmente importa quando o assunto é sonhos - Analisou Orfeu. Psicologia nunca fora sua especialidade, mas ele havia dado suas mergulhadas na área antes de morrer.
Zara pensou em tomar mais chá, mas se arrependeu do gole anterior: Ainda estava muito quente, e, naquela tarde quente, isso havia apenas esquentado seu estômago. Ele olhou para o chá e decidiu deixá-lo esfriar, como Orfeu, e respondeu:
- Aquele morro era Xibalba, ou talvez até toda Makáros. Era tudo a que eu aspirava, tudo que eu queria descobrir e explorar e conhecer. Era o mundo. Era tudo.
- E porque um morro?
- O orfanato ficava em uma posição baixa, sabe? A vista não era nada grandiosa como dos morros da cidade. Eu me sentia preso naquele lugar e queria apenas subir e subir... Explorar as alturas...
Ambos fizeram uma pausa enquanto Zara sorriu olhando para o nada. Ele tinha orgulho de seu sonho de infância. Enfim, o neonato continuou:
- No sonho, eu andava e andava e o morro nunca chegava mais perto. Eu estava agoniado: minhas pernas não conseguiam dar passos largos o suficiente. Ao meu redor estavam as crianças do orfanato e os mortos vivos que cuidavam da gente, que eu tanto odiava, e não importava o quanto eu andava, eles ainda estavam lá, do meu lado. De repente, eu tive uma idéia.
-Que idéia?
- Eu comecei a andar de quatro, como um animal - Zara gesticulou com suas mãos o movimento das patas dianteiras de um leopardo - e quando eu percebi que isso era possível, comecei a correr tão rápido, mas tão rápido, que o morro se aproximava maravilhosamente rápido...
Orfeu sorriu, ele sempre havia se interessado por sonhos, e tomou um pouco de chá. Zara estava feliz, e imitou Orfeu, tomando um gole também, antes de continuar:
- Eu era uma pantera: Me senti livre como nunca, rápido como nunca. Eu podia ir para qualquer lugar, finalmente! Tudo que eu tinha que fazer era correr como um animal. "Como eu nunca pensei nisso antes? É tão óbvio!", pensei, no sonho. E minhas patas, tanto dianteiras quanto traseiras, me lançavam para a frente com a força de uma catapulta. Era como voar, mas próximo do chão, da terra...
Orfeu estava genuinamente interessado, e perguntou :
- E você chegou no morro?
- Não. Quer dizer, sim. Quando eu me tornei um animal, meu destino não importava mais - eu já estava no morro. Interessante, não?
Orfeu sorriu:
- Pois é, é assim que os sonhos funcionam, meu amigo. O que você queria era o que o morro representava: liberdade, aventura, talvez? E, se tornar um animal, você conseguiu o que queria, e atingir o morro se tornou irrelevante. Talvez o que você realmente queria era a liberdade para ir para os lugares que quer, e não os lugares em si
Orfeu parou um pouco para pensar e concordou:
- Talvez, Orfeu. Isso faz sentido. Mas o importante é que eu estava com esse sonho fixo na minha mente aquele dia. Enquanto jogava bola com os garotos do orfanato, eu sentia que minhas pernas não eram suficientes para chutar ou correr. Aquelas pernas humanas não tinham a força e velocidade que eu precisava para ser livre. Eu me senti preso, não apenas no orfanato, como sempre me sentia, mas senti que meu movimento estava limitado. Senti que eu podia ser muito mais, como eu já havia sido. Tudo que eu precisava era ser menos, ser um animal...
- Você não tinha saído do sonho. Foi uma espécie de epifania para você.
- Apenas uma coisa conseguiu me tirar daquela encanação do sonho: ela.
- Ele tomou mais chá, e continuou:
- Ela olhava para mim, de cima da árvore, enquanto eu jogava bola com três outros meninos. Eu não gostava muito deles - sorriu levemente - mas eles eram o melhor que eu tinha por lá. Ela me olhava fixamente, e desenhava... E aquele dia foi a gota d'água: Eu tinha que ver aqueles desenhos.
- Você conversou com ela?
- Não - E tomou outro gole de chá - Talvez eu devesse ter tentado, mas eu tinha muito mais medo disso. Além do que, sonhar que era um animal me determinou a ser mais impulsivo. Ela sempre escondia seus desenhos nos pequenos armários que tínhamos ao lado de nossas camas. Um dia, eu decidi seguí-la, vê-la guardá-lo, e sair do alojamento, para fazer coisas de fantasma. Quando ela saiu, eu fui até seu armário e o abri.
- E lá dentro, estava o caderno? - Orfeu olhava fixamente para Zara, esperando sempre por mais detalhes.
- Claro - Respondeu Zara - Ele estava lá, um caderno como o seu, com uma capa marrom e folhas marrons. Era como violar o maior tabu que eu podia imaginar naquela idade, investigar a vida pessoal de um fantasma. Minhas mãos tremiam, minha boca estava seca e meu coração palpitava.
Zara olhava para a caneca de chá vermelho enquanto contava essa história, como se o líquido fosse uma forma de hipnose:
- O alojamento estava vazio, e eu senti como se estivesse saqueando o templo de um deus, blasfemando, ou entrando na caverna de um demônio para resgatar algum tesouro, e a qualquer momento eu podia ser descoberto e punido com a danação eterna...
- Foi uma violação bem intensa, então. - Remarcou Orfeu - E o que havia no caderno?
- Quando eu peguei o caderno, a adrenalina era tanta que era como se minha vida estivesse em uma corda bamba, atravessando um abismo... Eu abri e...
- O que? O que havia no caderno? - Orfeu era uma pessoa um tanto quanto sinestésica, por assim dizer, e as descrições de Zara das suas emoções faziam Orfeu sentí-las também. A expectativa era grande demais.
- Haviam apenas rabiscos - Concluiu Zara, levantando os olhos da caneca e olhando para Orfeu. Rabiscos incompreensíveis.
- Rabiscos? - Respondeu Orfeu, desapontado - Era apenas isso que tinha no caderno?
- Não eram apenas rabiscos, Orfeu - Continuou Zara - Era o que ela via. Ela desenhava observando a paisagem, e traduzia essa paisagem em apenas rabiscos, cores e formas abstratas.
- Bom - Tentou racionalizar Orfeu - Vários movimentos artísticos do lado de lá consistem de formas abstratas e não necessariamente tradutoras da realidade, como o cubismo, surrealismo, dadaísmo...
- Eu não sei, companheiro - Respondeu Zara, interrompendo-o - Se essa garota era adepta de algum desses movimentos artísticos. Só sei que a cada página, meu assombro crescia. Formas, cores... E o mais assustador era que eu conseguia entender alguns daqueles desenhos... As formas formavam o pátio do orfanato, as crianças brincando, as árvores... Tudo fazia sentido, de uma perspectiva deturpada, corrompida. Eu folheei as páginas por alguns segundos, pois não tinha muito tempo antes dela voltar, mas em cada página, eu sentia que haviam horas de conteúdo, talvez dias, e que eu estava há muito tempo contemplando aquela corrupção, aquela visão estranha da realidade. Até que cheguei no último desenho...
- Você - Concluiu Orfeu.
- Sim, eu. O último desenho era uma representação do que havia acontecido naquele dia, do ponto de vista do alto da árvore: Uma roda de formas geométricas e cores deturpadas que pareciam três crianças jogando bola.
- Mas você não disse - Notou Orfeu - Que você jogava com três garotos? Vocês não estavam em quatro?
- Sim - Continuou - Havia uma quarta figura, mas ela não estava jogando bola. A quarta figura era eu, eu sabia disso, por mais que fosse difícil distinguir mais detalhes
- Você era representado de forma diferente do que as outras? Como você sabia que a quarta figura era você, se eram apenas formas abstratas?
Zara sorriu, como quem sabe a verdade suprema de algo e decide revelá-la, ou como alguém que tem uma carta na sua manga, e finalmente expõe o que tinha escondido:
- A quarta figura não era uma criança, meu amigo.... Não... era uma pantera abstrata, feita de rabiscos, correndo para o morro no horizonte.
Orfeu se arrepiou.