Diário do lado de cá - IV - Entrevista com um neonato, parte 4 - Ser especial

- E como era lá, no orfanato? - Perguntou finalmente, ainda apoiado na janela.

Zara interrompeu sua própria divagação, olhando para a tigela vazia. A corrente de memórias trazida pelas perguntas de Orfeu havia perturbado seu senso de saciedade, e não estava claro em sua mente se já estava satisfeito ou não. A interrupção de Orfeu o fez voltar a realidade e decidir: Era propício se servir de mais uma tigela. Levantou e, enquanto mexia o caldo no caldeirão, respondeu:

- Era... horrível. Era como um preparo para a morte em plena flor da vida... O orfanato era totalmente regido por mortos-vivos, e os irmãos e irmãs da congregação faziam certeza de nos doutrinar sobre como a vida era um lixo, a tal da caverna do deus-leão e essas besteiras que eles tanto amam.

Nesse momento ele parou de mexer o caldo e virou-se para Orfeu, gesticulando indignado de forma explosiva com as mãos:

- Pense em como deve ser ter aquele monte de baboseiras enfiadas na sua cabeça todo dia - E voltou tranquilamente para o caldeirão - Então, era isso. Não apenas nossos impulsos de crianca eram reprimidos, mas tamb'em nossos sonhos. Nos eramos ensinados que a unica coisa boa da vida era seguir as regras que eles tiraram nao sei de onde, para podermos ter a "boa morte"... Cada coisa...

- Como eram as outras crianças? - A paisagem distraía os olhos de Orfeu, mas a imaginação do orfanato distraía sua mente.

Zara se serviu de mais sopa e voltou à mesa:

- Bom, o lugar era um tanto caótico. A maioria das crianças eram neonatas abandonadas como eu, mas algumas eram renascidas Esquecidas que não faziam a mínima idéia do que estava acontecendo, e uma boa parte eram pobres crianças renascidas Arruinadas, que sofriam do Delírio... Acho que já dá pra imaginar a loucura daquele ambiente...

- Esquecidas? Você quer dizer as abençoadas? - Indagou Orfeu.

"A maioria dos renascidos chega à Makáros com poucos fragmentos de memória, tanto da própria vida quanto do mundo do lado de lá, mas não o sufienciente para serem considerados oráculos. A noção de identidade e cultura costuma sobreviver ao renascimento, graças a certas memórias chave da vida passada que certificam para o renascido que ele realmente viveu outra vida, e que t^em uma tendência misteriosa de resistir à morte. No entanto, os renascidos "normais" se encontram entre dois extremos: Em um lado do espectro, os oráculos delfínicos, que se lembram de muito, e do outro, outra minoria: Os que não se lembram de nada.

Alguns renascidos chegam do lado de cá com a memória totalmente apagada. Se auto-denominam "Os Amaldiçoados", mas são chamados de "Os Abençoados" por algumas pessoas, já que a situação de esquecer toda a sua vida é ao mesmo tempo invejada por alguns como sendo a maior bênção que alguém pode receber, e temida por outros como o pior pesadelo, geralmente por eles próprios. Esses renascidos simplesmente aparecem na praia de Bifrósia, trazidos pelas ondas, sem fazer a mínima idéia de quem são, ou foram, e mesmo sem nenhum confirmação intuitiva de que realmente morreram. São essencialmente neonatos, começando a vida pela primeira vez, praticamente, mas possuem um status social maior do que o deles, simplesmente por terem passado pelo processo de renascimento, e uma confusão especialmente intensa causada por não se lembrarem do mundo do qual vieram, e por não se identificarem com ambos os mundos..."

- Abençoadas, Amaldiçoadas, tanto faz, são apenas nomes diferentes para a mesma coisa: Os renascidos mais insuportáveis que existem. Nós simplesmente as chamávamos de "esquecidas" porque é isso que elas são.

Orfeu se virou para seu amigo, apoiando-se de costas na janela, e perguntou, curioso:

- Insuportáveis? Porque? Eu conheci poucos, agora que você diz. O que há de errado com eles?

Zara respondeu entre colheradas insatisfeitas - a sopa já estava fria - e sem olhar para Orfeu, que estava à sua direita, na janela, mas para o nada a sua frente:

- Quando eles renascem na infância, eles são realmente isuportáveis. Eu não conheci um único esquecido no orfanato que não tivesse uma auto-estima e personalidade um tanto quanto... extremas e emotivas, digamos. Algumas eram constantemente tristes, imaginando como sua vida passada era, e ficavam em seus cantos, resmungando e lamentando, e se diziam "amaldiçoadas". Não muito diferente de mortos vivos que odeiam a vida, na minha opinião. A diferença é que eles eram mais imaginativos, e essa imaginação era o que os trazia tanto sofrimento.

- Deprimidas? Constantemente? - Orfeu perguntou, e decidiu sentar-se de volta em seu lugar de frente para Zara, seu caderno de pergaminhos, seu lápis e sua caneca vazia - Eu imagino que deve ser um tanto traumático renascer como criança sem a mínima idéia do que está acontecendo. Mas elas eram todas assim?

- Não, esse é o problema. Aquele lugar seria muito mais silencioso se elas fossem todas assim. Geralmente os esquecidos adultos são assim, deprimidos, mas conforme crescem se acostumam com o mundo. O resto delas era arrogante demais: Se chamavam de "abençoadas", unindo esse mistério de antes do seu aparecimento na praia com todo tipo de fantasia e superstição - Zara disse isso tudo em um tom de ridículo

- Como assim, superstições? - E involuntariamente Orfeu franziu as sobrancelhas, indagando com sua expressão.

- Ora, elas inventavam todo tipo de história para tentar preencher esse vazio deixado por esse passado misterioso. Algumas diziam que seus sonhos eram sinais da vida passada, ou que sentiam "energia" do lado de lá, ou que tinham alguma missão nessa vida... Ah! - Ele sorriu e apontou para cima com o indicador, como alguém que tem uma idéia, lembrando-se de algo que valia a pena ser contado - Tinha um garoto que leu alguns livros de história do lado de lá, trazidos pelo oráculo do orfanato, e vivia se identificando com os heróis e dizendo que era descendente deles!

Orfeu sorriu. Ele estava aprendendo a apreciar cada vez mais o senso de humor de seu amigo. Zara tentava lembrar mais, e sorriu de novo, nostálgico, até que outra lembrança o atingiu:

- Ah, e também uma garota que gostava tanto de seu coelho de pelúcia, que dizia que eles já estavam juntos desde o lado de lá, e se reencontraram aqui! - E se deleitava mentalmente na nostalgia - Sem contar os casais que acreditavam que sua paixão era eterna e recorrente como o bichinho de pelúcia! E eles todos justificavam isso dizendo que "sentiam a energia" ou algo do tipo! - E riu mais um pouco.

Orfeu captou a mudança de reação emotiva à memória pela qual Zara passou, e perguntou sorrindo levemente:

- Eu achei que você odiava esse lugar, mas esses esquecidos parecem ser um prato cheio para você, que adora debochar dos outros.

- Bom, eu me divertia um pouco, sim, mas aquele lugar era um verdadeiro hospício infanto-juvenil, e é como vocês dizem, eu tinha que "rir para não chorar" - Explicou - Mas os esquecidos mereciam, sinceramente. Os deprimidos resmungões, os amaldiçoados, se encarregavam de debochar da própria vida com sua lamentação constante, mas sempre que eu ouvia algum dos arrogantes vir para cima de mim com seus delírios de grandeza astrológicos, supersticiosos ou tentando me converter para uma religião que ele tinha acabado de inventar, eu não podia simplesmente ficar quieto ouvindo.

Um curto silêncio tomou a cozinha enquanto Orfeu tentava imaginar a situação: Um pequeno Zara, reagindo de forma afiada a uma conversão. Ele riu, realizando que certas coisas nunca mudam, e nem deveriam.

O lápis batia no caderno de folhas marrons, e Zara acariciava sua barba, com os olhos apontando para cima, tentando se lembrar de mais. Finalmente, o neonato suspirou e virou os olhos, em sinal de niilismo, e continuou:

- Se você quer saber o que eu penso, pode anotar aí que a nossa cultura criou monstros com esse negócio de dizer para os esquecidos que eles são especiais, que estão renascendo em um mundo especial, mas que vieram de outro mundo, mais especial ainda! Ainda mais para as crianças! Por isso a cidade est'a tão cheia de cultos secretos: Cada esquecida 'e um messias em potencial!

Orfeu voltou a escrever:

"Os abençoados (ou amaldiçoados) sofrem de uma enorme falta de identificação com o mundo do lado de cá, por serem socialmente considerados renascidos e, portanto, estrangeiros, mas ao mesmo tempo não saberem de onde realmente são. Sua identidade cultural é nula para eles próprios, o mundo do lado de lá é um mistério para eles, e os relatos dos oráculos não são suficientes para ajudá-los a moldar sua identidade, o que leva muitos a inventarem suas próprias versões do lado de lá.

Esse vácuo deixado pela identidade faz com que A grande maioria seja adepta de várias formas de esotericismo e adivinhação, cultos religiosos ilegais e/ou gangues. A identidade grupal se torna muito mais importante nesse vácuo seja para os mais resolvidos, que geralmente são os líderes desses grupos, ou místicos ou charlatães influentes, como os menos resolvidos, que possuem uma auto-estima mais traumatizada.

Abençoados são identificados imediatamente na Cerimônia da Pesca dos Mortos por não se lembrarem da própria morte, geralmente a memória mais vívida para os renascidos, de certos hábitos cotidianos ou de pessoas amadas."

- Eu imagino - Respondeu Orfeu - Que a curiosidade em relação à esse outro mundo do qual elas vieram supera qualquer surpresa em relação à esse mundo em que elas estão.

- Bom, pense no mal que é possível causar dizendo as pessoas que elas vão para um lugar especial após a morte por serem especiais e queridinhas de algum deus - e lavantou a sobrancelha para Orfeu - pense em todos os loucos desprendidos da realidade que vivem nessa cidade que essa pergunta criou. Uma pergunta tão simples: "Para onde eu vou?"

Orfeu não entendeu esse ponto ter sido trazido nesse momento:

- Sim, mas o que isso tem a ver com os esquecidos?

- A questão, meu amigo renascido - Respondeu, sábio - É que os esquecidos são o sintoma de outra pergunta: "De onde eu vim?". Qual das duas parece mais nociva para você? A primeira, pelo menos, é relacionada ao futuro, e não ao passado como a segunda...

Orfeu refletiu sob o olhar de Zara, que estava ansioso pelo resultado dessa meditação. Finalmente, concluiu:

- Mas o passado não é tão inútil assim, como você sugere comparando-o com o futuro. Ele implica em outra pergunta: "Quem sou eu?"

Zara sorriu, algo que apenas um bom argumento consegue causar. Mas ele tinha uma boa resposta para justificar-se:

- Será, Orfeu? Será que o passado é mais importante do que o futuro na definição da sua identidade? - E seus olhos brilharam: Ele estava saboreando os pensamentos - Será que seus objetivos e desejos, assim como a direção e o destino de uma viagem, não moldam muito mais do viajante do que a origem? Eu acredito que as perguntas "O que é você?" e "O que você quer?" estão sempre mais próximas do que quaisquer outras, e "querer" é algo que pertence ao futuro, não? Se você só quer o passado, bom, o seu futuro é passado, e você é passado - e colocou uma ênfase autoritária no final.

Orfeu arrepiou-se secretamente, e debateu:

- Mas a curiosidade em descobrir o passado os dá um objetivo na vida, não? E apesar de que eles são torturados pela falta de um passado, eles tem algo para o qual se destinarem. Algo que, pelo menos, garante que exista uma viagem em primeiro lugar.

- Sim, sim, tenho que admitir que até certo ponto, admirava esse mistério e essa curiosidade. Quase todos fazem do seu objetivo de vida descobrir como eram suas origens, e alguns realmente investem em jornadas em busca disso, ou se tornam estudantes assíduos da academia, tentando satisfazer essa curiosidade ficando próximos de oráculos. O mistério em relação ao próprio passado faz deles uma massa um tanto motivada para aventura - E deu de ombros - mas não deixa de ser uma massa, manipulável e muitas vezes cabeça-oca. Eles basicamente pulam de ilusão em ilusão, de superstição em superstição, para se sentirem especiais.

Zara se esticou na cadeira e descansou as mãos na barriga, satisfeito com a sua refeição Hashmal. Orfeu, por outro lado, não estava saciado com as respostas, e, como era seu jeito, continuou perguntando:

- Eu imagino que elas não se misturavam com as outras crianças?

- Bom, há um motivo para você não conhecer muitos esquecidos: Eles não se misturam mesmo. Elas fazem questão de fazer parte de algum grupo e se dedicarem até o fim a ele, se tornando fanáticas desse grupinho. Afinal, a identidade deles depende disso, aparentemente. É como se sem o grupo, não fossem ninguém, e isso os assusta tanto que não conseguem ficar sozinhos.

Zara deixou a tigela vazia e levantou-se novamente em direção ao armário. Chegando lá, após poucos passos, abriu a porta e virou-se para Orfeu, perguntando:

- Vou fazer um chá, quer?

- Só se for hashmal! - descontraiu Orfeu

Zara sorriu lisonjeado, e pegou o pote de ervas:

- Me respeita, meu amigo, me respeita! - E levou o pote para perto do fogão, enquanto acendia mais uma chama.

Orfeu ainda estava imaginativo:

- Os abenço... - E corrigiu-se - Os esquecidos são um bando bem fascinante, não? Não havia parado para pensar sobre o que seria de mim se eu não fosse um oráculo. Será que a minha identidade seria tão fragilizada assim?

Zara respondeu enquanto tentava fazer uma faísca próximo ao gás:

- Se você considera fascinante se isolar e se separar em grupos rivais, seguindo a liderança de quem tiver a teoria mais mística e legal sobre o quão especial você é - E parou, olhando para a pedra que usava para, sem sucesso, fazer a faísca. Não havia nada de errado com ela, então ele continuou - Então sim, eles são.

Estava difícil fazer aquela faísca, mas ele continuou tentando e falando:

- Quando crescem, muitos esquecidos se tornam basicamente charlatões, ou fanáticos, em um dos muitos cultos ilegais subterrâneos da cidade fundados por eles próprios, isolados do resto do mund... Finalmente! - e interrompeu a si próprio, satisfeito ao ver o fogo se acender.

- Mas você nasceu aqui, você pertence a esse mundo, você não sabe como.... - E Orfeu não conseguiu terminar essa frase, antes de ser interrompido por Zara, que estava agora segurando a pequena chaleira de ferro que eles sempre usavam, e gesticulava segurando-a:

- Pertenço à esse mundo? Diga isso para os milhares de renascidos que acham que esse mundo é só uma etapa no ciclo de suas vidas e que nós somos apenas coadjunvantes inocentes!

- Sim, bom, o meu ponto é que você tem suas memórias, sua identidade. Você já pensou o que seria de você se você esquecesse de tudo que já viveu?

Zara calmamente encheu a caneca com agua da torneira, e colocou-a em seu lugar, acima do fogo, antes de apoiar-se na pia e responder:

- Bom, acabei de pensar. Eu simplesmente iria começar tudo de novo, não é óbvio? Eu entendo que perder o seu passado pode perturbar um pouco as coisas, mas pelo menos é melhor do que perder o futuro, não?

Orfeu pensou, e fez que sim com a cabeça:

- Bom, sim, mas pelo menos elas estão indo atrás de algo, pelo menos tentam criar valores e explicações para esse mistério, não? Isso é melhor do que ser um morto-vivo que quer apenas morrer de novo, ou um Sensato hedonista, não?

Zara acariciava a barba, como era seu costume quando estava pensativo. Olhou para a chaleira - o chá não estava pronto ainda - E andou, quieto, até a janela, onde se apoiou de costas e respondeu:

- Criar novos valores motivados pelo passado? -Indagou com ênfase, e continuou - Em busca de algo que você perdeu e nunca mais irá recuperar? Isso é uma espécie de saudosismo perturbador para mim. Elas perderam a identidade e devem lidar com isso. Aposto que, durante suas primeiras vidas, muitos desejam, pelo menos uma vez, perder a identidade, ser ninguém, começar de novo, e agora que finalmente conseguem isso, se arrependem como quem teve e perdeu algo infinito - Ele cruzou os braços e olhou para o chão, e continou - Se eu tivesse que escolher, sinceramente, eu diria que o termo "Abençoado" é mais propício do que "Amaldiçoado"

Orfeu ficou surpreso:

- Mesmo? Porque?

- Bom, o passado nos impede de sentir uma das sensações mais intensas que existem: Viver algo pela primeira vez. E se libertar dessa prisão... - E sorriu para Orfeu - está um pouco mais para uma bênção do que uma maldição, você não acha? Afinal, quando foi a última vez que você fez algo verdadeiramente pela primeira vez?