Diário do lado de cá - II - Entrevista com um neonato, parte 2 - Reencarnocentrismo
Depois de alguns segundos de silêncio, Zara abandonou o caldeirão e foi até o armário, pegou uma tigela, voltou para o caldeirão e se serviu de uma concha da estranha mistura e, após uma farejada orgulhosa no vapor que saía da tigela, finalmente se virou para Orfeu. Enquanto andava em direção à mesa, a apenas 2 passos de distância do fogão, e se sentava, disse:
- De que interessa a curta vida de um mero neonato como eu para um renascido como você? - a palavra "renascido" foi pronunciada com seu característico tom de deboche. Orfeu olhou para baixo e sorriu de canto, rindo internamente de si mesmo, impressionado com a frequência em que era vítima do cinismo de Zara - Você já viveu toda uma vida em outro mundo, morreu e renasceu! Você tem muito mais experiência no assunto!
Zara finalmente tomou uma colherada de sua criação. A expressão não foi a de quem saboreia uma obra prima, mas havia satisfação em seu rosto - a satisfação dos neonatos reside em outros fatores.
- Ora, vamos! Desde quando você virou reencarnocentrista? Você sempre foi solitário e independente - Disse Orfeu, diplomático, tentando conquistar Zara tendo em mente o quanto ele era vulnerável a tais elogios - Sua vida está basicamente na sua cabeça apenas, sua histótia, seu conhecimento... Você vai deixar tudo isso morrer com você?
Zara abriu os olhos e riu de boca cheia nesse momento, tampando a boca como se fosse tossir, para evitar derramar a sopa. Enquanto ele tentava conciliar o riso e a sopa em sua boca, engolindo antes para rir depois, Orfeu continuou, já sabendo o aguardava quando terminasse:
- Se você compartilhar o que possui, tudo isso vai ganhar vida, se espalhar, e durar muito mais do que você!
- Pelos céus! - disse Zara, expressando seu espanto com a ideologia renascida, após superar a possibilidade de engasgar - Como vocês conseguiam viver acreditando nessas coisas? O mundo do lado de lá deve ser uma loucura, cheio de renascidos loucos! "Ganhar vida?", "Manter a história viva?", "Deixar isso morrer?" - e riu mais um pouco - Orfeu, eu vou deixar a história morrer porque é simplesmente isso que acontece, ué! A minha história morrerá comigo de qualquer jeito, e ninguém que leia um livro vai viver de novo tudo que eu vivi! Não é um livro que vai me manter vivo! Vocês são realmente obcecados em não morrer, mas ao mesmo tempo não sabem o que fazer até lá!
Orfeu já estava acostumado com isso. Enquanto Zara olhava para a sopa para pegar mais uma colherada, parou com a colher no meio do caminho, apontou-a para Orfeu e levantou os olhos:
- Talvez seja por isso quem vocês renasceram, vocês tinham tanto medo da morte e desejaram tanto isso que acabou se realizando!
Passada essa surpresa, Zara cedeu, e, entre colheradas, contou sua história:
- Bom, eu simplesmente fui abandonado em um orfanato. Isso é comum entre jovens mães solteiras da congregação renascida. Os mortos vivos acreditam que a punição divina por abandonar uma criança é uma nova reencarnação, o que os deixa um passo mais longe da "verdadeira morte" que eles tanto querem.
- Mas porque ela te abandonou então, se a punição é tão terrível assim?
- Bom, a punição por realizar um aborto é três reencarnações... - E deu um sorriso de desdém, desiludido com essa ideologia - E como os mortos-vivos odeiam a vida, não é difícil imaginar o que ela escolheu para se livrar da consequência do que provavelmente foi um de seus poucos momentos de vida...
Zara parou, olhando para o nada por alguns segundos. Orfeu não soube identificar se o seu olhar indicava tristeza, imaginação - de como tudo podia ter sido diferente - ou alívio - por não ter sido. Finalmente recuperou sua postura, deu de ombros e sorriu para Orfeu:
- Bom, pelo menos eu dei uma vida a alguém! Uma pena que ela não gostou do presente! Espero que essa sua reencarnação seja melhor do que as outras três que ela podia ter tido! - E voltou à sopa, quieto. A punição divina que a mãe de Zara supostamente receberia foi, para Zara, durante toda sua vida, simultaneamente um agradecimento por ter nascido e uma vingança por ter sido abandonado em um paradoxo traumatizante.