Diário do lado de cá - I - Entrevista com um neonato, parte 1 - Do it Yourself

Zara e Orfeu estavam sentados frente-a-frente na cozinha de seu pequeno apartamento em silêncio. Era uma cozinha pequena, com espaço suficiente para a mesa, alguns armários, quatro bancos - dois para o caso de visitas - todos de madeira, um grande e arcaico fogão de ferro. Tudo era simples, porém funcional e bem cuidado.

Zara olhava para as nuvens lá fora, através da janela, pensativo sobre o que cozinhar. A caneca de Ousab de Orfeu esfriava enquanto ele, sentado na outra ponta da pequena mesa, olhava para seu caderno, aberto em uma página vazia enquanto batia nervosamente com o lápis na mesa - aquela página em branco estava lhe assombrando. Eles já haviam escrito alguns capítulos de seu documentário, mas ainda havia algo próximo deles que precisava ser estudado...

- Acho que precisamos entrevistar um neonato - Disse, resolvendo esse enigma e tirando um peso de suas costas - Conhece algum? - continuou, irônico.

- Depende do que você considera "conhecer" - retrucou Zara, sempre mais irônico ainda.

- Ora, vamos, você é o neonato mais inteligente que eu conheço - e deu uma desviada com o olhar para baixo, para sua caneca de Ousab, para disfarçar o elogio - Além de ser o único que me dá atenção e não me vem com aquela atitude típica de vocês de "porque você está cuidando da minha vida?". Você deveria ser o próximo entrevistado!

Zara continava olhando para fora, acariciando seu cavanhaque, pensativo.

- Além de já estar por dentro do nosso documentário, e saber o nosso objetivo - Continuou Orfeu, e trouxe a caneca para seus lábios, tomando um gole. Aquela bebida era extremamente parecida com o café do lado de lá, feita de grãos negros extremamente semelhantes. Talvez até fossem a mesma coisa, Orfeu ñao conseguia dizer com precisao.

Zara estava agora imóvel, olhando para através da janela de sua cozinha. Suas pernas estavam cruzadas e sua mão esquerda estava agora apoiada na mesa, não mais na sua barba. A cidade de Xibalba estava agitada naquela tarde, graças à feira das ilhas, acontecendo há poucos quarteirões de distância. O retorno dos marinheiros das ilhas do norte com navios à vela carregados de especiarias era o grande evento social do mês.

Havia muitas pessoas andando na rua apertada em que os dois viviam, da janela do segundo andar de sua casa. Zara, no entanto, estava longe demais da janela para olhar para baixo e ver as pessoas. Ele estava olhando para as janelas das casas à frente, que refletiam o céu.

Orfeu terminou o gole daquela imitação de café:

- Seria mais fácil entrevistar você do que Zabel, ou Akme.

Zara então se libertou da fixação com o mundo externo e com as casinhas altas e finas, de face reta e grudadas umas nas outras lá fora, e levantrou-se, sem olhar para Orfeu e disse, enquanto andava para o armário:

- E desde quando o caminho mais fácil é o melhor? Talvez seja muito mais interessante entrevistar as gêmeas do primeiro andar do que eu - Pegou um pacote de tecido, amarrado com uma cordinha cheio de cereais do armário, e finalmente olhou para Orfeu, para o ato final de sua atuação - Eu sei que ia ser mais difícil entrevistar elas, e que elas são meio apáticas, mas elas são mais bonitas e fotogênicas do que eu, então dariam fotos melhores!

Orfeu riu:

- Eu não caio nessa. Boas fotos não justificam uma péssima entrevista!

Zara despejou um pouco do conteúdo do pacote no caldeirão, acima do fogão artesanal:

- Tá bom, tá bom, mas o que eu posso te contar que te ensine mais do que morar comigo? Você está me fazendo perguntas sem a minha permissão de qualquer jeito, com os olhos, a todo momento, e eu respondo sem querer com a minha vida! - E voltou para o armário, para trocar o pacote por dois potes de vidro: Um de estranhas pimentas do deserto ao sul das favelas, e outro de uma espécie de caldo de peixe - A maioria dos neonatos te responderia algo assim. Nós temos dificuldade em sermos teóricos como vocês renascidos.

Orfeu já havia previsto esse conselho de Zara com alguns segundos de antecedência, e já estava fazendo anotações desde então, sem ter que fazer pergunta alguma. Zara havia ouvido o som das páginas do caderno de pergaminho marrom de Orfeu serem percorridas, depois riscadas pelo lápis rústico:

"Diário do lado de cá, dia 27 do Mês do Chamado

Desde minha ressurreição, apesar de ter presenciado muitas atitudes, ideologias e visões de mundo no mínimo bizarras e exóticas, como elas são para qualquer renascido na terra de Makáros, ainda continuo mantendo uma fascinação especial para com os neonatos.

Os chamados neonatos são os habitantes nativos do mundo após a morte, que nasceram aqui como filhos de renascidos, de outros neonatos, ou como mestiços.

Vivendo, portanto, sua primeira vida, os neonatos ainda não experimentaram a morte."

- Bom, o que há para dizer? - Zara adicionou o molho de pimenta e o caldo de peixe, e abriu gavetas até achar a caixa de fósforos - Nós simplesmente estávamos aqui, vivendo nossas vidas no nosso pequeno arquipélago, quando em algum ponto de nossa história, pessoas vindas de outro mundo simplesmente começaram a aparecer na praia de Bifrósia, trazidos pelas ondas, queimadas pelo sol e pela água salgada...

Orfeu passou a mão em uma de suas queimaduras, no pescoço, enquanto Zara falava. Às vezes, elas ainda ardiam.

...dizendo ter morrido nesse outro mundo e simplesmente acordado aqui "do lado de cá" da morte - Havia um certo cinismo no seu tom de voz conforme chegava ao fim da frase, como se toda essa história fosse algo absurdamente cômico ao qual ele já estava acostumado e que havia perdido a graça.

- Bom, é bem estranho para nós também, simplesmente morrer e acordar na praia de outro mundo - defendeu-se Orfeu

Zara achou a caixa de fósforos na terceira gaveta que procurou, e ligou a válvula que soltava gás do botijão de cobre ao lado do fogão,e continuou:

- Eu tenho certeza que deve ser muito estranho mesmo, mas o que será que é mais estranho, descobrir que já existe gente vivendo no "mundo após a morte" - Ele destacou a falta de crença no significado absoluto dessa expressão com seu tom de voz, era óbvio que essa expressão era totalmente relativa para qualquer neonato - Ou ser uma dessas pessoas? - Disse ele, concentrado em acender o fósforo corretamente no fluxo de gás.

- Mas quando isso começou? Como era a cultura de vocês antes disso?

- Nós não sabemos - Continuou - Nós simplesmente... Sempre vivemos assim, sabe? Os Buscadores estão sempre tentando descobrir nossa "história", tentando sempre descobrir algo para relatar na Grande Biblioteca, mas sempre acabam conseguindo, no máximo, histórias sobre nossas vidas, ou de nossos pais ou avós, quando, nos perguntam, algumas na forma de fábulas, para ensinar uma coisa ou outra para as crianças...

"Os neonatos têm uma estranha relação com o tempo: apesar de serem letrados há, ao que tudo indica, milhares de anos, são um povo extremamamente prático e com pouquíssima paciência para trabalhos escritos, e isso fez com que não mantivessem relatos escritos de sua história. No significado mais clássico do termo, eles não tem "História", e ninguém sabe exatamente se eles sempre estiveram aqui, ou se são apenas descendentes de renascidos. Os filósofos do pólo de conhecimento de Xibalba, a Grande Biblioteca, discutem há séculos sobre a origem dos neonatos, que simplesmente não entendem a fascinação dos renascidos para com o seu passado

Eles vivem no presente, de forma geralmente individualista, e não tem muito interesse em coisas que saiam desse escopo temporal ou físico. Meu companheiro, Zara, admitidamente decidiu fazer parte desse documentário sobre a cultura do mundo após a morte mais pela oportunidade de fazer o trabalho de fotografia - sua paixão - do que pela minha motivação de explorar esse mundo e ajudar aos próximos que vierem depois de mim, perplexos como eu estava após meu renascimento na praia. Os neonatos simplesmente perseguem suas paixões, e isso guia sua cultura.

Atividades arqueológicas sempre falharam em encontrar fósseis significativos: Os neonatos costumam ter um estilo de vida simples, valorizando cada objeto pelo seu valor prático e nunca possuindo mais do que o necessário. Utensílios domésticos são o principal tipo de achado, e objetos artísticos costumam ser desenhos ou esculturas realistas. Músicas e poesias revelam pouco sobre mitos e religião, exceto por anedotas e fábulas, e seus rituais e costumes são tão simplistas que seus traços culturais muitas vezes simplesmente passam despercebidos"

Para todos os efeitos, qualquer registro foi feito pelos acadêmicos da Grande Biblioteca, e não espontaneamente pelos neonatos"

Zara continuou seu relato:

-Bom, eles se decepcionaram tanto com os objetos que eles encontraram que até abandonaram as escavações há uns 50 anos - E riu - Eu não faço a mínima idéia da expectativa que eles tinham enquanto escavavam na lama, mas ela devia ser bem alta!

Orfeu parou de escrever, tendo atingido uma dúvida:

- Como é possível isso, um povo sem registros históricos!

Zara estava concentrado mexendo o seu estranho caldo no caldeirão com uma comprida colher de madeira, mas respondeu prontamente:

- O que há de tão absurdo em não termos pilhas e pilhas de pergaminhos como na Grande Biblioteca, dizendo tudo que acontece? Nós utilizamos pergaminhos para escrever e desenhar, sim. Mas nos livramos de tudo assim que não servem mais para nada. Se esses pergaminhos durarem demais, vamos acabar tendo montes deles em todo lugar, e eu não quero que a cidade se torne empoeirada e inútil como a biblioteca. Nós temos coisas mais importantes para fazer do que tirar o pó das coisas.

Orfeu apoiou o queixo no punho e continuou escrevendo:

"A atitude neonata em relação à vida é bem reminiscente do Cinismo de Diógenes, ou talvez da praticidade simplista de Thoreau. Neonatos têm paixões individuais e consideram como perda de tempo o que não contribui para a busca dessas paixões ou para satisfação de necessidades básicas. Esse foco os faz, geralmente, morar sozinhos ou em pequenos núcleos de interesses semelhantes, contanto que essa união contribua para esses interesses

A falta de traços culturais explicitamente demarcados como objetos, mitos, feriados e rituais institucionalizados me faz pensar na cultura neonata como uma espécie de não-cultura. Ou seria contra-cultura um termo melhor?"

O cheiro do caldo chegou em Orfeu:

- O que você está cozinhando?

- Caldo de cobra-do-mar com algumas das nossas pimentas e alguns flocos desses cerais que um amigo meu me trouxe das ilhas hoje de manhã - Zara deu uma longa aspirada no vapor que saía do caldeirão.

- Caldo de peixe, pimentas e cerais? - A culinária neonata ainda era algo extremamente estranho para Orfeu - E foi você mesmo que pescou as cobras-do-mar?

Zara riu:

- Ora, claro! Hashmall! - Zara virou para Orfeu, e apontou para o caderno - Porque você não escreve isso na sua entrevista, ao invés de ficar me perguntando essas coisas óbvias? Eu sei que esse caldo não faz a melhor combinação do mundo com as pimentas, mas foi o que eu consegui pescar, e era a única coisa Hashmal que temos na dispensa hoje.

Orfeu se pôs a escrever:

"Talvez seja precipitado classificar a cultura neonata como "não-cultura", pois existe uma instituição cultural extremamente forte para qualquer neonato, que é lembrada com uma única palavra: "Hashmall".

A palavra Hashmal se refere não a um ritual ou a uma religião, mas a uma ideologia, um estilo de vida típico dos neonatos que consiste, basicamente, em utilizar o máximo possível de objetos e alimentos feitos ou obtidos pela própria pessoa, ou recebido como presentes, no dia-a-dia. Os nativos do mundo após a morte manifestam quase toda a sua cultura ao redor da ideologia "do it yourself".

A honra de um neonato perante os outros consiste em seu grau de independência material, na quantidade de objetos e refeições feitos por ele mesmo. Apesar de que utensílios ou ingredientes obtidos por meio de comércio são tolerados, a quantidade desses deve ser mínima, e sempre pelo menos algum objeto deve ser "Hashmal" - feito pela própria pessoa.

A dependência material é a suprema desonra, e o maior insulto para qualquer neonato é dizer que ele "não consegue se virar sozinho". Refeições sem pelo menos um ingrediente significativo Hashmal são tabu, o que leva uma boa parte dos neonatos a ser vegetariana (cultivando vegetais em seu próprio quintal, para os que tem essa possiblidade) ou pescadora, visto que a caça e a agropecuária são plausíveis apenas para a elite, que possui grandes extensões territoriais nos morros do norte, ou para os habitantes próximos do deserto ao sul das favelas. Curiosamente, essa "honra da praticidade" é mais importante do que a própria praticidade, na maior parte das vezes."

Orfeu deu um pequeno sorriso, orgulhoso

- Você não é o melhor cozinheiro de Makáros, mas definitivamente é um dos mais Hashmal. Acho que ninguém misturaria caldo de peixe com cereais e pimenta simplesmente por ser o único ingrediente que você conseguiu com as próprias mãos - Orfeu não conseguiu ver, pois Zara estava de costas, ainda mexendo o conteúdo do caldeirão, mas ele sorriu. A independência material é o maior elogio para um neonato - Que tal, sei lá, me contar sobre a sua vida?