Diário do lado de cá - Prólogo - A Grande Congregação Renascida
- A maior recompensa está por, vir irmãos! - Dizia o sumo-sacerdote, do alto do altar - O fim de nosso sofrimento está próximo! O Verdadeiro Descanso está próximo! Logo estaremos livres do ciclo profano da vida!
- Oxaná! - murmuraram em resposta a massa que lotava o Grande Templo, em um murmúrio fraco e monótono.
- O único momento em que os mortos-vivos tem força para gritar algo - sussurrou Zara, se aproximando do ouvido de Orfeu - É quando seu líder fala do fim de suas vidas, e mesmo assim não o conseguem fazer com muita força! - E riu com uma risada bem baixa e inocente, quase infantil, como uma criança que ouviu uma palavra engraçada, enquanto voltava para sua postura de fotógrafo sob o véu preto de sua grande câmera.
Um dos fiéis da Congregação Renascida estava sentado no banco bem à frente dos dois investigadores, que estavam próximos de uma parede, no canto do templo, e os mandou um rápido olhar incomodado, dizendo com os olhos que eles estavam fazendo barullho demais com seus sussurros, e que estavam atrapalhando o seu entendimento da missa semanal. Se Zara não estivesse tão concentrado tentando tirar uma foto ideal do sacerdote, com certeza teria que se segurar para não soltar um de seus comentários irônicos, afinal, a presença de Zara e Orfeu naquela ocasião, tirando fotos e fazendo anotações, era meramente tolerada.
- Vivemos uma vez, do lado de lá, em busca da liberdade final, da vitória máxima, do descanso eterno, e isso não nos foi permitido! Não conseguimos escapar da prisão em que estávamos! Nós fomos seduzidos por, e ainda estamos nela! Apenas aqueles que se prepararem durante essa nova vida conseguirão escapar!
Orfeu apenas observava, sentado no banco ao lado da câmera de Zara, e fazia anotações em seu caderno:
"Diário do lado de cá, dia 16 do Mês do Contraste
Os fiés da congregação renascida buscam o que chamam de libertação do ciclo da vida. Portanto, a reencarnação pela qual todos passamos é o equivalente a um inferno, a maior punição que podem receber"
- Nós ainda não estamos livres, irmão e irmãs! - O sumo-sacerdote se exaltou nesse momento, e antes de terminar essa frase, a câmera de Zara fez uma foto de sua pose messiânica, fazendo um som de "click!". Ele nunca perdia fotos assim: Seu instinto de fotógrafo estava sempre atento para frações de segundo marcantes, e alguns fiéis olharam para a fonte do clique.
- Nós renascemos após a nossa primeira e falsa morte por não estarmos preparados para fugir dessa prisão! Não fomos puros o suficiente para nos livrarmos das garras da Grande Planta-Leão! - continuou o líder.
"Podemos notar semelhanças com uma religião mais alternativa de tempos passados: O gnosticismo cristão-alexandrino do lado de lá. Uma crença extremamente sincrética e misteriosa que mantinha que há um intermediário entre deus e nós: O demiurgo, que que prendeu os seres vivos nesse mundo de sua criação má intencionada, e inerentemente mau, para bloquear nosso contato com o mundo externo, bom, feito pelo verdadeiro deus, e com Sofia, o verdadeiro conhecimento.
A própria figura da 'Planta-Leão' parece ser uma derivação do 'leo-encéfalo', o demônio com cabeça de leão e corpo de homem, que costumava ser uma representação do demiurgo".
- O grande demônio Planta-Leão nos engana! Nos seduz! Nos aprisiona! Nossa vida anterior poderia ter sido a última, e poderíamos finalmente estar livres de sua caverna, livres pelo mundo do verdadeiro Deus que não se revela a nós, por nossos olhos estarem acostumados com essa caverna!
- Oxaná! - Murmuraram de novo.
- Essa caverna chamada Mundo está com todas as paredes cercadas de trepadeiras, repletas de plantas e flores sedutoras cada vez mais lindas e que exalam perfumes cada vez mais agradáveis quanto mais fundo vamos, e conforme se vai na outra direção, chegando perto da luz e da saída da caverna, vão se surgindo cada vez mais galhos espinhosos, plantas monstruosas e venenosas, repletas de colméias de marimbondos, caramujos e larvas!
-Oxaná! - Algumas pessoas estavam começando a chorar agora, emocionadas e arrependidas de suas vidas passadas.
- Quando se chega na boca da caverna, nossa pele fica enrugada, nosso cabelo, branco, e as plantas se tornam plantas carnívoras, que nos aatacarão, não nos deixando sair!! E a boca da caverna é a boca do demônio, uma boca de leão vista por dentro, da qual devemos sair!!
- Oxaná!
Zara e se afastou de sua câmera para poder sentar um pouco ao lado de Orfeu. Ele já tinha fotos suficientemente boas para esse capítulo de seu documentário, e queria acompanhar as anotações de seu colega, curioso, e comentou:
- Eles inverteram tudo, não é mesmo? Eu acho esse mito deles fascinante, confesso.
"Há uma semelhança com a alegoria da caverna de Platão, no sentido de que existe um mundo 'totalmente real' e um mundo 'menos real'; No entanto, há uma elaboração maior quanto à caverna: A vida é uma caverna, e a morte, a fuga dessa caverna, o lado de fora. A metáfora aparentemente também diz que existem dois sentidos que alguém pode seguir nessa caverna: para dentro e para fora, sendo que para dentro as ilusões da vida se tornam mais intensas e enebriantes, e, para fora, tudo se torna agressivo e prejudicial, como um mecanismo de defesa da caverna para impedir que se saia dela. Para sair do mundo do demiurgo, devem seguir o rumo mais difícil, mais sofrido, em direção à morte libertadora, na saída da caverna. Estariam eles justificando o sofrimento e até mesmo a velhice com isso?"
- Arrependam-se, irmãos e irmãs, pois nós já seguimos para dentro da caverna em nossa vida passada, mas nunca é tarde demais para mudar o rumo! Viremos as costas para as profundezas dessa caverna, essas profundezas sedutoras e repletas de folhas e flores, que nos atraem cada vez mais! Sigamos a luz, pois quanto mais profundo, mas difícil será de virar as costas!
Mais um murmúrio da multidão.
- Zara, eu não acredito - Orfeu estava pasmo - Eles realmente inverteram tudo. Como é possível inverter a lógica da vida e da morte de uma forma tão radical assim? E ainda por cima com toda uma estética que acompanha essa nova lógica, fazendo da vida um monstro terrível, e da morte, algo tão bonito?
- Será que eles eram assim tão diferentes antes de sua primeira morte? E será que alguém que vive uma vida inteira de sacrifício torcendo por uma recompensa após a morte lidaria de forma diferente ao reencarnar sem essa recompensa? - E deu um rápido sorriso sarcástico
Orfeu continuou a anotar:
"A caverna é a boca do demônio Planta-Leão, e acho que agora finalmente entendo o simbolismo desse personagem: O aspecto 'planta' parece representar o mundo natural, a fertilidade e o nascimento, como a natureza, simbolicamente, sempre costuma representar, tendo em vista, por exemplo, deusas como Gaia e Perséfone. Esse simbolismo sempre costuma ser associado a coisas boas e à figura materna, se ligando com a vida. A Congregação renascida, no entanto, sendo baseada em uma repugnação da vida, que vêem como ilusão, também repugna o símbolo da natureza, como uma armadilha sedutora, uma motvação a viver (e, portanto, a pecar), e conseguiram, para minha surpresa, inverter o significado de símbolos que eu considerava tão básicos ao ser humano. A natureza não é algo bom, não é associada à figura materna, mas sim ao demônio. O próprio perfume das plantas se torna algo demoníaco."
- O demônio dos mortos-vivos é a própria vida e a morte, a salvação - Explicou Zara, falando baixo para Orfeu - A morte, no entanto, é apenas uma passagem para o "paraíso" que eles chamam de "Eterno Descanso", que está do lado de fora da caverna.
O fiel incomodado com os sussurros olhou para trás de novo. Nenhum dos dois se importou: Após ouvir aquele sermão, ninguém consideraria um deles digno de muita atenção.
- E o que existe nesse paraíso? - Perguntou Orfeu, sussurrando mais baixo ainda para Zara.
- Eles não sabem. Só sabem que lá não existe vida, e isso já é o paraíso para eles - Respondeu Zara, com bem menos preocupação com o volume da fala.
Orfeu não se surpreendeu com essa resposta. Tudo fazia sentido agora:
- Agora eu entendi - Ele sorriu levemente, mas com um desprezo involuntário, enquanto olhava panoramicamente para a massa de fiéis à sua frente - Agora eu entendi porque eles são conhecidos como "Mortos-vivos".