DIA SEGUINTE

- Não fale comigo agora, filho, pois estão querendo a minha cabeça no emprego!

Esta frase acordou Cássia, trazendo para o mundo a aflição do seu marido, o seu esposo absurdo, que se mostrou tão diferente do dia anterior ao usar uma expressão agressiva logo de manhã, após um telefonema da empresa onde trabalhava.

- Eu conheço aquela alcateia! Todo mundo quer comer todo mundo!

Quanto medo acumulado! Tal desespero levou Cássia a perceber que o sujeito ali em agonia e diante do espelho do banheiro e da lâmina de barbear , não poderia ser o homem com quem casara, seu esposo querido. Por isso, Cássia concluiu estar agora convivendo com outro tempo presente ou outra frequência de um ser semelhante ao próprio marido, não sendo bem o seu marido. Uma outra frequência de outra criatura seria a única explicação diante da tão impactante mudança de comportamento. No dia anterior, o homem ali remexendo papeis havia sido tão gentil... em todos os momentos.

Os dois saíram juntos com o filho pequeno e, mesmo na direção do carro, o esposo não trocava a marcha sem antes segurar a sua mão de esposa querida e beijar-lhe. Comprou até rosquinhas de milho porque lembrara do gosto da mulher e tudo foi sensível, inclusive a chegada das rosquinhas. Tão amoroso ele se mostrou e agora a estupidez do medo do emprego.

Cássia concluiu, com certeza era um outro homem. A lógica da vida é medonha em sua sabotagem. Cássia foi mais longe: "Não preciso ser muito intuitiva na percepção das regras. Tudo no mundo muda!".

- Ajuda aqui no café, querida!

Cássia levantou-se e prosseguiu no devaneio. Todo ser humano vive diversas realidades com o passar dos anos. O que fora a infância, a adolescência? Aquele mundo de amigas de escola existiu? Porque não concluir que não há nascimento, nem morte, nem exames finais do ensino médio. Trafegamos por universos diariamente ajustados. As pessoas não são as mesmas do dia anterior (nem nós somos os mesmos). Existimos apenas como criaturas dentro desses concertos transitórios. Eles terminam um dia, no fim de nossa capa anatômica, no tal limite chamado morte.

Algo do marido partia rumo aquele escritório que logo desaparecerá para continuar depois, em outro despertar, com novas pessoas, novos ajustes absolutamente incertos: um século qualquer de uma cidade precária. “Talvez retornemos à pré-história!”- pensou Cássia. O marido já adiantava a sua futura forma de dinossauro réptil incapaz, abrindo e fechando a geladeira.

- Ajuda aqui no café, querida! Por favor!

Quanta escassez mental vinda do infeliz! Cássia sentiu ter vindo ao mundo apenas para amar...não há café neste instante. Ela respirou fundo, percebeu o seu eu interior e lembrou da longínqua Islândia. Ali era possível ver de um lado a placa tectônica americana e de outro a placa europeia. Estão separadas por um grande abismo, onde no fundo a terra era de ninguém. Cássia se sentiu olhando o tal abismo... Fixou-se no abismo, viu a xícara de café vazia do marido e, de súbito, a morte do marido que disse:

- Estou indo, querida! Reze por mim.

do livro: Óbitos em Copacabana

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 12/11/2016
Reeditado em 28/12/2019
Código do texto: T5821578
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