Mil passos para o sol
Era uma criança diferente das demais. Com seus olhos alegres, boca sorridente. Não a lembro de outra maneira. Sozinho, brincava, dançava na rua, e observava o sol.
Diariamente, o ponteiro do relógio avisava-me a hora de adentrar aquela rua estreita, com a calçada mal feita, de casas mal pintadas, luzes baixas, e árvores secas. Essa visão horripilante, logo, se apagava da memória, pois ao passar em frente, da casa de número 603, lá estava ele, com seu sorriso de sempre, nunca entristecido e sempre contente, observando o seu querido amigo sol.
Havia dias em que desejei como nunca o extermínio da civilização, das pessoas indecentes, do conformismo barato que os cegam, da falta de amparo aos carentes, e da sujeira que os corroem e os perseguem. Não desejava nem o privilégio da visão, da fala e do tato. Gostaria de ser uma pedra, parada, ao lado, de um artefato. Pronto pra explodir.
Mas todo esse instante evaporava ao ver aquele simples menino sorrir. Não hesitei e aproveitei o mágico instante para fazer a pergunta: - O que há de tão especial em olhar para o sol? - foram momentos de silêncio e aflição.
O menino não hesitou e respondeu : - Não há nada, ele é meu amigo e mora no meu coração.
O silêncio fundiu-se a luz do sol e se transformou em um momento eterno.
Fiquei muitos dias sem adentrar a rua do menino. Sem entender o porquê de olhar o sol, o dia inteiro, sorrindo.
Após uma longa espera por uma resposta, pela rua do menino, adentrei. Olhei para as mesmas árvores, a mesma calçada mas lá o menino não encontrei.
Caminhei até parar em frente a casa de número 603. O silêncio dominava toda aquela rua escura. Havia apenas um bilhete, deixado pregado na porta, que dizia assim: "Agradecemos toda a ajuda e a respeitada consideração. Nosso menino, hoje está presente em nossos corações".
Olhei o chão, a calçada, as casas e nada senti.
Olhei para o céu e vi o sol.
Apenas lembrei-me de quando o via sorrir.