Uma história das Histórias

Todos sabem que o Boto cor-de-rosa se transforma em homem à noite para conquistar jovens mulheres em festas. Ele se torna um belo rapaz, alto, muito bem vestido, e sempre esconde o orifício no topo da cabeça com um estiloso chapéu branco. Dormir com essas mulheres sempre fora o seu prazer, e nunca se apaixonou. Mas nem sempre seria assim, pois ele conheceu Joana.

Joana era extremamente religiosa, e não ia para essas festas noturnas. Mas, por insistência de uma prima sua, acabou indo somente em uma.

O homem já estava se transformando novamente em boto quando viu Joana, e por isso não pôde ir até ela, mas aconteceu com ele o que muitos chamam de "amor à primeira vista". Mas esse sentimento é muito questionável quando vem de um homem. Ele a desejava mais do que tudo.

Como ele, pela manhã, sempre volta a ser um boto por pura magia, nunca teria chance de passar a vida com sua amada. Então ele se lembrou de um velho demônio da floresta, o qual acreditava que poderia resolver isso.

Numa noite de transformação, ele, relutante, deixou de ir às festas e foi convocar esse demônio, por muitos chamado de Cuca. O ritual para convocá-la era ir até o centro da floresta à noite, de olhos vendados e regar a terra com algumas gotas de sangue. O Boto o fez: rasgou um pedaço de seu charmoso terno branco, vendou os olhos. Mas antes ele pegou uma pedra afiada do chão para poder realizar a segunda parte do ritual de invocação.

Ele andou pela floresta. Quando tropeçava em algo, nunca sabia se esse algo era uma raiz ou uma cobra. Todos que invocam a Cuca têm que andar no escuro dessa floresta, e deixar-se levar ou por intuição ou por alguma magia antiga. Muitos alegam que, em meio à escuridão, alguém ou alguma coisa pega em sua mão e o guia até o centro da floresta. E essa coisa não poderia ser vista por ninguém.

O Boto não pegou na mão de ninguém. Mas, ele não podia negar, havia uma presença ali com ele, que parava de andar quando ele parava, que respirava perto do seu rosto. Ele até pensou ter sentido uma mordida nos calcanhares, e apertou o passo por isso. Ali, vendado, aquela coisa poderia possuir qualquer forma. E já ouvira falar que quem tira a venda para encará-la vê a si mesmo em sua frente, enlouquece e se perde na floresta. Mas continuou sua caminhada. Ele também era uma criatura mágica, estava familiarizado com magia, mas não podia deixar de estar um pouco apreensivo. Afinal, só o medo poderia levar alguém ao centro da floresta.

Até que, num certo momento, ele sentiu que havia chegado no lugar certo. Retirou a venda. Não havia ninguém. Mas sentia aquela estranha ausência que permanece quando alguém acaba de deixar o local em que estava.

Pegou a pedra afiada do bolso. Fez um sorriso na mão esquerda. Ela sorriu e derramou sangue na terra.

E ela apareceu. Brotou como uma árvore do chão. Estava presa por muitas raízes, como cordas, e as mordia com dentes afiados para se libertar. Ela era velha como o tempo.

-Quem ousa retirar a Caveira, o Demônio(1), o Sorridente Réptil de seu tão adorado e maligno sono sob as árvores?

-Me chamo Boto, Sra. Cuca. E venho aqui por amor.

-Todos vêm aqui por amor, direta ou indiretamente. A questão é, o que você está disposto a fazer por amor?

-Quero deixar de me transformar em boto, para assim poder ficar próximo da minha amada para sempre e tê-la para mim.

-Ah, os homens, sempre abdicando de sua identidade, pois esta não lhes satisfaz tanto quanto a identidade que eles encontram na dominação de uma mulher.

-Eu estou apaixonado, coisa que, acredito, um demônio como você nunca saberia o que é.

A coisa estranha e velha riu. Pareceu ao Boto o som de raízes se arrastando sob a terra.

-Nós, meu filho, é que criamos as paixões. Eu posso realizar o seu desejo. Mas tudo exige um preço.

-Estou disposto. Qual é?

-Seu sangue.

O Boto estendeu a sua mão, que cortou para poder convocar a Cuca.

A velha balançou a cabeça negativamente.

-Não esse.

Ele olhou para a mão, se perguntando o que havia no sangue de incomum que motivara a recusa da Cuca.

-Como assim?- perguntou o Boto. Mas o demônio já não estava mais ali, e nem a floresta.

O homem passou a noite andando pelos arredores. O sol já parecia um olho semicerrado no horizonte quando ele se deu conta de que não se transformara num boto.

Ele, então, começou a pensar numa forma de conquistar Joana. Não foi difícil. Ela era religiosa, então ele se tornaria membro do clero local.

Com muita lábia, a especialidade do Boto, ele, dentro de alguns dias, se tornou parte do clero da igreja do vilarejo, convertendo-se com a maior facilidade.

Joana aparecia na igreja todos os dias e, com sua conversa quase hipnótica, o Boto se aproximou muito da moça, embora isso tenha levado mais alguns dias do que a sua entrada no clero.

No momento mais oportuno, o Boto levou Joana para perto do rio para tomá-la para si.

-Mas senhor- dizia Joana, relutante- não deveríamos estar fazendo isso. Não é certo. O senhor fez voto de castidade, e além disso todos sabemos que a punição para uma moça que tem relações sexuais com um membro do clero é se tornar... Algo... Estranho.(2)

-Mas eu não sou padre de verdade. Não se preocupe.

-O que o senhor quer dizer com isso?

Mas o Boto estava acostumado a lidar com a relutância das mulheres com quem dormia e, ali mesmo, na beira do rio, ele a engravidou.

A criança nasceu saudável, mas o Boto se enganara sobre o amor à primeira vista. Só a ideia de ter uma família e criar um filho o assustava, e não poderia mais ser livre para deitar nas águas ao dia e, à noite, deitar-se na cama de mulheres casadas. Foi embora no dia do nascimento da criança, e novamente convocou a Cuca.

-Pronto, anciã estranha, pode me devolver o poder de me transformar em boto.

-Sua paixão foi boa, homem?

-Das melhores. Mas, sabe... Eu sou O Boto. Não posso ter uma vida de humano.

Ela olhou para ele com aquela sua face que parecia de madeira, olhos que pareciam olhar de todos os lugares. Ela era a floresta.

-Mágicos ou não, homens são o que são.-disse ela em tom de reprovação. -Você é um padre, não é?

-Não sou não.

-Você entrou oficialmente para o clero, não entrou? Mesmo que não tenha sido o seu desejo, você se tornou um padre legítimo. Por vontade própria.

-Sra. Cuca, eu só quero poder nadar despido novamente nessas lindas águas. Me deixe fazer isso.

-Uma mulher teve relações sexuais com um padre.

-Eu não sou um padre!

-Olhe para trás.

O Boto olhou, assustado.

Joana vinha correndo com o bebê nas mãos, ainda sangrando. Estava muito vermelha, o Boto pôde observar isso quando ela se aproximou o suficiente. Ela entregou o filho nas mãos do Boto, com um olhar de "ele é responsabilidade sua". Depois de fazer isso, ela se afastou e foi aí que tudo ficou bem estranho.

De repente, os ossos da moça começaram a se quebrar. Seu grito era capaz de acordar os mortos e pô-los para correr com medo. Joana aumentava de tamanho assustadoramente. Seu cabelo começou a cair. Suas mãos e pés se contorciam e ficavam duros e pretos. Sua boca se abriu até sua cabeça virar do avesso, e dela saiam poderosas chamas, chamas que fariam o inferno parecer um paraíso. O corpo era de cavalo.

-Seu demônio maldito!!- Vociferou o Boto para a Cuca- Esse era o seu preço? Meu Deus, pare com isso agora! Nunca desejei mal a nenhuma das mulheres com quem dormi!!

-Esse não é o meu preço, homem. A punição para uma mulher que dorme com um padre é essa, todos sabem. Isso apenas acontece.

O Boto segurava o bebê, que chorava. A Cuca pegou as raízes que outrora a prendiam e começou a açoitar a mula sem-cabeça, expulsando-a de lá para que ela não queimasse sua floresta.

Joana, agora mula, saiu correndo pelo vilarejo incendiando as casas e matando todos os homens que encontrava com seus afiados cascos.

O Boto, então, reconheceu o mal que fizera, e se deitou em lágrimas. Se viu agora realmente responsável pela criança. Chorou com o pequeno em seus braços. E, um tempo depois, a voz da velha o lembrou de que ela estava ali.

-Esse é meu preço-Disse a Cuca estendendo um dedo longo e apodrecido- A criança.

-O que?! Ela está sob meus cuidados, bruxa, tenho que cuidar dela, só assim, talvez, um dia eu consiga me perdoar desse mal que causei para a mãe dele e para todo o vilarejo.

-O que você fez é imperdoável. A criança, agora. Ou você morrerá da pior maneira possível. Ela tem sangue mágico, é filha de uma criatura mágica, e preciso de um ajudante desse porte para minhas tarefas malignas. Dê-me o menino.

O Boto se recusou firmemente.

-Você que pediu, homem.

A Cuca não aparentava ser forte. Muito pelo contrário, parecia mais uma árvore seca. Mas o que os demônios sabem fazer de melhor é aparentar ser. Ela tomou o bebê à força e, depois, pegou o Boto pelas pernas e o arrastou até a beira do Lago Sussurrante, e lá o jogou.

O lago possuía esse nome porque no fundo dele havia homens mantidos vivos por algum tipo de magia, dos quais a bela Iara se alimentava lentamente. Eles gritavam, e seus gritos chegavam à superfície do lago tão baixos quanto sussurros. Quando Iara viu o presente da Cuca se afogando no lago, foi lá e tomou-o nos braços. Ela falou:

-Ah, Boto, eu nunca poderia comer um animal que vive no mesmo meio em que eu vivo. Mas sempre soube que você era um homem por dentro. Só precisava esperar o dia em que você entraria na água em forma humana. Eu te amo tanto agora.

E o levou para o fundo do rio. Seu grito se tornou um sussurro.

A Cuca criou a criança de um modo severo. Ensinou-lhe as tarefas malignas que deveria fazer para ajudá-la.

A criança não podia sair da floresta. Ou pelo menos não poderia ser pega saindo de lá. Então, um dia, conseguiu escapar da observação da Cuca, dizendo que ia colher ervas especiais. E saiu da floresta.

Mas a Cuca era a floresta.

Lá fora, no vilarejo, conheceu outras crianças de sua idade, com as quais brincou e se divertiu o dia inteiro. Ele fez isso por vários dias seguidos.

Até que um dia, quando voltou para a floresta, a Cuca já esperava por ele.

-Se divertiu, criança?

O menino estava assustado, e falou com uma voz relutante:

-Sim, senhora. Mas, por favor, foi só um dia, não me bata por isso. Foi tão divertido! Queria saber porque não posso ter uma vida como as outras crianças têm, sem obrigações diárias, sem noites de vigília... E lá fora é tão... Sei lá... Parece que consigo respirar melhor lá fora.

-Isso é o que você realmente quer? Ficar perto daquelas crianças?

-Bom, Sra. Cuca... Se não tiver problema para a senhora...

-Claro que não. Aliás, você até pode trazê-las até aqui. Vá chamá-las.

-Que maravilha! Vou lá agora mesmo.

-Mas, antes, me passe aquele pedaço de galho pesado.

Ele o fez. A Cuca olhou para a criança. Olhou para o galho. E falou:

-Maldito.- E quebrou os pés do garoto com o galho. Ele urrou de dor.

A Cuca dizia entre dentes, a cada golpe:

-Você... Não... É... Como... Os outros!!

Parou. Depois, falou:

-Pois é, parece que você herdou o coração mole dos humanos. Eu já sabia que isso não ia dar certo. Eu sempre percebi que você nunca realmente se entregou às artes malígnas. Nunca estava presente no que estava fazendo. Sempre quis, por algum motivo, conhecer outras coisas. Um coração assim não aceita as trevas. Não serve mais pra mim.-E deixou o garoto lá, chorando. Sozinho.

O menino não saiu do lugar. Depois de muito tempo, se levantou com dificuldade. Seus pés estavam quebrados. Tortos.

Ele começou a andar, já não se importando com a dor. E não parou mais.

Muitos dizem, ainda hoje, que conseguem ver às vezes um garoto de andar estranho caminhando entre as árvores da floresta, com um olhar triste e louco. E algumas crianças curiosas que foram investigar seguindo suas pegadas acabavam, estranhamente, se afastando dele. E sumiam.

Notas:(1): na lenda original, a Cuca não é um jacaré. A palavra Cuca é um derivado de termos como coca e coco, usados antigamente na Espanha e Portugal para designar coisas como demônios ou caveiras. Fonte: revista Mundo Estranho, edição 98, ano de 2010.

(2): informação obtida na mesma revista

Lumontes (Lucas Montenegro)
Enviado por Lumontes (Lucas Montenegro) em 04/11/2016
Reeditado em 08/11/2016
Código do texto: T5813176
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