Sobre canções mais velhas que o Tempo

Nas noites de tempestade Sally Montague sempre se abraça à sua gata preta chamada Lice e espera ser protegida pelo frio amor felino.

Mas ela sabe que não há proteção nenhuma. Porém, acreditar nisso torna tudo mais fácil. Abraçar alguém não é só uma coisa física. Sally não sabe que sabe disso, mas sente tal sensação em algum lugar do seu infinito.

E a garota se concentrava na maciez negra de Lice e em seu ronronar, que era como trovões distantes que galopavam para mais longe ainda. Mas os trovões reais sempre voltavam para a assustar, desdenhando do céu e da terra com uma fúria ensurdecedora.

O céu parecia um frágil manto negro sendo rasgado por unhas de prata e fogo, monstros e coisas.

Era assustador para Sally pensar nisso, não só porque o céu poderia cair e revelar os monstros e coisas, mas porque ela sentia um grande remorso pelas estrelas. Imaginava as estrelas chorando sob as garras dos monstros e coisas.

Sally até lembrava de uma cantiga popular que ouvira na escola, que dizia respeito a tempestades:

"Lágrimas de tempestade caem pelo trovão

Estrelas trêmulas temem algo

No reflexo do negro lago

Monstros e coisas e a salvação"

A letra possuía mais versos, mas Sally não conseguia se lembrar de mais nada.

Mas Sally se assustou mesmo foi com o próximo raio: ao iluminar seu quarto por um momento de intensa claridade fria, o raio revelou que Lice havia sumido. E a tempestade estava piorando de um jeito que Sally nunca vira antes. Não sabia se estava ficando louca, mas a garota podia jurar que ouvia os desesperos e súplicas das estrelas na voz do vento. E os trovões pareciam gargalhadas graves.

-Lice? Cadê você, menina?- Sally lutava para pronunciar cada palavra trêmula.

Nada de resposta da gata. Claro que Sally não esperava uma resposta do tipo "oi, estou aqui", mas algum outro tipo de sinal.

A garota se encolheu no cobertor ao som de mais uma gargalhada de prata da tempestade. E, por um breve momento, viu que a janela estava aberta.

Sally levantou-se correndo.

-Lice, volte! Não é seguro sair pela janela numa tempestade dessas! Está me ouvindo?

Dessa vez Sally ouviu outra voz:

-Só sei que tenho um trabalho a fazer, e que ele é feito há séculos por nossa estirpe.

-Quem está aí?- perguntou Sally assustada.

-Aqui em baixo.- disse a voz feminina.

Sally se sobressaltou ao descobrir de onde vinha a voz.

-Lice! Você fala!...

-Deveras- disse a gata em tom de superioridade- Todos os gatos falam. Enfim, fui convocada para fazer um trabalho que, como disse, é realizado desde muito tempo, desde o aprisionamento da Lua.

Sally pulou pela janela, que ficava bem perto do chão, e ficou ao lado de Lice.

-Nossa... Quem te convocou para esse... trabalho?

-A lua. Ela quer que eu salve as estrelas, suas filhas.

-E por que diabos ela mesma não faz isso?

-Ela não pode. Está aprisionada, como falei, naquela pedra branca e esférica, e lá permanecerá até o fim deste mundo.

-Ué- disse Sally, confusa- O nome dessa "pedra esférica e branca" é lua.

-Não, humanazinha- disse Lice, revirando seus olhos verdes com pupilas verticais- Lua é a mulher que está presa na pedra. Ela salvava suas filhas antes, mas foi aprisionada pelos monstros e coisas, que fazem as estrelas de escravas utilizando os raios para açoitá-las. Na maioria das vezes o que ocorre lá em cima é uma perseguição sem sucesso, mas quando os monstros e coisas conseguem prender as estrelas elas choram como nunca antes, formando essa chuva que parece ser um pouco mais grossa do que o normal. Bom, pelo menos até um gato salvá-las .

-E como é que vocês fazem isso?

Era a primeira vez que Lice era convocada para salvar as estrelas,mas as tradições não morrem entre os gatos, então ela sabia muito bem como executar seu trabalho.

-Se está realmente interessada nisso, me siga. Se foi uma pergunta retórica, fique onde está. Humanos têm talento natural para estragar o que tocam. São uma espécie de versão contrária do rei Midas.

Sally não sabia se achava a gata fofa ou se se sentia desprezada por ela. Mas a quis seguir mesmo assim.

Lice começou a andar com imponência e com a calda levantada, e Sally se deu conta de que a gata não estava molhada.

-Por que você está seca?

-As estrelas sabem que gatos não gostam de água. Por isso elas não choram em cima de nós.

-Mas há chuva por toda parte...

-Talvez na sua cabeça de humana as coisas funcionem assim. Você não tem culpa, criança. É uma condição humana não enxergar o seu mundo sem esse filtro que vocês chamam de realidade. O "olhar sem ver" ja é comum para vocês e...

-E vocês gatos, pelo que estou percebendo, são umas criaturas muito pedantes-disse Sally com rispidez- Eu vou cortar seu leite, e os carinhos na barriga também.

-Desculpe-me. Você pode ter razão. Além do mais, é perda de tempo tentar explicar as coisas como são para os humanos. E, por favor, não ponha o leite nessa história.

As duas continuaram a andar até que chegaram na margem de um pequeno lago. Ali, Lice parou.

-O que você vai fazer agora?- quis saber Sally.

-Bom, como diz na canção, tenho que beber essa água.

E Sally começou a se lembrar.

-Espera- disse Sally- Você está falando da mesma canção popular que fala das tempestades?

-Isso mesmo.

-Pensei que fosse só uma canção para assustar crianças ou sei lá...

-Nunca é "só" o que parece ser. As canções populares não são apenas lendas que as pessoas criaram para se confortarem. Elas guardam histórias tão remotas que nem o próprio Tempo se lembra delas. Elas sobrevivem porque os antigos humanos aprenderam a traduzi-las das músicas que a natureza canta para a linguagem falada. Embora essa tradução não seja inteiramente confiável.

-A natureza canta?

-Sim. As folhas sorriem melodicamente. As montanhas gritam em grave e retumbante silêncio ao se moverem lentamente pela terra. E o vento espalha as canções por aí, até que um dia chegaram aos ouvidos humanos.

Sally gostou disso. E começava a se lembrar cada vez mais da canção. Essa lembrança veio mais forte quando o vento começou a soprar mais:

-"O céu no chão derramado

Espelho traiçoeiro

Que espera no nevoeiro

A língua de um corajoso gato"- cantou Sally.

-Isso mesmo- disse Lice, e Sally percebeu que sua voz tremia. Olhou para a gata, que também tremia.- "Espelho traiçoeiro". Estou com medo, Sally.

-Medo de que?

-O lago esconde a salvação, mas também os monstros e coisas refletidos ali junto ao reflexo das estrelas. Se eu não for rápida o bastante serei puxada para o fundo e ficarei presa no lago e também no céu. E serei escravizada. Ou morta.

-Eu estou aqui com você. Você sempre foi minha gatinha, e não será diferente agora. Nós humanos podemos parecer inferiores para vocês gatos, mas você não é superior ao amor que tenho por você. Venha. As estrelas devem ser salvas. Se nosso destino for arder sob os chicotes de raio lá em cima com elas, então que façamos isso juntas.

Lice relutou um pouco, assentiu e tomou coragem.

A gata e Sally foram se aproximando do lago.

"Lamba o reflexo das estrelas

Retire-as do lago fundo

Retire-as do mundo

Para que não se apaguem como velas"- sussurrou o vento, numa linguagem velha e empoeirada há muito já esquecida, a qual Sally conseguiu entender e até cantar junto nessa mesma língua. Como conseguiu fazer isso, não se lembra.

A gata então começou a lamber a água, lamber os reflexos das estrelas. E a cada lambida um reflexo sumia do lago. E sumia também do céu.

Lice já estava quase terminando seu trabalho, que estranhamente não apresentava dificuldade nenhuma.

-Você está indo muito bem Lice. Eu estou aqui do seu lado, não vou deixar você.

Lice se virou para agradecer. E foi nesse momento que uma mão negra com longos dedos e longas unhas brancas como raios saiu do lago e puxou Lice com força para baixo, no mesmo momento em que um trovão riu no céu.

Sem pensar, Sally mergulhou com roupa e tudo no lago frio.

Lice estava lá, com olhos arregalados em baixo d'água e caindo mais e mais para o fundo. Sally viu também os olhos do monstro, ou da coisa, sorridentes.

Sally alcançou as patas de Lice e, com um chute na cara da criatura, tomou impulso para cima.

Ao emergir do lago, Sally jogou a gata para terra firme de qualquer jeito e se agarrou à vegetação da margem do lago para sair da água. E conseguiu.

A criatura colocou a cabeça para fora da água e gritou, e o som foi de trovões. Depois de um tempo agonizando de ódio a criatura submergiu novamente, e não voltou mais.

Depois de se recuperarem do choque abraçadas, gata e garota perceberam que já não chovia mais. A superfície do lago voltou a ser um espelho negro. Não havia reflexos. Sally olhou para cima, e o que viu foi nada. O céu estava sem estrelas. A lua estava lá, e só.

-Olha só, Lice. Você conseguiu! Salvou as estrelas!

-E você me salvou. Sou-lhe eternamente gata. Digo, grata.

Sally sorriu.

-Puxa vida, nós passamos pelas mesmas situações que a canção diz. Como um roteiro. Reproduzimos essa história da maneira mais fiel!

-O passado está sempre sendo reproduzido, mas não é possível fazê-lo de maneira fiel. Sempre há algo novo, ou falta algo. Ainda mais nesse passado ignorado pela maioria das pessoas e pelo Tempo. Esse passado sobrevive nas canções populares. Esse é um passado mágico, fantástico, do qual as pessoas não se lembram ou não querem se lembrar. Há magia em cada coisa do dia a dia, basta saber olhar. E graças a você vou poder observar essa magia por mais alguns anos.

As duas se abraçaram mais uma vez e caminharam para casa. Sally se sentia como num sonho.

Mas Lice não. Ela SABIA que estavam num sonho. Mas nem por isso as coisas deixam de acontecer. E a gata estava tão exausta que teve um sonho dentro do sonho. Sonhou que deu à luz milhares de filhotes, todos brancos como as estrelas. Mas não era como se ela estivesse grávida. Estava apenas devolvendo algo para o mundo. E os filhotes saíram voando para o céu, permanecendo lá ao lado de sua verdadeira mãe, a Lua aprisionada.

No dia seguinte Sally acordou com uma sensação de que havia vivido uma aventura muito improvável e desgastante. Ela sabia que tinha vivido, mas não conseguia se lembrar. Ela achava muito injusto não conseguir se lembrar dos sonhos.

Mais tarde, à noite, ela percebeu que as estrelas brilhavam como nunca antes. Ainda não se lembrava de quase nada, mas soube de imediato que sua aventura na noite passada tinha realmente acontecido em outro mundo. Ela sentia isso na voz do vento.

Lumontes (Lucas Montenegro)
Enviado por Lumontes (Lucas Montenegro) em 03/11/2016
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