Fragmentos de Tempo e Fronteiras Costuradas

Até onde vai a percepção e começa a imaginação? A fronteira entre esses elementos existe? Ou é imaginaria? Se for, então tudo é imaginário.

Sally presenciou coisas durante sua vida que até hoje ela não sabe dizer se foram reais. Às vezes há acontecimentos tão incertos e inexplicáveis que a memória não consegue diferenciar entre ficção e reaildade, e acaba interpretando tudo como uma coisa só.

As fronteiras mentais são mais concretas do que as físicas. Na verdade, as físicas nem sequer existem. Não há fronteiras entre bairros, cidades ou entre países vizinhos. Só a débil crença das pessoas de que um lugar acaba em certo ponto e, a partir deste, começa outro lugar. E as barreiras esculpidas pela crença humana são as mais difíceis de se derrubar.

Mas e a barreira entre percepção e imaginação? Muito pelo contrário, é a mais difícil de se erguer.

Sally não sabe que conhece tais reflexões, mas conhece. E é assim, despreocupada, que ela anda numa tarde fria pelos gramados da vasta propriedade de sua avó, Rosa Montague, entre redondos arbustos, lagos feitos de vidro líquido e pequenos bosques com aroma de sonho verde.

Ela brincava de seguir esquilos até eles sumirem de vista nos arbustos e nas árvores. Ou até eles simplesmente sumirem; uma hora estavam lá, na outra não estavam mais.

Sally também adorava ouvir as conversas dos esquilos e dos outros animais. Enquanto ela ouvia a Mamãe Esquilo dizer aos filhotes que chegara com o almoço, dois pássaros passaram por cima de sua cabeça, e Sally jurou ter ouvido a seguinte frase:

-... no Tempo. E agora tudo pode se perder. De novo.

A garota achou muito intrigante o fato dos pássaros falarem em um tom tão preocupado e grave. Correu mais ainda para o interior do pequeno bosque para acompanhar os pássaros e ouvir o resto da conversa.

Chegando perto de um arbusto que acreditava já ter visto antes, Sally parou ofegando. Minutos depois ela viu o que pensou ser a Mamãe Esquilo novamente chegando com o almoço para os filhotes. Quando Sally se deu conta de que estava tendo um "dejavu", os mesmos pássaros sobrevoaram por cima de sua cabeça de novo, e um deles falou:

-Já é a décima vez que isso acontece nesta versão do Universo. Houve uma fragmentação...

Sally não entendia nada, mas continuou seguindo os pássaros, cada vez mais para dentro do bosque. Tanto que seu mundo agora se tornara cercado de verde e neblina, de modo que a garota não sabia mais onde estava, não mais reconhecia as fronteiras entre as coisas. Não mais sabia até onde ia sua mente ou até onde ia o mundo.

Sally se sentou para descansar, e a solidão sentou-se ao seu lado. Ela começou a sentir muito frio.

Minutos depois (ou antes? A garota não sabia dizer. O tempo estava estranho naquele dia) Sally viu os mesmos dois pássaros que falavam sobre tempo e fragmentação. Ela ia chamá-los, mas nem foi preciso. Eles pareciam surpresos em vê-la, até aliviados.

-Olha só! Uma humana! - disse o cardeal, cuja cabeça vermelha parecia uma rosa em chamas.

-Isso tornará nossa busca deveras menos penosa. Com o perdão do trocadilho inoportuno, Mestre Cardeal.- disse o outro, um corvo.

-Quem são vocês?- disse Sally. Por uma fração de um piscar de olhos ela se viu em outro lugar, correndo atrás de esquilos. Depois, ao lado dos pássaros levantando uma pedra pesada. Depois, voltou para si.

-Ora, eu sou o Velho Corvo, é claro. E este cabeça quente aqui, com o perdão dessa piada infame, é o Mestre Cardeal.

-Ao seu dispor- disse Mestre Cardeal, curvando-se e levantando a calda para o alto.

-Está tudo muito estranho. Tenho visões de coisas que já fiz e de coisas que talvez faça depois. O que está acontecendo?

O Mestre Cardeal falou:

-Já é a décima vez que isso acontece nesta versão do Universo. Houve uma fragmentação no Tempo. E agora tudo pode se perder. De novo.

Sally viu sua avó costurando, mas a visão morreu rapidamente nos olhos do Tempo. Quando se recuperou, ela disse:

-E o que isso quer dizer?

-Ora, nada. -disse o Velho Corvo, erguendo suas asas aveludadas- Além de que o Tempo foi fragmentado, é claro. Se dividiu nas Três Partes.

-Quais "três partes"?- quis saber Sally. Não sabia se aquela conversa seguia uma linha cronológica. Ora ela ouvia os pássaros se apresentando de novo, ora ouvia ela mesma falando.

No meio dessa confusão, Mestre Cardeal falou:

-O Tempo só possui três partes possíveis nas quais pode se fragmentar, criança. Passado, Presente e Futuro.

-Ué- disse Sally.- Mas isso já não acontece naturalmente? Digo, o passado está separado do hoje, pois já acabou. E o amanhã ainda nem chegou... Nenhum deles está unido ao outro.

-Está sim, é claro.- disse o Velho Corvo- Acontece que a mente humana é que separa essas três partes. Na verdade, todas elas estão unidas em uma só, como um longo Presente, tudo acontecendo agora. O Passado nunca morre, e o futuro, com o perdão do clichê, é agora.

-E como a mente humana é a única que percebe todas essas três partes separadamente- continuou Mestre Cardeal- , você nos ajudará a encontrar os fragmentos do tempo e reuní-los novamente, antes que o Passado se perca e o Futuro nunca aconteça. E que o Presente se torne ausente.

-Com o perdão da rima, não é, Mestre Cardeal?

-Deveras. Com o perdão da rima. E então, moça? Não vai se levantar e nos ajudar?

-Tudo bem, vou ver o que posso fazer. Mas, me digam: se não houvesse nem passado, presente ou futuro para se viver, onde viveríamos?

-Nem queira saber-disse Mestre Cardeal.

-Nem queira saber. Com o perdão da repetição.-disse o Velho Corvo

Juntos, Sally e seus dois peculiares novos amigos foram em busca do tempo perdido.

Sally sentia que andava muito lentamente às vezes, e noutras cada passo parecia avançar dez passos de uma só vez. Ou em outras vezes sentia que estava andando para trás e saindo do bosque. Mas os pássaros sempre estavam ao seu lado.

De repente Sally sentiu que alguma coisa chamava sua atenção. Não sabia como, mas acreditava que embaixo de uma pesada pedra jazia um fragmento de Tempo. Correu até lá, levantou a pedra com dificuldade. Um objeto disforme e empoeirado que se mexia com a lentidão dos pensamentos de uma pessoa velha. Quando Sally estendeu a mão para apanhá-lo, viu a si mesma muito pequena, sendo amamentada pela mãe, e várias cenas da sua vida antes do que se passava agora.

Aquele fragmento era o Passado.

-Muito bem, pequenina!- disse o Velho Corvo.- o Passado já foi. Com o perdão do trocadilho.

Os três andaram mais, em que direção ou velocidade Sally não saberia dizer. E nem saberia dizer também por quando tempo. Poderia ter sido pelo tempo do bater de asas de um corvo, ou de uma eternidade.

Ou de um fragmento de tempo.

Sally até se sentia mais velha por conta do distúrbio causado pela fragmentação do Tempo.

Até que viu um brilho no buraco de uma árvore.

-Acho que aquele é o presente-disse Sally.

-Então muito cuidado, minha pombinha, para não perdê-lo.-disse Mestre Cardeal- O Presente é muito fugaz para os humanos. Sempre que tentam fixá-lo ele acaba se tornando Passado no mesmo instante. Escapa muito fácil das mãos.

Assim que o Mestre Cardeal disse isso, um esquilo saiu do buraco da árvore com o Presente na boca. E correu.

-Pelas barbas do Tempo!- disse o Velho Corvo- Lá se vai o Presente.

-Não se preocupem- disse Sally.- Eu conheço aquele esquilo. É a Mamãe Esquilo. Eu sei para onde ela vai. Ou onde esteve... Tanto faz. Ela vai para perto daquele arbusto ali levar o almoço aos filhotes. Não temos tempo a perder, vamos!

-Eu perdôo esse trocadilho.- disse o Velho Corvo.

Os três chegaram e se esconderam no arbusto. Assim que a Mamãe Esquilo apareceu, Sally pulou em cima dela e retirou o Presente de sua boca. Quando tocou o Presente, Sally viu a si mesma pulando em cima de um esquilo.

-Excelente!- disse o Velho Corvo- você ganhou um presente. Com o perdão do trocadilho deveras óbvio.

"Se tem alguma coisa que eu não perdôo é o perdão de tantos trocadilhos" pensou Sally.

Depois, outra longa caminhada, ou curta. Demorada, ou rápida. Sally só sabia que estava se sentindo muito cansada agora, e velha demais. Ela se deitou no bosque, que já parecia uma densa floresta, ou uma praia, ou montanhas. Ela não tinha certeza. A fragmentação do Tempo também envolvia a incerteza sobre o espaço, tudo mudava. Pois é isso o que o Tempo faz com as coisas. Ele as muda.

Sally sentiu nas costas o peso dos anos que ainda viriam pela frente, chorou com esse peso. Lágrimas brotavam de sua face seca como flores de vidro no deserto.

Os pássaros ficaram preocupados e desesperados, gritando para mantê-la acordada.

Sally já sentia a alma desgrudando do corpo, já sentia seu nome ser apagado pelas ondas do Tempo tal como um nome escrito na areia da praia é apagado aos poucos pelas ondas do mar.

-Meus queridos pássaros, vivemos muitas aventuras juntos... Já chegou a minha hora. Meu Tempo se foi.

Os pássaros começaram a chorar.

Até que, momentos antes do seu último suspiro, Sally viu a si mesma, criança, andando em sua direção. E, nas mãos, a garota que era ela trazia o Futuro.

Assim que os dedos magros e velhos de Sally tocaram o Futuro, ela viu ela mesma muito velha, ao lado de dois pássaros empoleirados na janela. Ela costurava.

Sally voltou ao presente num piscar de olhos, à beira do bosque. Sentia-se nova e velha ao mesmo tempo, como se estivesse vivendo Passado, Presente e Futuro. Como se eles estivessem acontecendo juntos.

A garota estava aliviada, e sentiu que era hora de voltar para a grande mansão da Sra. Montague, sua avó.

No caminho encontrou o Mestre Cardeal e o Velho Corvo em cima de uma pedra.

-Você foi deveras espetacular, mocinha-disse o Velho Corvo.

-Obraigada!- sorriu Sally.- Mas ainda estou confusa. Como eu consegui encontrar os fragmentos de tempo tão fácil?

-Ora, nós já explicamos isso.- disse Mestre Cardeal.- A mente humana é a única que enxerga o Tempo dividido nas Três Partes. Por isso foi tão fácil pra você.

-Entendi. Lembrem-se de ter um humano por perto sempre que o tempo se fragmentar, então! Mas... Como isso aconteceu?

-O Velho Corvo leva o Tempo em seu bico. -disse o Mestre Cardeal.- Cada bater de asas dele varre a Eternidade pelo Universo. É o guardião do tempo. Suas garras arrastaram e arrastarão todas as vidas existentes, quando o tempo certo vier.

-Isso mesmo-disse o Velho Corvo, se gabando.

-Acontece que o Velho Corvo, de tempos em tempos, deixa o Tempo cair. O Tempo se fragmenta. E é isso.

-Ah tá...- disse Sally, e observou que o Velho Corvo ficara meio sem jeito com a exposição do seu descuido- Mas... Tudo isso realmente aconteceu? Foi real?

-Minha cara- disse o Velho Corvo-, mas é claro que nós não sabemos. Pergunte à sua avó se tal evento aconteceu dentro da percepção ou da imaginação. Ela deve saber, é a Costureira desse lugar.

-Hã??

-Ora, ela é a responsável por disfarçar quaisquer fronteiras entre percepção e imaginação por aqui.- disse Mestre Cardeal -Portanto, ela costura esses dois elementos para que não consigamos diferenciar suas fronteiras. Cada lugar tem sua Costureira. Mas o Tempo foi realmente fragmentado, não tenha dúvidas disso.

-Isso só pode ser piada. A vovó?

-É verdade, mocinha.- continuou o Mestre Cardeal- Por que você acha que todas as vovozinhas vivem costurando sem parar?

Ao fim dessa frase, Sally acordou na cama dentro da mansão da Sra. Montague. A avó estava costurando à beira da janela, onde havia dois pássaros empoleirados.

"Incrível!", pensou Sally, "a vovó nunca me disse que era uma bruxa!"

Na verdade não se sabe se a Sra. Montague é ou não uma bruxa. Ou se existem Costureiras da percepção e da imaginação. Afinal, tudo pode ter sido um sonho de Sally Montague. Mas o que intrigou Sally por muito tempo foi o fato de que sua avó nunca deixou ela mexer em suas costuras.

Lucas Montenegro

Lumontes (Lucas Montenegro)
Enviado por Lumontes (Lucas Montenegro) em 02/11/2016
Reeditado em 02/11/2016
Código do texto: T5811190
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