Nanazoku - As Crônicas do Grande Vale: Da Mãe Sol e do Pai Lua

“Tudo tem uma origem. Uma origem maior, mais profunda e que está na essência das coisas e dos seres. Uma origem inteligente, sábia e cercada de lendas”.

Passagem extraída dos Pergaminhos do Conhecimento

Marrom, branco, cinza e azul. Essas eram as cores do mundo no início. Ainda era seco e poeirento, com alguns pontos onde a água se acumulava, mas suas sólidas bases estavam estabelecidas e seus mais altos cumes estavam formados. A junção, através de processos que estão além da compreensão das mentes, dos quatro elementos primordiais, em pequenas e grandes estruturas, deram forma aos mares, montanhas, rios, planaltos e depressões. Logo em seguida efetuou-se uma longa espera para que brotassem as sementes trazidas dos céus pelos ventos. Assim, através do “Primeiro Sopro” nasceram as florestas e bosques. Assim surgiu a quinta cor do mundo: o verde. E as pequenas plantas e grandes árvores embelezaram as paisagens.

O local para o surgimento das primeiras plantas e árvores foi escolhido com cuidado. Um território cercado por belas e altas montanhas dava a proteção necessária contra ebulições climáticas que ainda moldavam a superfície. Como que uma imensa tigela rochosa o Grande Vale foi o berço das primeiras formas de vida vegetal. E para celebrar esse momento os Deuses Irmãos vieram pessoalmente ao mundo e tocaram seu solo virgem. Por um longo tempo ficaram, tamanha foi a alegria de ver o resultado da perfeita comunhão entre a água, o ar, a terra e o fogo, os elementos formadores das coisas. A Mãe-Sol e o Pai-Lua, irmãos e ao mesmo tempo marido e esposa, por um longo tempo caminharam na superfície da Criança-Mundo e sua presença trouxe a luz e o calor necessários para que o imenso tapete verde e as grandes árvores saíssem da terra e se estendessem pela vastidão do vale acolhedor. Os primeiros habitantes. E grande foi a alegria dos visitantes celestes.

Os deuses irmãos acompanharam o crescimento de cada porção de gramínea, cada árvore frutífera, cada um dos gigantes carvalhos, dos pinheiros, dos olmos, das cerejeiras, das palmeiras, das acácias, dos ipês e das inúmeras plantas que carregavam em sua essência substancias perigosas, necessárias para protegerem sua fragilidade, como também curativas, estimulantes, balsamizantes. Mas nas mentes da Mãe-Sol e do Pai-Lua, que agiam sempre em consonância, a terra não seria apenas herdada aos primeiros habitantes, mas sim, desde sua concepção no pensamento divino, eles teriam uma função primordial: dar suporte, segurança e acolhimento aos segundos habitantes. Aqueles que não nasceriam de dentro do seio da terra, mas sobre ela. E assim como os primeiros, também povoariam de beleza e movimento a superfície do mundo. Desta forma, do “Segundo Sopro” nasceram os animais em variedade. Não demorou muito para que os filhos do primeiro e segundo sopros estabelecessem comunhão entre si, alegrando-se mutuamente. Isso porque desde o início dos tempos a harmonia e o equilíbrio estiveram na mente celeste. E animais e árvores estavam em grande sintonia com esse princípio.

Nessa época perdida no tempo, da qual poucas vozes falaram e nenhuma memória recorda, Mãe-Sol e Pai-Lua se encheram mais uma vez de imensa alegria. E a terra e seus habitantes se alegravam com eles, dançavam com eles, pois sua presença era luz, era calor, era vida, e tudo em volta sentia essa abundancia. Os pássaros nos céus e as inúmeras espécies na terra e nas águas davam seu testemunho, aos pés dos deuses e sobre suas cabeças, da felicidade que pairava sobre os primeiros anos. Tão lindo era o espetáculo que os Deuses Irmãos fizeram dois grandes tronos, um de ouro e outro de prata, e os colocaram no topo de uma montanha. E assim, do alto de Amenawara, o maior dos picos naqueles tempos, olhos celestes passaram a contemplar o que haviam feito. E se alegraram mais uma vez. E na profusão de sentimentos de felicidade Mãe-Sol convidou Pai-Lua para uma dança de celebração. Neste dia a mais bela dança que algum dia já existiu ou que viria a existir teve início. E seus movimentos foram tão suaves, poderosos e profundos que sob seus pés nasceram as primeiras flores em imensa variedade de cores e perfumes. De suas pegadas nasceram também minúsculos seres que se beneficiariam desse novo mar de cores perfumosas. E da união da terra com as energias divinas vieram ao mundo as abelhas, borboletas, vaga-lumes, escaravelhos. E o Grande Vale se encheu de maior beleza.

Longa foi a dança dos Deuses-Irmãos. E num determinado momento Mãe-Sol se encheu de grande luminosidade e se fez um verdadeiro sol na terra. Até Pai-Lua resolveu se afastar para não se queimar e protegeu os olhos para não ferir a visão. A partir daquele momento apenas acompanhou os movimentos da irmã que se distanciava cada vez mais ao norte do grande vale e era vista como um poderoso ponto luminoso que desbravava as áreas escuras que ainda existiam nos limites da primeira morada e além dele no distante norte gelado. E onde Mãe-Sol passava ou tocava logo em seguida se enchia de vida com novas e belas formas vegetais. Até as rochas das montanhas foram tocadas pela luz fulgurante e também se encheram de beleza pois absorveram focos dessa luz, esfriando-os e transformando-os ao longo dos séculos nos mais variados tipos de cristais. Nem mesmo as frias e silenciosas terras do norte contiveram a alegria fulgurante da Mãe-Sol e por onde passava todo o ambiente reagia ao calor acolhedor e transformador. Assim, formas de vida animal e vegetal puderam habitar o distante norte e se tornaram mais resistentes que seus irmãos do sul pois a luz da Mãe-Sol se tornou mais intensa ali.

Como uma gigante senhora vestida de luz, Mãe-Sol continuou sua dança-caminhada por mais tempo. E assim chegou aos sopés das imensas e poderosas montanhas que serviam de portão para as planícies de gelo eterno. Mas nem mesmo esse imenso paredão de pedra e gelo a impediu de continuar e pouco depois já pisava em terras cobertas pela neve que nunca derretia, a não ser agora por baixo dos seus pés. Caminhando pela planície sem fim por longos dias, finalmente chegou a uma gigante formação rochosa tão alta e poderosa quanto Amenawara, a casa dos dois tronos. Uma verdadeira ilha solitária num mar branco, onde o gelo mais antigo do mundo repousava em meio a escuridão. Mãe-Sol se fez uma estrela fulgurante a escalar as escarpadas paredes que levavam ao topo da grande montanha. E antes que chegasse ao cume encontrou o que procurava e ficou ali parada como que a conversar silenciosamente com a montanha. Logo em seguida tocou com as mãos a camada extensa de gelo e a perfurou com sua intensa luz calorosa. Camadas e mais camadas de gelo foram se abrindo diante de suas mãos até acharem a rocha antiga e intocada por séculos. E por uma entrada de caverna esculpida na face sul da montanha Mãe-Sol adentrou seu interior e começou sua descida por túneis e cavernas naturais, desobstruindo com seu intenso calor séculos e séculos de gelo até chegar ao coração da montanha. Lá chegando encontrou um verdadeiro mar interior escondido e aprisionado em suas entranhas. E logo em seguida falou.

---- Desde o início da formação do mundo fostes confiada a ti a guarda de um tesouro. Um tesouro que se transformará de agora em diante no fio cristalino que sustentará a vida no berço dos nossos primeiros e segundos filhos nascidos e amados como também será fonte de felicidade e esperança nos corações daqueles tão amados que ainda virão mas não serão acompanhados de perto. Por isso te deixarei a missão de ser a provedora dessa seiva, que nascerá aquecida pela minha luz mas será cálida e preciosa para as bocas e raízes que se nutrirem dela. Por esse motivo passará a se chamar pelos tempos dos tempos de Hoonake – A Montanha do Ventre de Fogo – e esse nome será gravado na primeiras mentes.

Depois de sua fala ergueu as mãos para cima e concentrou sua energia em intensas chispas de luz que se acumulavam cada vez mais até formar um imenso globo de luz inapagável e o mergulhou nas águas calmas do mar sob a montanha. Demoraria muito para que toda a água se aquecesse, mas a deusa construiu um trono de pedra e ali aguardou com paciência sua obra se concretizar por completo. Feliz estava e feliz permaneceu mergulhada em pensamentos de passado, presente e futuro. Lágrimas desceram pelo seu rosto. Lágrimas de alegria e tristeza. E no cerne desses pensamentos estavam os Terceiros, aqueles a quem seria dada a herança e a condução dos rumos do novo mundo, a quem seria dado o presente da escolha e da decisão. Mas também traziam consigo incertezas, duvidas e erros, que em sua superfície seriam necessários para o avanço, mas se profundos demais teriam o poder de alterar muitas coisas para pior.

De muitos anos foi a vigília da Mãe-Sol no interior de Hoonake. E assim se ergueu do seu trono pela primeira vez em todo esse tempo e se dirigiu para a entrada de um dos inúmeros túneis que desembocavam na gigantesca caverna. Uma névoa branca pairava por toda a superfície das águas. E mais uma vez a escuridão no ventre da montanha foi iluminada pela intensa luz da deusa. E foi com um calor ainda maior que o pequeno túnel alargou-se e deu espaço a passagem da fulgurante figura até que sua pequena saída para o mundo externo foi desfeita e se transformou na primeira de quatro cavernas que davam vazão para que as águas do mar interior pudessem finalmente se libertar, percorrendo suavemente a base oeste da montanha e abrindo espaço através do gelo com seu calor. O mesmo se sucedeu pelos vários quilômetros de extensão da planície branca por onde as águas trabalhavam seu fluxo. E assim nasceu o grande rio, o maior de todos, aquele a quem os povos futuros chamariam de Rio do sol Dourado. Esse imenso fluxo de água percorria todo o grande vale de norte a sul e se perdia para além dos Escudos Rochosos no distante sul até se encontrar com o Mar Sem Fim.

Grande foi a surpresa gerada pela chegada das águas do grande rio às terras internas do vale, agora iluminadas apenas pela luz cálida da presença do Pai-Lua. Uma mistura de temor e curiosidade encheu os corações dos animais até o ponto de alguns fugirem para se esconderem nos bosques próximos. Mas aqueles que ficaram e venceram o medo foram os primeiros a provarem da cristalina e revigorante água e sentiram em seus corpos uma energia renovadora e curativa. E isso se dava porque até nas terras do grande vale, distante várias milhas de sua nascente, as águas do Rio do sol Dourado carregavam as partículas da luz da Mãe-Sol contida no interior do mar sob a montanha. E esse nutriente permaneceu por longos anos abençoando o grande vale enquanto ainda era jovem seu solo e os seus habitantes criavam os filhos em suas primeiras gerações.

Na confusão de emoções gerada pela chegada do grande rio muitos animais se refugiaram aos pés de Amenawara e lá se sentiam mais acolhidos pois a luz vinda do trono de prata era mais intensa. E Pai-Lua sorriu ao olhar e ver o grande veio cristalino atravessando as terras abaixo. E seu coração se encheu de alegria ao perceber que sua amada esposa-irmã tinha concluído a missão a que se destinara antes mesmo de pisar o mundo e que logo retornaria a iluminar o grande vale com sua presença. O grande vale estava chegando em seu estágio final de preparação para a chegada dos filhos do Terceiro Sopro, cujas primeiras sementes já estavam brotando em terras distantes. E não demorou muito para que o Rio do Sol Dourado se tornasse um amigo perene das plantas e animais e com suas águas os seres do vale se nutriram de uma energia que fez seus corpos se tornarem mais fortes. E sementes adormecidas nas entranhas da terra tiveram sua chance de brotar dando origem a novas e grandes árvores, inclusive os majestosos carvalhos. E animais, que hibernaram durante longas décadas, nasceram para contemplar o novo mundo que os aguardava. A vida no grande vale se tornou abundante e repleta de cores, sabores e aromas que nutriam todas as espécies. Mas, mesmo diante de toda beleza e fartura algumas delas ainda carregavam tristeza em seus corações e pouco compartilhavam da felicidade das demais. Essa tristeza tinha origem na profunda e inconsciente falta que sentiam da Mãe-Sol. E não tinham gosto em se aventurar em locais distantes no vale, ficando somente nas terras que circundavam a base de Amenawara. Em seu íntimo acreditavam que não mais veriam a deusa feita de luz. E tendo seu olhar voltado para esses animais Pai-Lua se apiedou.

Sentado em seu majestoso trono de prata, Pai-Lua convocou um membro de cada uma dessas espécies e, mesmo sem saber o porquê, atenderam ao chamado vindo do alto e deram início à façanha que nenhuma outra criatura da terra havia feito e subiram a grande montanha. E os obstáculos da escalada foram aos poucos vencidos de acordo com a estrutura corporal e capacidade física de cada um. E foi longa e penosa essa subida, e cada um chegou no tempo que suas habilidades naturais permitiam. Assim, se valendo de sua agilidade, o macaco foi o primeiro a chegar aos pés do trono de prata. Em seguida compareceu a raposa, que com suas garras e presas forçou a passagem pela superfície rochosa da montanha. O terceiro a chegar foi o pequeno sapo, que com suas pernas fortes saltou e saltou até alcançar seu destino. Os três se agacharam e reverenciaram a presença do grande Pai-Lua. O cansaço e o frio também cobravam seu preço no final do caminho, mas a cálida e poderosa luz prateada que emanava do grande ser sentado no trono os aquecia e revigorava. E eles sabiam que deviam aguardar a chegada do último convidado. Longa foi a espera pela tartaruga, que devido as pequenas pernas, casco rígido e lentidão de movimentos não conseguiu atravessar sequer o primeiro quilômetro de subida. E num determinado momento ela parou em cima de uma rocha lisa e olhou para cima, para o alto da grande montanha sem saber o que a atraía tanto para lá. E pacientemente encostou a base do casco no chão e esperou, esperou e esperou. E longa foi sua espera e seu olhar lacrimejante não parava um minuto de se voltar para o cume de Amenawara. Mas chegou o momento em que sua paciência foi recompensada e uma grande águia do céu veio ao seu encontro e a segurou em suas garras levando-a para o topo da montanha.

O macaco, a raposa e o sapo viram quando a águia trouxe a tartaruga em suas poderosas garras, a colocou no solo e depois saiu singrando as nuvens baixas e emitindo um som agudo e longo pelos céus. E quando os quatro pequenos animais estavam aos pés do Pai-Lua eles ouviram um poderoso som que saía de sua boca como o trovão que precede a chuva. Não entendiam o que emanava da boca do grande ser. Mas Pai-Lua não falava para seus ouvidos, mas para suas almas e eles sentiam a força das palavras. E lhes foi dito naquele remoto dia:

---- Vocês ouvem e sentem mas não compreendem pois assim foram concebidos em nossos pensamentos. Mas como toda obra, ela pode ser feita, desfeita ou moldada no lento passar do tempo para vocês. Assim, ofereço, pequenos filhos, a terceira opção como um grande presente que jamais se repetirá outra vez, pois a angustia em suas almas foi ouvida, e pelo tempo que essa dádiva permanecer, que não será longo, passarão também a compreender a realidade a sua volta. E assim poderão trazer a prova para seus irmãos no grande vale de que a deusa iluminada não os abandonou. Agora descansem e aguardem.

Foi assim que os quatro pequenos animais - o macaco, a raposa, o sapo e a tartaruga - hibernaram num profundo e longo sono repleto de imagens e significados. Assim que despertaram já não eram mais os mesmos, pois seus corpos e mentes haviam mudado e não mais andavam apoiados em quatro patas, mas em duas. Pela vontade, em certa medida misturada com alegria, de Pai-Lua, traziam em si um pouco de sua própria ansiedade pela chegada dos terceiros filhos. E assim vieram ao mundo aqueles que não estavam nos Primeiros Pensamentos, frutos de uma antecipação imprevista, e por isso mesmo carregavam em si as marcas dessa dissonância. E se transformaram nos primeiros e únicos híbridos. Uma mistura entre aquilo que eram e o que ainda estava por vir.

MiloSantos
Enviado por MiloSantos em 01/11/2016
Reeditado em 06/04/2017
Código do texto: T5809326
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2016. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.