O Riso do duende
O Riso do Duende
(do universo de lutas da Arena)
— Eu exijo retaliação!
A voz poderosa de Lorde Carlos Malefidele ecoou no grande salão, fazendo até mesmo o lustre tremer. Sentados à sua frente, numa longa mesa, outros oito Lordes Vampiros o encaravam. Ninguém estava satisfeito com os últimos acontecimentos, mas se a Arena fechasse as portas, era a fortuna e influência de Malefidele que iriam minguar.
Pela janela, lá fora, uma garoa fina cobria a cidade.
— Você não pode exigir nada — comentou com secura um dos lordes, com nariz fino e longos cabelos negros — Chegamos nesse impasse porque você não sabe cuidar dos seus negócios.
O rosto de Malefidele, pálido como o de todo vampiro, pareceu corar de raiva por breves instantes. Iria retrucar irado quando outro deles, vestido com mais elegância que os demais e portador de distintos olhos brancos, sem pupilas, interveio.
— Calem-se os dois — a voz de Lorde Pedro Invalesco era calma, mas tão poderosa que mesmo Malefidele teve que engolir seu orgulho. Sua família, dotada de um poder extraordinário, mesmo para os vampiros, liderava o Conselho desde que os primeiros, há mais de quatrocentos anos, vieram para o Brasil – Mas ele está certo, Malefidele. A Arena é sua responsabilidade, e se a morte de Saulo for culpa dela, e se aquilo que os lupinos do Quarto-Minguante possuem for realmente o que dizem possuir, então, é a você que exigimos uma resposta.
Malefidele encarou com raiva os olhos brancos de Invalesco, mas logo desviou o rosto. Mesmo ele, o representante de seu clã no Conselho e o Lorde responsável pela Arena, não podia enfrentá-lo. Não diretamente.
— Meu senhor, — começou ele — o que peço é justiça. Saulo foi morto por uma garganta cortada por garras. Isso é claramente obra dos lupin...
— EU SEI COMO SAULO MORREU – respondeu Invalesco – O cadáver fedorento dele me foi entregue essa manhã pelos Sentinelas, depois de a muito custo ter sido roubado dos necrotérios humanos. Além do assassinato, os jornais de São Paulo vão estampar nas manchetes o roubo de um cadáver! E isso em menos de um mês da morte de Diomedes e daquela loba vagabunda da amante dele, o que saiu em todos os jornais.
Malefidele não ousou retrucar. Invalesco inspirou e continuou.
— O que eu pergunto é: você, Malefidele, tem ciência do que está em jogo? Não me refiro ao seu joguinho de lutas. Estou me referindo ao equilíbrio entre o Conselho e a Alcateia. Porque Saulo morreu? O assassino de Diomedes já foi julgado, e pela lei da retribuição ele foi absolvido.
— O desgraçado podia tê-lo feito na Arena e poupado as manchetes... – comentou Lorde Augusto Custódio.
— Podia — comentou um Lorde de pele negra e cabelos rastafari – mas não o fez. Agora, nosso problema é o assassino de Saulo.
— Não gosto de concordar com Malefidele, mas se as Leis foram quebradas, temos que retaliar – continuou Custódio, que pertencia ao temeroso clã dos guardiões das Grandes Leis, as quais eram rigorosamente seguidas por todo o submundo.
— Sim, temos. — Malefidele recuperou a confiança — E devemos julgar e condenar o transgressor!
— É verdade, Malefidele, — ergueu a voz um Lorde careca e de voz rouca — mas os lobos do Quarto-Minguante dizem que tem provas de que a sua Arena armava as lutas. Saulo era um de seus juízes e organizadores, e foi encontrado morto por garras de lobo. Isso não fugiu à nossa percepção. Devo lembrar a este conselho que a Arena devia ser território neutro, e por isso, deveria honrar o pacto? Não estou interessado em uma guerra contra a Alcateia.
— Ninguém está, e é por isso que nos reunimos esta noite, senhores — continuou Custódio — Os assuntos da Arena são de sua alçada, Malefidele, mas estão afetando o equilíbrio entre este Conselho e a Alcateia. Acho justo que seja Malefidele quem resolva o problema.
— E se ele não resolver? — argumentou um Lorde de voz fina e dentes amarelos.
— Teremos que nos retratar, e baixar nossa cabeça para os lobos! – gritou outro — Eu não me rebaixarei pelos erros deste idiota!
Houve comoção. A aliança entre lupinos e vampiros permanecia estável há décadas, mas era sempre agitada pelo orgulho e ódio que nutriam entre si. Custódio ergueu novamente a voz.
— Se for a decisão deste Conselho, digo que seja Malefidele quem resolva o problema; que ele encontre o assassino de seu juiz, que prove que não houve corrupção nas lutas, e se houve, que entregue o culpado. E que ele se retrate perante os lobos.
— E se ele tiver parte na armação, como não duvido que tenha, e isto for provado pelos lupinos? — perguntou novamente o Lorde careca.
— Que seja apenas um de nós a cair em desgraça. — sentenciou Custódio — O lugar de Malefidele ficará vago no Conselho, para que outro de seu clã ocupe, e sua cabeça será entregue para a Alcateia fazer o que bem entender dela. Assim diz a Lei.
— Todos concordam? — perguntou Invalesco, mais por formalidade do que por dúvida.
Com exceção de Malefidele, todos ergueram as mãos, e um sonoro sim encerrou a reunião.
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A garoa nublava a vista. Luptizen correu para as sombras de outro viaduto.
Ofegava, mas tentava ao máximo não fazer barulho. Quase num sussurro, recitou o encanto.
_ Umbramas perfugim.
Seu corpo, que não media mais que quarenta centímetros de altura, perdeu as cores e foi engolfado pelas sombras da noite. A magia, bendita herança paterna, o permitia que fizesse algum ruído sem ser ouvido; mesmo assim, respirava com um cuidado mortal.
Do outro lado da Marginal Tietê, dois vultos surgiram. Um deles correu para o rio e saltou de uma margem à outra, sem que fosse notado pelos carros da madrugada. O outro seguiu pela avenida pelo mesmo lado, sem, no entanto, se aproximar de onde estava.
Sentinelas. Guardas pessoais dos Lordes Vampiros.
O pequeno coração de meio-duende batia depressa, mas seus ouvidos de lobo estavam atentos. Luptizen era um mestiço incomum: seu pai era um duende traficante das ruas de São Paulo, e sua mãe uma lupina da zona nobre, frequentadora das lutas da Arena. Numa noite de comemoração, após ganhar muito dinheiro com apostas, sua mãe comprou mais álcool do que devia na mão do duende, e oito meses depois (a gestação de um lupino), nasceu o duende-lobo.
Seu corpo tinha as vantagens das duas raças, mas ser assim tão singular atraía uma atenção indesejada para um espião. Luptizen trabalhava como vendedor de informações, e a filmadora que trazia no bolso do cinto valeria uma pequena fortuna, se conseguisse entregá-la. Caso fosse pego, não precisariam de muito até descobrirem que foi ele quem matara o vampiro Saulo, após gravá-lo acertando as lutas para um dos treinadores da Arena, o famoso Lamartine. Com aquela filmagem, os lupinos pacifista do Quarto-Minguante conseguiriam fechar a Arena, e um pequeno conflito entre os Lordes e a Alcatéia teria início.
Bem, foda-se. Se entregasse a filmadora, teria dinheiro suficiente para atravessar o oceano e sumir de vista, morando em seu mais novo castelo em Nurdowic – cuja escritura afanara do corpo de Saulo. Mas precisava, antes, sobreviver mais essa noite.
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Um pequeno redemoinho levantou a poeira do rinque, agitando os mantos sujos de Ailil. Com velocidade, o duende arremessou seu pequeno canivete de prata no meio dos ventos.
_ Falx procaela! – gritou.
Os ventos giraram com mais violência e brilharam em tons metálicos, avançando na direção do lobisomem do outro lado. O lupino tentou um salto para a esquerda, mas os ventos afiados o pegaram em pleno pulo. Uma explosão de sangue arrancou vivas da plateia.
Depois de ser proclamado vitorioso pelo juiz, Ailil retornou para o vestiário sozinho. Seu treinador não viera hoje e o pequenino cobraria com mais do que palavras se ele faltasse no dia seguinte.
— Oi, primo.
O pulo de susto de Ailil foi maior que o salto do lupino que ele derrotara há pouco. De pé sobre o armário, um ser pequeno de pele verde e pelos marrons tirava o gorro em cumprimento.
Luptizen.
— Pelas meias sujas de meu pai, seu desgraçado! — gritou Ailil — Quer me matar de susto? Um bicho como você deveria ser anunciado três vezes antes de aparecer! O que tio Geórgio tinha na cabeça quando...
— É, eu sei, sou feio, papai era um bêbado, enfim. Preciso de ajuda, primo.
— Mas é claro que precisa! – Ailil fechou a porta do vestiário e conjurou uma pequena magia para que não fossem ouvidos — Você tá sendo procurado pelos Sentinelas! Some daqui antes que achem que estou com você.
— Peraí, peraí, Ailil, você sabe dos Sentinelas? Então eles declararam caça a mim?
— Não precisam, verruga com pelos, todo o submundo tá andando nas sombras esses últimos dias, cochichando sobre coisas ruins... O seu nome (e sua cara) são coisas fáceis de se gravar em um boato. Como é que você tá por fora das coisas?
— Fica um pouco difícil se manter em dia quando você está sendo caçado. Desde o início da semana to correndo que nem rato.
— Bem, foda-se. Amanhã tenho uma luta importante contra aquele velho do Fúria, e se eu ganhar, me garanto até o final do mês. Então some antes que eu chame os Sentinelas. Não vou me arruinar por uma verruga com pelos...
— Peraí, primo! — exasperou-se Luptizen — Só um favor, em nome do meu falecido pai! Eu disse favor? Quis dizer serviço — e em seguida, tirou do cinto um saco de pano e o arremessou para Ailil — Aí dentro tem pelo menos dois mil reais em notas de cem e uns dois cartões de crédito, com a senha. E eu só preciso que entregue essa carta — disse, mostrando um envelope lacrado.
Ailil ficou temporariamente sem ação. De onde o idiota do primo arrancara tanto dinheiro? Olhou para o lucro fácil – apesar das recentes vitórias, uma derrota no mês passado secou quase toda a sua conta bancária. A luta do dia seguinte garantiria o mês, mas aquele dinheiro viria a calhar.
— Ouça — continuou Luptizen — Apenas entregue essa carta ao lupino da última cadeira da arquibanca sul.
— E porque você não pode entregá-la?
— Primo, eu tô sendo caçado tem uns três dias, mal consegui entrar aqui. Não to consigo avisar ninguém, os celulares tão grampeados, não confio nessa merda de internet, enfim, tô ferrado. Você pode me quebrar esse galho?
Ailil hesitou. Podia acabar se metendo em furada, mas, bem, o dinheiro já estava ali.
— Tá certo, tá certo, vou entregar a carta. E esse lupino, qual o nome dele? Como vou reconhecê-lo?
— Você vai. Pô, primo, quer que eu diga o nome dele? Isto aqui é espionagem. Você acha que sou a droga de um amador?
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Quarta-feira, meia-noite. Uma garoa fina borrava as luzes da cidade.
Escondido numa das copas das árvores do Parque Vila Guilherme, um vulto de não mais de quarenta centímetros aguardava. Não muito longe, na rua que acompanhava a grade do parque, três outros vultos caminhavam devagar.
Ailil e dois Sentinelas.
O Conselho dos Lordes ofereceu ainda mais dinheiro pela informação do duende. Tão logo Luptizen desaparecera, Ailil rompeu o lacre e leu a carta, onde constava o dia, a hora e o ponto de encontro. Quando se certificou que o primo havia partido, correu para o primeiro Sentinela que encontrou, e Malefidele, o Lorde da Arena, agradeceu com um pré-pagamento que o sustentaria até o final do ano. Quando interceptassem a encomenda, ele receberia a outra parte da recompensa, um valor tão alto que ele poderia se aposentar dos dias de luta.
Não confie em duendes. Mesmo se você for um deles.
Os três pararam e esperaram. Quando não havia carro algum à vista, saltaram as grades. Se vampiros sabem ser furtivos, Sentinelas são quase imperceptíveis; mesmo assim, Ailil conjurou um feitiço de silêncio para cada um dos três. Duendes são ariscos, e Luptizen era um canalha esperto; não podiam facilitar.
Separaram-se. A árvore marcada, um frondoso pé de fícus, estava no limite de um bosque. Um vampiro iria pelo leste, o outro atacaria pelo oeste, e Ailil vigiaria a mata, ao sul. A parte norte era o fim do bosque, com uma rua pavimentada para passeio. Se Luptizen fugisse por ali, estaria à descoberto e seria alvo fácil para a visão vampírica.
Posicionaram-se e se aproximaram devagar. Quando estavam cada um no campo de visão do outro, há vinte passos da frondosa árvore, saltaram sobre ela e a escalaram.
Ailil gritou os oito piores palavrões que conhecia. Dependurado num tronco, um boneco de pano, pintado com o sorriso mais filho-da-puta que Luptizen soube desenhar, segurava um cartaz: “Foi mal, primo”.
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Do outro lado da cidade, Luptizen, ao perceber que o cerco sobre si tinha finalmente afrouxado, correu para o local combinado, o verdadeiro. O lacre da carta que dera à Ailil foi feito com cera e sangue, seu sangue, e assim que foi rompido, Luptizen soube que tinha sido traído. Magia barata. Seu verdadeiro contato simplesmente rasgaria o envelope, sem quebrar o selo.
Assim, Luptizen recorreu a outro amigo, Jorge Augusto. Ou como era conhecido na Arena, Fúria. Jorge era um lobisomem veterano nas lutas, mas o porte físico e a habilidade embaçaram com a idade. Ganhava poucas vezes, e só não desistia porque não conhecia outro jeito de ganhar a vida. No dia seguinte, lutaria contra Ailil e, ao ver o duende derrotar com facilidade o lobisomem no dia anterior, muito mais jovem e forte que ele, desesperou-se.
Por isso aceitou com muito bom grado entregar a carta de Luptizen, com a localização verdadeira, em troca de que ele tirasse Ailil da disputa. Afinal, se Ailil fosse esperto, não apareceria na Arena tão cedo.
E foi assim que Armando, um dos lobisomens mais fiéis ao Quarto-Minguante, recebeu a câmera com as gravações de Saulo e Lamartine acertando as lutas. Em troca, Luptizen recebeu uma valise cheia de notas de cinquenta e uma carta de confiança, para ser aceito e protegido pelos lupinos do velho continente.
Naquela mesma madrugada chuvosa, o duende-lobisomem se dirigiu ao aeroporto internacional, e invadiu um avião pelo compartimento de bagagens, sem ser notado.
A garoa cobria a noite de São Paulo, transmitindo uma falsa calma, qual neblina em alto-mar, escondendo os rochedos traiçoeiros que viriam. Pois eles viriam. O dia seguinte seria de muito tumulto e tensão no submundo da cidade. O Quarto-Minguante faria sua ameaça final, Malefidele ficaria louco e executaria dezenas de subordinados, e a Alcateia cobraria explicações do Conselho. O impacto contra as rochas seria estrondoso, e lançaria muitos ao mar.
Mas Luptizen já abandonara esse navio, e, ao desembarcar no Aeroporto Internacional de Shannon, na Irlanda, já se esquecera de São Paulo. Seu pai sempre dissera que tinha parentes no interior do condado de Galway. Quem sabe não era hora de uma reunião familiar?
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Nota do Autor: este conto foi baseado nas leis e preceitos estabelecidos no Universo de Arena, criado pela escritora Rita Maria Felix da Silva, iniciado com o conto "Gladius".