Pequenas histórias 162
Atravessou a rua
Atravessou a rua. Nos passos a cadencia da vida presa no asfalto livre dos automóveis era mais intensa. À direita, o rio preso se perdia ao longo do olhar. À esquerda, a água barrada pelo vermelho do farol proporcionava liberdade. À frente, estava o vai e vem dos aventureiros na pressa de alcançarem as margens da vida. De um jeito ou de outro, todos alcançam sua margem, pensou ao pisar a calçada.
Depois da reforma, a calçada parecia dar maior liberdade, como se ele fosse grande, mas não de proporção física, e sim, de atitude, de confiança, de... Notou que o mendigo não estava deitado rente a parede. O segurança não precisa ter mais o trabalho..., conseguira enxotar o coitado, pensou ao pisar no primeiro degrau. Estava frio, garoando, mesmo assim não quis entrar pela garagem como muitos faziam. Não sabia por que não via vantagem nenhuma, depois, não era carga que devesse entrar pela área de serviço. Tudo bem, não era funcionário importante, mas também não se considerava os últimos dos últimos. Bom, cada um faz o que bem entende. Passou pela catraca, chamou o elevador e, instantes depois, ligava o micro.
Ouviu um zumbido bem fino e logo em seguida o som característico do sistema. Estranhou, não conseguia ver o micro, a beirada da mesa dava a impressão de estar longe. Olhou em volta. Tudo escuro! Apagaram as luzes? Gozado sentia o tecido da cadeira envolvendo-o todo. Ergueu a cabeça. Lá de cima vinha um filete de luz. Dirigiu-se para a direção da luz. Segurava no quadriculado do tecido e com muito esforço subia. Ao chegar ao topo da cadeira, viu com horror o que tinha acontecido. Ele diminuirá de tamanho, estava menor que a ponta da caneta esferográfica.
Como? Encolherá? Por quê? Ah! Descobriu por que. Olhou para cima e viu dois olhos castanhos em cima dele.
- Escuta aqui, o escritor medíocre. Essa história de encolhe, estica, diminui, aumenta já está totalmente ultrapassado. Ta pensando que aqui é Hollywood, é?
- Não é.
- Ainda bem que reconhece. Então por que me encolheu?
- Bom, é que achei...
- Não tem argumento para se explicar, não é mesmo?
- Não é isso...
- O que é então?
- Porra meu...
- Olha o palavrão, tem muitos leitores que não gosta.
- Ta certo, meu. Mas já reparou que na literatura brasileira não tem nada igual a isso?
- Não sei e não posso responder. Sou uma criação sua...
- Nem na literatura como no cinema.
- Ah! Você não quer igualar o cinema brasileiro com o internacional. Até que o nosso cinema cresceu bastante.
- Como você sabe se é apenas um personagem.
- Ta certo, sou um personagem, mas só que você se esquece que sou uma criação sua, então tenho alguma coisa de você. Vamos dizer sou seu inconsciente.
- Meu inconsciente é!!!
- Olha, escuta o escritor de poucos leitores...
- Pelos menos tenho alguém que me lê.
- Por insistência sua. Mas isso não vem ao acaso. Quero saber como vai me tirar dessa situação. Aliás, me criou assim como a história, acho que você tem que dar um fim, tanto a história como a mim. Estou certo?
- Está certo.
- Então coloque sua cachola pra funcionar que não quero ficar aqui nessa cadeira que aliás, tem o cheiro da tua bunda, nem mais um segundo.
Dizendo isso, ele se virou. Foi então que viu o fone de ouvido. Pensou:
- Vou me dependurar por ele e chego até a mesa.
E assim ele fez, em pouco tempo, estava em cima da mesa. E agora? Começava a sentir fome. Precisava comer alguma coisa. Onde arranjaria comida? Lembrou! Com a Camila. Dito e feito. Subiu pelas pastas, atravessou o espaço aberto que dividia as baias. Por sorte, naquele momento, a Camila saboreava biscoitos cujos farelos caiam na mesa. Correu para lá e já começava a se alimentar, quando a mão dela se aproximou jogando-o longe com as migalhas. Seu corpo girou no ar, bateu na ponta da caneta, rolou mais um pouco, e ficou imóvel.
Lentamente distinguia um clarão de luz. Lentamente seus olhos foram abrindo. Lentamente reconheceu os rostos que o observavam. Lentamente seus lábios se separaram. Lentamente pronunciou:
- O que foi? Onde estou?
- Você está no hospital.
- O que aconteceu?
- Você caiu e bateu a cabeça.
- Como?
- É você caiu e bateu a cabeça.
- E como aconteceu?
- Ora! Quantas vezes te falei para você não deixar caixa nenhuma atrapalhando a passagem?
- Várias vezes.
- Então, pois é, você tropeçou numa caixa e bateu a cabeça na mesa e desmaiou. Por sorte não foi com gravidade.
- É!?
- É.
Nisso dois olhos castanhos pousaram nele.
- Ah! Você ainda está ai? Tire-me daqui. Afinal sou seu personagem. Quero sair daqui.
No entanto não pode ouvir a resposta. Apenas ouviu uma pequena risada de satisfação.
pastorelli