Tribo de Zahr 2: O Assassino

A lei do povo de Zahr estabelecia que caso o líder viesse a morrer antes de ter um sucessor escolhido e preparado, a tribo teria que reunir os chefes de cada família no Kalabam, uma assembleia onde esses chefes indicavam os possíveis líderes e depois os chamavam para dar início ao ritual de preparação.

O Kalabam podia durar uma noite ou uma década, e durante o período em que a tribo se encontrava sem líder, tudo ficava absurdamente descontrolado. Homicídios, jogos de poder, intrigas e paixões... tudo estourou de repente quando a notícia da morte do Zahr se espalhou, afinal, quem julgava e punia os criminosos, e mantinha a ordem em geral, era o Zahr. Sem ninguém que calasse a selvageria dos zahrianos, eles passavam a agir violenta e impulsivamente.

Embora todos soubessem bem como era turbulento aquele período, havia um detalhe inédito na tribo: o Zahr fora humilhantemente assassinado e seu filho havia passado na primeira etapa da preparação para se tornar o líder por direito.

Com isso, uma parcela da tribo concordava com Uari quando ele dizia que deveria se tornar o Zahr já que seu pai fora morto e sua habilitação fora bem iniciada. Contudo, outra parte da tribo apoiava a provável liderança de um zahriano de dois braços chamado Adom.

O Kalabam não pode ser iniciado pois os chefes de família precisavam julgar o assassínio de Humri. Isso era favorável a Uari, pois seu discurso afirmava que a escolha de um novo rei era desnecessária. Por outro lado, Adom revoltou-se e passou a acusar Uari de ter matado o próprio pai para tomar-lhe o título e tornar-se Uari Zahr.

A resposta à acusação foi óbvia: Uari sugeriu que Adom havia planejado a morte do Zahr de forma que incriminasse seu sucessor, assim deixaria livre o caminho até sua eleição através do Kalabam.

Não só acusações iam de um lado para outro, diversos embates eram travados todos os dias. As discussões eram cada vez menos produtivas e mais sangrentas.

Na urgência, os chefes de família chegaram a uma conclusão ousada, que de acordo com as consultas feitas a Eskigal, o Supremo, era adequada: Uari e Adom poderiam disputar o título de Zahr em um combate individual desde que Uari abrisse mão de tudo que envolvia a morte de seu pai, isto é, a descoberta do assassino e seu devido julgamento.

Uari tinha quatro braços, era forte, hábil com machados, com par de lanças e lutava com até quatro cimitarras. Com certeza venceria o confronto físico. Seu único impasse era o fato de Adom ser um xamã, manipulador de alta magia e de forças macabras.

O herdeiro de Humri recusou a proposta, pois queria justiça pelo que acontecera a seu pai, sacrificaria sua ascensão se precisasse. Adom, de longos cabelos em negras tranças, era traiçoeiro, mas reconheceu nobreza na atitude de seu adversário político, por isso empenhou-se em auxiliar Uari a descobrir quem havia tirado a vida do Zahr. E quando obtivessem um resultado final, continuariam a disputa pelo comando da tribo.

Uma paz carregada de tensão tomou os zahrianos. Sol nascia e sol se punha, e todos faziam de tudo para encontrar uma mínima pista, e nada surgia. Os chefes de família preocupavam-se cada vez mais, até porque alguém na tribo era cruel o bastante para matar o Zahr enquanto este estava indefeso e astuto a ponto de não deixar um só rastro.

O inverno se aproximava, e era rigoroso com aquela região, e nenhum progresso havia sido feito. Foi então que Adom teve a perigosa ideia de consultar Indam, o mais velho xamã da tribo, detentor de capacidades indizíveis.

Indam vivia um pouco mais afastado da tribo, era mudo, mas se expressava bem. Informou que precisava do sangue de Humri para que pudesse reproduzir seus derradeiros momentos. Uari tinha o sangue do pai seco na pele de lobo que usava naquela noite, no entanto hesitou em usá-lo, pois era inadequado para honra dos zahrianos mexer em vidas que já haviam chegado ao fim.

Por fim, ele concedeu o sangue a Indam. O velho xamã fez movimentos complexos com as quatro mãos, seus dedos deixavam rastros de luz no ar, e então ele jogou um pedaço da pele de lobo com sangue seco sobre um prato fundo feito de argila. A pele se desfez, o sangue voltou a ficar líquido e começou a encher o prato, e quando estava prestes a transbordar, o vermelho escuro tornou-se translúcido e cristalino, como água. Adom e Uari a tudo acompanhavam. No líquido transparente sobre o prato, apareceu a imagem de Uari deitado de forma desengonçada em frente a uma fogueira – era a visão de Humri na noite do ritual de preparação do filho.

Os três assistiram por um tempo e o que viram foi inimaginável: Uari despertou, catou sua machadinha e num movimento veloz e voraz enfiou o cabo pontiagudo no coração do pai. A visão se apagou, pois a vida de Humri acabava ali. Entretanto, havia um pormenor que tanto Adom e Uari quando Indam haviam notado: todos sabiam que Uari só havia acordado do torpor ao nascer do sol, já que isso era uma das regras do rito, e o assombroso assassinato havia ocorrido de madrugada, quando as estrelas ainda enfeitavam o céu.

CONTINUA...