Tribo de Zahr 1: O Herdeiro

Tão árida era a região que o solo esturricado era todo cortado por rachaduras, o sol gritava desde as primeiras horas do dia, e o horizonte era sempre uma vastidão amarelada.

Sobre aquela terra vivia a temida Tribo de Zahr, uma população de guerreiros, xamãs e suas respectivas famílias. A tribo vivia instalada em tendas de couro amarronzado; o povo zahriano tinha pele cinzenta, alguns tinham quatro braços, outros apenas dois.

Naquele dia, Humri Zahr, o líder da tribo, chamou seu filho, Uari, em sua tenda. Horas de conversa se passaram, e por fim Humri Zahr concluiu que o momento era propício para iniciar o ritual de preparação de Uari, para que se tornasse apto a herdar do pai o título de Zahr, isto é, rei. Uari tinha aprovação de praticamente toda a tribo para suceder Humri, era admirado pela precoce sabedoria e por ser excelente guerreiro, além disso ele descendia de zahrianos notáveis. Trazia os quatro braços do pai e a astucia inclemente da mãe, que morrera ao dar-lhe a luz.

A primeira etapa do ritual era a mais curta e mais intrincada, com isso, só continuava para as etapas seguintes quem tivesse maturidade, sabedoria e força para lidar com o primeiro e mais duro passo.

Ao anoitecer, pai e filho, vestidos em pomposas peles de lobo, sentaram-se frente a frente, sob estrelado céu, separados por uma tímida fogueira. Sem dizer nada, ambos sacaram suas machadinhas da cintura e ao mesmo tempo abriram cortes na palma de suas mãos. Eles deixaram pingar, cada um, quatro gotas do líquido escarlate sobre o fogo. A chama agonizou-se, recuou, avançou e então se acalmou. Em seguida, Humri cantou uma melodia grave e sinistra, e na medida que Uari ouvia, seu corpo era tomado por um torpor paralisante.

Uari despertou de repente, estava deitado sobre uma planície verdejante, com cheiro de sereno exalando da viva grama. Os raios de sol eram agradáveis, e a brisa era fresca, coisas que o futuro Zahr nunca havia experimentado.

Os zahrianos tinham elementos culturais muito singulares, com grande destaque para a religião a qual todos seguiam incontestavelmente, fosse por pura fé ou por medo do grande ser superior a quem seguiam. Eskigal era o nome da entidade que ditava os contornos da crença zahriana, chamado pelo povo apenas de Supremo. E era o Supremo em pessoa quem testava o possível herdeiro do Zahr no início do ritual.

No devaneio fantasioso de Uari não havia nada que o testasse. Porém, como sua consciência estava adormecida, aquela seria sua realidade até que acordasse.

Para finalmente por Uari à prova, Eskigal apareceu sobre a grama, um ser imponente em um corpo formado por línguas de sombra em constante e hipnotizante movimento. E num piscar de olhos surgiu ao lado do Supremo o pai de Uari, Humri Zahr. O olhar do líder emanava uma súplica inquietante, que o filho logo compreendeu – Eskigal fez do braço uma estaca e atravessou-a no coração de Humri, que não pôde nem fechar os olhos para morrer, o que era um sinal de extremo desrespeito para os zahrianos.

Uari nada fez. No entanto, naquele instante, nascia em sua mente um ódio inconsciente pelo Supremo. Ainda dentro da irrealidade, Eskigal sumiu, e Uari se achegou perto do corpo desfalecido do pai, e o sangue que escorria lavava a terra e inundava a cabeça do herdeiro com um crescente desejo de vingança.

Chegando ao fim o efeito do torpor, Uari recobrou parte da consciência, e ainda vendo o pai estirado na confortável grama, reconheceu que aquilo era apenas um teste e que seu pai de verdade estava bem, em frente a uma fogueira aguardando seu retorno.

Entretanto, quando o sol despontou no leste, Uari acordou. A fogueira estava apagada, das cinzas levantavam dançantes filetes de fumaça, e logo adiante estava seu pai, deitado no chão sobre uma poça do próprio sangue, que vazava livremente por uma violenta estocada no coração.

Uari ficou sem entender. Estava sendo testado ainda? Logo ele notou que não, aquilo real. E ele teve essa certeza quando viu o semblante desesperado e sem vida do pai, como se estivesse prestes a gritar... com os olhos abertos.

CONTINUA...