A TEVÊ LIGADA
Clara, 88 anos está perto de morrer, mas há uma tevê ligada em seu quarto no hospital e ela ouve falar do novo creme dental que combate as bactérias que provocam cáries e mau hálito e ouve também sobre um grande lançamento imobiliário em um dos bairros mais chiques da cidade.
“NA COMPRA DE UM APARTAMENTO, AINDA NESTE FIM DE SEMANA, VOCÊ GANHARÁ UM NOVÍSSIMO AR CONDICIONADO!”
Clara chega a pensar, antes de morrer, na suíte deste lançamento imobiliário e em um salão para festas com balões laranjas.
A tevê do quarto permanece ligada. Clara, 88 anos, solteira, recebe a visita de dois sobrinhos adolescentes. Ela possui tantos irmãos, mas avisa aos dois jovens:
- Sei que vou morrer e não quero briga na divisão dos meus bens.
Os dois sobrinhos dizem antes de sair
- Ora , titia! Ninguém vai brigar... e a senhora não está morrendo.
Clara sabe estar nas últimas. Somente uma mulher temente a Deus pode compreender isto: ela vai morrer... mas não desligam a tevê do seu quarto e dali vem a oferta ouro das Casas Pernambucanas:
“HOJE COMO OFERTA UMA IMPRESSORA MULTIFUNCIONAL 3 EM 1 SEM ENTRADA!”
Diante da oferta, Clara, 88 anos, também se sente multifuncional, sem entrada. Queria oferecer pra quem quisesse, a grande peça da sua vida: o grande amor. O amor estava destinado ao Armando.
Armando casou com a prima de Clara, Elizeth. Ela era dez anos mais velha do que ele. Soube enganar àquele homem direitinho por causa da sua aparência juvenil e ainda assim era mais velha do que todos ao redor! Doze anos mais velha do que ela, Clara! E Armando caiu na mentira e preferiu Elizeth.
“A prima Elizeth, debaixo de alguma máscara ou certidão falsa, surgia todas os dias como a mais menina, a mais donzela das donzelas...”
Armando casou-se com Elizeth mais velha e ele soube do engano muitos anos depois, apenas quando a prima morreu, absolutamente debilitada pela idade avançada, pois o tempo não admite camuflagens.
O tempo pode admitir outras camuflagens... um vestuário moderno anunciado agora na tevê:
“E AINDA ESTE LINDO VESTIDO IMPORTADO, DE ALTA QUALIDADE, COM ENTREGA EM TODO PAÍS!"
O vestido poderia ser adequado para cobrir Clara, agasalhar o seu corpo, aprontá-la para a hora final.
Clara lembra outro detalhe, Armando também preferiu ficar com a prima porque desconfiou do aborto de Clara, da gravidez consequente do breve encontro entre os dois.
Naquele dia Clara avisou Armando sobre a possível gravidez e sua contrariedade em ter filhos, pois queria estudar Medicina no Rio de Janeiro e filhos atrapalham a carreira.
Os dois discutiram, Clara ameaçou, brigaram e... no fim, foi somente um atraso de três meses em seu ciclo menstrual. Não havia gravidez nenhuma.
Ela nem poderia saber direito. Não existiam testes de farmácia... mas talvez não precisasse de tanta independênciaem relação ao homem da sua vida. Naquele distante ano de 1956, algo não coincida com aquela separação.
Clara sofreu com o câncer. Já passou por duas operações (aqueles meses de atraso menstrual já eram o câncer).
Ouviu os médicos repetirem, ela pode entrar em coma a qualquer momento... Não antes de saber pela tevê ligada em seu quarto:
“VAMOS VER NESTA MATÉRIA A REVISTA 'COZINHAS DO MUNDO' DESTE MÊS. MOSTRAREMOS O QUE A ÍNDIA VAI COLOCAR EM SUA CASA: ERVAS, ESPECIARIAS, ESPIRITUALIDADE E SABOR.”
DO LIVRO: ÒBITOS EM COPACABANA