Sonambulismo

Quer um conselho útil? Nunca ameace uma bruxa com uma espada ou ela poderá sequestrar seus amigos. No meu caso, ela só levou uma amiga. Devia ser meio-dia, pois o clima não estava muito frio como deveria estar. Havia neve por toda a floresta. Elas se acumulavam nos mais diversos lugares que você pode pensar: carroças, roupas, buracos e até mesmo em nossas orelhas.

Nós estávamos acendendo uma fogueira próxima ao rio, uma ideia idiota, eu sei. Infelizmente não estávamos sozinhos. Uma velha senhora de uns sessenta anos começou a lavar suas roupas no rio – não era bem um rio; estava mais para um regato.

Acredite: uma velha lavando suas roupas na beira de um rio não é a melhor das imagens que você pode ter ao acender uma fogueira, principalmente porque ela tirou o vestido e ficou completamente despida de qualquer roupa, até mesmo peças íntimas. Sinto muito se estraguei seu dia com essa cena, mas vale a penas ressaltá-la.

Ficamos enjoados com a visão – eu e mais quatro amigos, dentre os quais duas eram mulheres.

– A senhora poderia se vestir? – pedi cautelosamente.

Tentei ser o mais delicado possível, mas a velha nem mesmo dirigiu um olhar para mim.

Olhei para trás. Meus amigos riam e faziam sinais, embora eu não entendesse.

– Com licença! – falei tocando em seu ombro. – A senhora poderia se vestir? Bem, estamos montando acampamento e não está sendo muito...

– Agradável? – pela graça dos deuses, ela facilitou minha fala.

Eu assenti, mas ela hesitou.

– Aqui é um local público, não é mesmo? Posso fazer o que eu quiser. Pare de me atormentar ou lhe transformo em um rato!

Era uma bruxa. Todos nós rimos, mas ela continuou a lavar suas roupas, que na verdade eram trapos velhos.

– Pode até ser público, mas bruxas são ilegais por essas bandas. Conhece as regras, sim?

– Quem são vocês? – ela perguntou em tom de suspeita.

– Meu nome é Jack. Aqueles são Griff, Linda, Bob e Mateus – eu ri. – Somos protetores do Reino.

– Jovens aprendizes?

Assenti.

– Vão embora! É melhor não se meterem comigo, não me conhecem.

A voz da velha soava familiar. Desembainhei minha espada e fiz uma pose que acredito ter sido ridícula.

– Não estamos brincando. Temos autorização real para fazer o que quisermos com bruxas como você.

Naquele momento, fiquei sério.

– Pois faça.

Tentei assustá-la fazendo um movimento de ataque, mas ela já tinha sumido de alguma forma.

– Pra onde ela foi? – perguntei.

– Foi mais fácil do que pensava, caro Jack – disse Mateus com sua inaudível voz aguda.

– Que seja! Onde está Griff?

Entreolhamos-nos. Agora havia apenas quatro jovens aprendizes – contando comigo – armados com espadas mal forjadas.

– Não a vi saindo – disse Linda.

– Sumiu junto com a velha – comentou Bob.

Fiz que sim com a cabeça. A maldita velha havia levado Griff. Eis o problema: para onde?

– Geralmente as bruxas moram em choupanas isoladas. Não deve ter ido muito longe. Não se teletransportam a lugares distantes.

– Devíamos nos separar? – perguntou Bob.

– Acho o mais sensato a se fazer. Linda vem comigo, nós iremos pelo norte. Bob e Mateus vão ao oeste. Com certeza ela não foi para a direção do Reino.

Eu sinceramente não queria parecer o chefe da turma, mas ninguém tomava a frente, tudo sempre caía sobre mim e aquela situação necessitava de alguém esperto como eu.

Linda e eu corremos o mais rápido que pudemos, ou seja, lentamente, pois alguns galhos caídos atrapalhavam nosso caminho. Cada segundo era sagrado. Passaram-se algumas horas e Linda parecia sem esperança.

– O que faremos? – ela olhou para mim.

Fiz um leve sinal para que ela ficasse calada. Estava escutando algo: risos.

– Deve haver algum casebre por aqui – disse.

Andamos mais um pouco, seguindo som e retirando algumas plantas do caminho.

– Olhe!

Uma velha choupana desgastada ficava no meio de uma pequena clareira. As luzes estavam acesas.

– Vamos entrar pelos fundos – sugeriu Linda.

Concordei. Demos uma volta pela casa abaixados, pois as janelas eram grandes e baixas, poderiam nos avistas facilmente. Ouvíamos risos altos e exagerados e várias mulheres. Provavelmente outras bruxas.

Nos fundos da casa, havia uma porta de madeira ipê mais nova do que todo o resto da casa. Girei a maçaneta com medo. Meus dedos tremiam. Nunca enfrentamos uma bruxa. Sim, fiz o certo em tentar espantar aquela velha, pois era uma bruxa e aquilo era proibido em minha nação. Mas meu sentimento de nacionalismo se esvaecera. Por que diabos eu fiz aquilo?

Atravessamos a cozinha. Pelo que era perceptível, tudo naquela pequena choupana era velho e desgastado. Triste, também.

– Ninguém limpa isso há anos – sussurrei.

Mas creio que falei um pouco alto demais, pois os risos na sala cessaram. Olhei para Linda com tanto medo que seus cabelos ruivos e brilhosos agora pareciam negros e sem brilho algum. Ela também não parecia tão intrépida quanto antes.

– Quem está aí? – uma senhora perguntou gritando.

Não era a velha do rio, mas a voz parecia.

– Quem está aí?

Olhei para Linda novamente como quem diz: Infelizmente não era assim que eu gostaria que morrêssemos. Foi quando me dei conta de que eu estava fazendo papel de idiota. Nós estávamos. Ambos possuíam espadas, ambos deveriam proteger o Reino. Empunhei a espada como que vai atacar um gigante e não uma velha de seus setenta e poucos anos.

– Quem está aí? – perguntou novamente.

– Viemos buscar uma pessoa – gritei.

Ouvi risos altos.

– Esqueça. O que entra aqui fica aqui.

Senti certo arrepio na nuca.

Caminhei lentamente até a sala, quando vi que eram três bruxas. As três possuíam vestidos vermelhos longos.

– Onde ela está? – Linda perguntou.

A velha do rio ficou calada.

– Ah! Por favor! Só queremos armar acampamento e você está tornando isso difícil – exclamei.

Um das senhoras se levantou e sorriu para mim, mas as três ainda estavam caladas. Linda olhou para mim com mais medo que o normal. Muitas vezes o silêncio é pior que um longo diálogo.

– Vão ficar aí paradas? – perguntei.

A velha do rio também se pôs de pé. A sala era grande para uma choupana velha no meio da floresta.

– Se matar um de nós, poderá levar a garota – disse.

Confesso que me assustei com a proposta. Elas estavam oferecendo a vida!

– O que ganharia com ela? – eu estava falando de Griff.

– O sangue dela possui algo muito especial. O necessário para criar o poço da juventude.

Há séculos as bruxas estão procurando a poção perfeita que criará um líquido mágico. Este rejuvenescerá quem o beber. É uma longa história, mas isso é tudo o que você necessita saber.

Engoli em seco.

– Feito – concordei.

No mesmo instante, as bruxas sumiram. Um silêncio perturbador dominou a sala.

– Isso não vale! Apareçam!

– Terebus Onioum!

Aquelas palavras me deixaram arrepiado. Linda foi jogada ao chão. Sua espada voou para longe. Confesso que meu medo só aumentava.

As velhas reapareceram. Agora possuíam algo parecido com uma varinha de madeira que brilhava bastante

– Akardi Pestati!

Comecei a ficar sufocado, mas consegui pegar minha espada. Tentei atacar a velha do rio, mas ela conseguiu desviar, rolando pelo chão como um tatu. Minha respiração ficou lenta e densa. Meus pulmões estavam prestes a explodir, pelos menos eu achava isso.

Deslizei a espada sobre a cabeça da outra bruxa que deu um giro no ar. Conseguiu desviar assim como a outra.

– Terebus Victorium!

Victorium lembra vitória. Achei que era algum feitiço que as faria vencer.

Linda foi congelada. Não se movia e nem mesmo respirava. Ficou imóvel em uma posição deplorável.

Minha espada parecia ter vida própria, pois tentou acertar a velha do rio. Ela cambaleou ao tentar desviar, indo ao chão e batendo a cabeça no velho e sujo sofá. Urrou de dor.

Uma delas passou a varinha pelo meu braço, criando uma queimadura dolorida. Passou como se estivesse perfurando minha pele. Uma dor intensa que jamais esquecerei. Ela acertara meu braço direito, o que empunho a espada. Tive que segurar a arma com a mão esquerda.

A espada parecia leve, mas creio que foi somente uma rápida impressão. Graças a essa “leveza”, consegui acertar a velha do rio nas costelas quando ela tentava se levantar. Um forte jato de sangue acertou meu rosto, mas fui indiferente.

As outras duas bruxas olharam para mim, confusas. Linda voltou a falar.

Senti uma incrível sensação de poder.

– Queremos a garota! – exclamei.

Mais uma vez, as malditas sumiram. No lugar delas, Griff apareceu. Linda e ela olharam fixamente para mim. Eu estava assustado e fazia uma pose consideravelmente cômica.

– Você nos assustou – disse Griff.

– O que eu fiz?

– Nos trouxe até essa casa abandonada no escuro para ficar dando uma de “cavaleiro da nobreza”. Nunca nos disse que era sonâmbulo.

Maldito sonho! Fiquei completamente fora de mim. Quando voltar ao acampamento haverá muitas piadas de mau gosto.

– Não o acordamos porque disseram que não se acorda um sonâmbulo. Seguimos-lhe e cá estamos nós! – Linda parecia querer rir.

– Já está amanhecendo, vamos voltar ao acampamento! A professora já deve estar preocupada e o ônibus parte em duas horas.

Assenti. Saímos da choupana e passamos pelas árvores. Mas eu ainda sentia o leve sabor férreo de sangue de bruxa na boca.

Por esses e outros motivos, nunca ameace uma bruxa, principalmente em um sonho.