925-VOVÓ BIA E O TAPETE MÁGICO -
— Vovó, a senhora nunca vai acabar de fazer essa toalha?
A curiosidade de Doralice, aos onze anos, é insaciável. Pergunta sobre tudo o que vê e até o que não vê mas imagina.
— Não é toalha, não, queridinha. Estou fazendo um forro com franjas para aquela esteira de índio que o Alfredinho trouxe lá do Amazonas.
— É uma esteira mágica? — Pergunta a garota, cuja imaginação não tem limites.
— Não, Dorinha. É apenas um trançado de caniços e taquaras. Muito bonito. Quero apenas dar um acabamento do meu jeito. Já estou quase no fim.
Alfredinho era o carinhoso tratamento que Dona Beatriz dava ao filho, Alfredo, o nono de uma sequencia de onze filhos. Ao contrário de todos os irmãos e irmãs, nunca gostou de trabalhar, não aprendeu nenhum ofício e sua paixão era caçar. Era a ovelha negra da família.
Aos trinta e poucos anos, jamais cogitara em outra coisa senão suas caçadas. Atividade à qual dedicava tempo e atenção. Tinha boas armas e bons companheiros, condições essenciais para realizar as caçadas. Ausentava-se de casa durante meses, e algum tempo atrás ficara quase um ano fora, sem dar notícias. Quando voltou, trouxe um mundo de bugigangas: miçangas de índios, pedras coloridas, penas de animais exóticos. Além dos troféus das caçadas, claro: couros de jacaré, de onça, jaguatirica e de cobras.
Foi nessa ocasião que trouxera também um trançado de taquaras e caniços, muito bem feito, flexível, que se enrolava e que podia ser usado como tapete. Deu para a mãe, mãe, dona Beatriz, dizendo:
— Trouxe prá senhora, foi feito pelos índios, que me deram de presente.
O que ele não disse foi que o presente tinha pertencido ao pajé da tribo dos Iakãs, em agradecimento por ter recebido do caçador um remédio que purgara o chefe da tribo e o salvara do que o pajé considerava morte certa. E que, ao receber do pajé a esteira, este dissera:
— Tapete mágico. Leva pessoa pra qualquer lugar. Pessoa tem de ser pura como criança e sábia como idoso.
Alfredo nem escutara direito o que o pajé falara, pois era um aventureiro que pouco acreditava nessas coisas que diziam ser mágicas. Entregou a esteira para a mãe, para agradá-la, o que realmente aconteceu, contribuindo para que ela o perdoasse por ter tanto tempo ausente e sem dar nenhuma notícia.
O trabalho de crochê para juntar ao tapete ficou pronto e quando costurado manualmente, acrescentou cerca de meio metro de cada lado, adicionando mais beleza ao trabalho artesanal dos índios.
—Pronto, está terminado! — disse a idosa senhora. — Dorinha, me ajude aqui.
A neta ajudou na arrumação do tapete estendendo a peça no chão do largo alpendre da casa-sede, onde a avó tinha sua confortável poltrona estofada, seu assento preferido para contar histórias aos netos.
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Nem bem haviam acabado de jantar e os três netinhos puxando afavelmente a avó pelas mãos foram para o alpendre. Ladinos, os três olharam indiferentes o trabalho de fino lavor da querida avozinha. Ajeitando-se nas almofadas sobre o tapete, pediram em coro:
— Conta uma história, vó Bia!
Ela já esperava tal reação. Na sua sabedoria de uma vida inteira dedicada à família, podia-se dizer que ela adivinhava os pensamentos dos filhos e filhas, genros, noras e até dos netinhos.
Por vezes, até se antecipava à inocência dos três ávidos por ouvir histórias. E mantendo seu meigo sorriso, já foi se dispondo para atender ao pedido dos netos.
— Era uma vez... num lugar distante, para as terras do norte, além de um vasto deserto onde moravam os índios pele-vermelhas.
Seja porque os ouvintes estivessem ainda sob o efeito da digestão do jantar, e ela mesma tendo tomado um copinho de vinho, como fazia em todos os jantares, seja porque o calor do verão deixava todos numa malemolência gostosa e envolvente, tiveram uma estranha sensação de que o tapete estava se movimentando... se elevando... elevando!
As envolventes palavras da gentil contadora como que transformava aquela narrativa numa viagem mágica, cujo roteiro obedecia às palavras da história.
O tapete elevou-se suavemente e direcionou-se para o norte e para o oeste, como que obedecendo a um comando.
O sol brilhava sobre a paisagem que se desenrolava sob o olhar surpreso das quatro pessoas que estão sobre o tapete: Vovó Bia assentada em sua poltrona e os garotos refestelados sobre as almofadas.
Dorinha foi a primeira a manifestar a surpresa:
— Vovó! O tapete tá voando!
Tavinho olhava tudo, boquiaberto, sem falar nada. Carilnhos, calado, parecia estar com medo.
— Prá onde a gente vai? — perguntou Carlinhos.
— Ara, bobo, — disse Dorinha — nós estamos indo prá terra dos Peles-Vermelhas.
Vovó não acreditava nos próprios olhos.
Devo estar sonhando. Nunca vi coisa igual — pensou.
E continuou a história que se desenvolvia lá em baixo, na planície: índios comanches sendo atacados por cavaleiros, homens brancos sem lei, até que apareceu um mascarado despejando balas com seu revolver prateado e botando os bandidos em fuga, seus cavalos cobertos pela poeira na desabalada corrida.
— É o Zorro! , gritou Carlinhos, animando-se — Está defendendo os peles-vermelhas!
Acima do cenário e da ação, o tapete permanecia imóvel e Vóvó Bia e os netinhos assistiam tudo, como um teatro.
— Vamos descer! — Pediu Tavinho.
Vovó Bia, como que acordando de um cochilo, atentou para a realidade.
— Não, não é uma hora boa pra gente aparecer assim, sem mais nem menos, no meio dessa confusão.
— Ara, vovó... — ia falando Dorinha, que foi interrompida pela boa senhora
— Nada disso! Vamos embora. Vamos voltar prá fazenda.
Como que obedecendo ao comando das palavras de Vovó Bia o tapete girou sobre si mesmo e iniciou o percurso de volta.
A noite já havia descido completamente sobre a região da fazenda Taquaral quando o tapete, suavemente, pousou no alpendre, no mesmo lugar em que havia sido colocado.
O momento mágico desapareceu quando eles foram subitamente chamados à realidade com as palmas e a voz enérgica de tia Elvira, que chegou à porta, vinda de dentro da casa:
— Hei! Crianças! Levantem-se! Tá na hora de preparar para dormir.
Meio assustados, os três levantaram-se e correram prá dentro da casa.
— Dona Beatriz, a senhora está bem? — Perguntou a nora. — Parece estar cansada?
— É... sim... Cansada de viajar por esse mundo de histórias.
Levantou-se e dirigiu-se para seu quarto.
Tia Elvira ficou ainda algum tempo na varanda, divagando, sem atinar com o significado das palavras de Vovó Bia.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 20 de novembro de 2015.
Conto # 925 da série 1.OOO HISTÓRIAS
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