Flechas e Fumaça
Toda vez que a porta era aberta, mesmo que apenas por alguns instantes, uma nuvem de fumaça amarelada e quente fugia para a noite, talvez, para se juntar às nuvens. Hafron e o homem mais alto desceram do táxi, contaram suas moedas, com certo pesar de gastá-las, e pagaram o motorista. Ele, por sua vez, recontou uma por uma, enquanto tentava encontrar uma razão para a esquisitice dos dois passageiros. Depois, guardou as moedas no porta-luva e, ainda perdido em pensamentos, desapareceu entre os postes no final do quarteirão. Os dois, sem entender, entreolharam-se, como se pagar o táxi apenas com moedas de cinco centavos fosse algo normal.
Andaram encolhidos até a porta que cuspia a fumaça para fora. A placa sobre ela estava acesa e atraía algumas mariposas que rodopiavam sem saber para onde estavam voando, como se tivessem acabado de sair, embriagadas, do balcão do bar. O “Maya” continuava o mesmo e fora assim nos últimos trinta anos, desde a primeira vez que um copo de absinto ou, durante o dia, uma xícara de chá foi esvaziada por um cliente desavisado e, principalmente, desinformado. Afinal, a verdadeira utilidade do bar não está escrita no letreiro e antes de entrar é difícil desconfiar de alguma coisa.
Hafron entrou na frente, seu companheiro vinha logo atrás. O bar estava lotado, como era de se esperar em uma noite de sexta-feira. Havia dois lugares vagos no fim do balcão, perto da junkebox velha e estragada. Seguiram até eles sem qualquer cerimônia, o Maya não era lugar para isso. Já estavam habituados àquele ambiente, ao burburinho desenfreado e viciante que quase lhes obrigava a tomar parte nele, à fumaça de odores estranhos que queimava os pulmões dos novatos e ao Fred, o balconista e proprietário. Era gordo, mal-humorado e não fazia nada melhor do que reclamar da vida. Nunca tirava seu avental e mantinha na ponta da língua uma sorte sempre surpreendente de respostas para retrucar os comentários maldosos acerca da qualidade de seus serviços, que algum cliente pudesse resolver soltar.
Precisavam perguntar a alguém sobre a fada que haviam encontrado, não tinham idéia do que fazer. Sabiam que as fadas eram muito especiais. Elas desapareceram há algum tempo e desde a destruição de sua cidade, nenhuma fora vista, simplesmente sumiram. Estavam nervosos, o homem mais alto mais do que Hafron, porque carregavam algo importante e, se tivessem sorte, de grande valor também. A fada poderia tirá-los do buraco.
Encontraram, entre as pessoas que estavam nas mesas, alguém que, aparentemente, poderia ajudá-los. Estava sentado em um dos cantos, mantinha o rosto sob um capuz e os cotovelos apoiados sobre um livro grosso. Em sua mesa havia mais duas pessoas. Um garoto e uma garota. Aquele tinha os cabelos loiros e cacheados, usava uma camiseta branca, apesar do frio, e já havia bebido além da conta. Esta era mais séria, os cabelos estavam impecavelmente presos em um rabo de cavalo e vestia uma jeans e um moletom cor-de-rosa. Hafron aproximou-se deles, meio sem jeito e com as mãos para trás.
- Será que você poderia nos ajudar? – ele perguntou ao... garoto de capuz. Era um garoto, como os outros que estavam em sua mesa. Devia ter no máximo dezoito anos, provavelmente menos, calculou Hafron.
- Pelo visto você precisa mesmo de ajuda! – o garoto loiro debochou ao olhar Hafron dos pés à cabeça.
- Fique quieto, Falco – a garota interveio.
- Você quer a minha ajuda? – Elioti perguntou ansioso. Seus olhos brilharam, talvez, por causa das luzes fluorescentes ou por mera curiosidade.
- Ele é anão – Falco recomeçou em tom ainda mais desaforado. – Olhem para ele, não deve ter mais do que meio metro de altura – ele riu escancaradamente. – É menor do que meu irmão de oito anos!
O homem mais alto despejou sobre ele um par de olhos pesados e sérios, que imediatamente fizeram a gozação desaparecer. Os três ficaram calados e engoliram qualquer coisa que pretendiam dizer. Hafron, por sua vez, olhou por cima do ombro e pegou o vidro onde a fada estava e colocou-o no centro da mesa. O burburinho no bar pareceu diminuir e, por um instante, Hafron pensou que todos estavam olhando para eles, pôde até sentir o calor dos olhares em sua nuca, embora não houvesse motivo para tal.
Elioti olhou para a fada com um misto de desconfiança e emoção, coçou os olhos para espantar qualquer possibilidade de tratar-se de uma ilusão ou de alguma brincadeira de sua imaginação. Quando esticou o braço para tocar o frasco a fim de confirmar definitivamente a existência da fada, Hafron tirou-o depressa de cima da mesa, esticou um sorriso e disse:
- Nada de tocar nela – matinha o sorriso e fazia as palavras saltarem por entre seus dentes amarelos e anormalmente retos. – Quero saber se você pode nos ajudar – ele respirou. – Você pode?
- Isso é mesmo uma fada? – Elioti diminuiu a voz e disse com os olhos tão esbugalhados que quase empurraram Hafron para trás.
- É sim – o homem mais alto interferiu de maneira rude, já descrente da ajuda que aqueles três poderiam lhes oferecer.
- Você pode ser preso ou acabar morto por andar com uma fada – Elioti recomendou timidamente. Suas faces ficaram vermelhas e reforçavam seu constrangimento. – Essa – ele apontou para o frasco - deve ser a única fada viva em todo o mundo – ele parou por um segundo. – Ela está viva mesmo, num está?
- Acho que sim – Hafron aproximou o frasco do ouvido e sacudiu-o descontroladamente.
- Não faça isso! – ele implorou quase aos prantos. – Ela é valiosíssima.
A fadinha estava sem entender. Sua cabeça doía como se houvesse duzentas abelhas zumbindo dentro dela e olha que para uma cabeça tão pequena, duas abelhas já incomodariam o bastante. Ela tentava entender o que se passava do lado de fora do vidro, Tudo lhe parecia estranho, fora do lugar e pálido.
- É valiosa para mim ou para você? – Hafron retrucou maliciosamente.
- Eu quero dizer – ele gaguejou e custou a fazer as palavras saírem – para nós dois, eu acho.
- Vejo que eles não poderão nos ajudar – Hafron olhou para o homem mais alto, como se esperasse algum sinal de aprovação . – É melhor irmos andando, eles são apenas um bando de crianças.
Dito isso, os dois se viram e sem qualquer cerimônia seguiram na direção da porta, dessa vez, o homem mais alto estava na frente e abria caminho na nuvem compacta de fumaça.
- Precisamos ir atrás deles – Elioti disse preocupado aos seus amigos.
- Deixe isso pra lá, eles são dois perdedores – Falco discordou.
- Eles têm uma fada! – ele tentou se levantar, mas Falco segurou em seu braço.
- O que isso importa?! – Falco acrescentou debochadamente. – Que eles sejam imensamente felizes com ela – ele levantou os ombros e sorriu sem mostrar os dentes, querendo dizer que não se importava nem um pouco.
- Não adianta mais brigar – a garota se pronunciou pela primeira vez. – Eles acabaram de sair.
Elioti e Falco voltaram os olhares para a porta que acabara de fechar. Por ela passaram o homem mais alto e Hafron segurando a fadinha.
- Maldição! Tem alguém soprando o vento aqui para baixo essa noite – Hafron olhou para o alto, como se pudesse ver alguma coisa entre as nuvens que, segundo ele, era culpada pelo vento frio e áspero que empurrava tudo para o norte.
- Tem alguma coisa errada – o amigo disse um pouco aflito. – Há só vento, mais nada.
Quando Hafron pensou em descobrir sobre o que seu amigo estava falando, uma flecha, vinda de alguma lugar do alto de um prédio, cruzou a rua com um brilho prateado e afundou-se no peito do homem mais alto. Ele recuou com a mão sobre o ferimento e um grito abafado de dor.
- Quem está aí? – Hafron gritou sem entender ao certo o que acontecera.
Mais uma flecha, e essa acertou o ombro do homem mais alto, fazendo-o cair de joelhos. Hafron desabotoou rapidamente um dos bolso do casaco e tirou um punhado de vaga-lumes de lá, suas luzes eram amarelas e quentes. Jogou-os para o alto e apontou na direção de onde as flechas vinham. Eles ziguezaguearam até iluminarem uma mulher segurando um arco com mais uma flecha em riste. Ela atirou. A flecha correu pelo ar e acertou o pescoço do homem mais alto. Hafron desesperou-se e avançou na direção dela.
- Devolva minha fada! – Marina gritou, enquanto deslizava pelo ar até pousar delicadamente na calçada. – Quieto! – ela gritou mais uma vez, o amuleto vibrava em seu peito.
Hafron ficou paralisado, como se a noite tivesse envolvido seus membros e, aos poucos, drenasse sua força. Marina se adiantou e tomou a fada das mãos dele, ergueu o frasco e verificou se ela ainda estava viva. Naquele instante, os três garotos, ainda brigando, saíram do bar. Encontraram o homem mais alto caído ao lado da porta e Hafron petrificado diante da arqueira. Marina ao vê-los, desapareceu, como se nunca tivesse estado ali. A garota debruçou-se sobre o homem mais alto, mas estava muito nervosa, para poder tentar fazer algo para ajudá-lo. Falco e Elioti foram ao encontro de Hafron que se desvencilhou do feitiço que lhe mantinha paralisado e não pensava em mais nada, senão em salvar seu amigo. Ele correu até lá, o sangue começava a formar uma poça. Juntou-se ao homem mais alto, colocando-o em seu colo, e pediu para que a garota se afastasse, ela obedeceu. Retirou um giz branco do bolso e desenhou um círculo ao redor deles, pegou um bombinha e jogou-a no chão. O estouro seco produziu uma cortinha de fumaça verde que ocupou apenas o espaço no interior do círculo de giz. Quando se desfez, Hafron e o homem mais alto haviam desaparecido, restara apenas a poça de sangue e uma flecha de prata.