Beto
Fido acordou mais cedo que o normal naquela manhã. Aquele era o dia que receberia a herança da falecida tia Fifi, uma tia que nunca conheceu e não teve filhos, fazendo dele o seu único herdeiro. Finalmente teria a vida que sempre quis e merecia. O simples pensamento o fazia abanar o rabo de alegria. Ainda bem que estava dentro de casa ou poderia ser preso por atentado ao pudor. Foi tomar um banho e depois secou os pêlos no recém comprado Dry Master 3000, um tubo gigante onde se entrava de corpo inteiro e secava toda a pelagem por igual. Custou uma fortuna, pensou. Mas, em menos de uma hora estaria rico e não viu nada demais em já gastar um pouco por conta.
Vestiu uma calça social preta com paletó azul e uma camisa de seda de cor neutra. Nunca se vestia assim, mas a ocasião merecia. Colocou a roupa nova na conta da herança também. Um motorista foi buscá-lo em casa.
- Muito bom dia, Senhor Fido. Me chamo Chani e trabalhava para sua tia. Meus mais sinceros pêsames.
Chani era um “gatuno”, como Fido costumava chamar os felinos. Fido odiava os “gatunos”. Achava todos uns malandros preguiçosos, sempre esperando uma oportunidade para roubar e se darem bem. Pelo jeito, tia Fifi era daquelas senhoras ricas que achava que os caninos tinham uma dívida histórica com os felinos pelos anos de exploração, escravidão e colonialismo no passado. Bom, esse era um problema que Fido não compartilhava com sua falecida tia, isso era certo.
- Obrigado. Agora vamos que eu não tenho tempo a perder. E dirija com cuidado que eu estou de olho.
Ao chegar na mansão, diante de todo aquele luxo, Fido sentiu sua cauda querendo abanar de novo. Por sorte a roupa de baixo reforçada impedia a manifestação de sua alegria em público. Na sala, o Dr. Argus, advogado responsável pela herança da sua tia o esperava. Dr. Argus era um canino bonachão já com certa idade. Vestia um terno escuro impecável e uma gravata borboleta lilás cuja função era dar um toque alegre à vestimenta sisuda.
- Bom dia, Doutor.
- Como vai, Fido?
- Melhor agora. Não sabia que iria mandar um “gatuno” me buscar.
- Você diz, Chani? A expressão “gatuno” é um tanto politicamente
incorreta, não? Os tempos são outros, Fido.
- Que seja. Sinceramente, pra mim tanto faz. Assim que assumir a mansão, irei despedi-lo mesmo.
- Assumir a mansão?
- Sim, a mansão, o dinheiro, os carros, tudo. Enfim, a herança que titia deixou para mim.
O advogado ajeitou a gravata e olhou para baixo por um instante. Pigarreou e por fim, falou:
- Sabe, Fido, houve um mal-entendido da sua parte. Esta mansão e toda sua fortuna, Dona Fifi deixou para a Igreja. A única exceção é Beto, este sim a herança que sua tia deixou para você.
Por alguns segundos houve um silêncio ensurdecedor entre ambos.
- Beto? Mas quem raios é Beto, Doutor?
- Beto é o humano que pertencia à Dona Fifi.
- Um humano??? Tipo um humano de estimação???
- Exato. Infelizmente é a lei, Fido. Mesmo com o avanço da medicina e hábitos mais saudáveis, nós caninos vivemos no máximo 30 anos. Mesmo Dona Fifi com todos os bons médicos que sua fortuna pode comprar, morreu com 28 anos. Já os humanos podem chegar aos incríveis 80 anos. Por isso, a lei manda que as gerações seguintes cuidem dos humanos de estimação daqueles que morrem. O abandono já não é mais tolerado como antes, Fido. A Sociedade Protetora dos Humanos está de olho.
- Mas, que merda! Pelo amor de Rexus, eu nunca quis um humano. Que culpa eu tenho?
- Como disse, é a lei. Goste ou não, Fido, como parente mais próximo de Dona Fifi, agora Beto é sua responsabilidade. Ele é um bom humano. Tem vinte e dois anos, foi castrado e vacinado e é bem ensinado. Não deverá ser um problema para você cuidar dele.
Fido não conseguia acreditar. De repente, todo o seu sonho de grandeza e fortuna foi por água abaixo, bateu asas.
- Nunca entendi essa fascinação por humanos. Eles parecem “macacos” pelados.
- Bem… não deixe que um macaco o escute falar algo assim, Fido.
- Não há macacos na cidade, Doutor.
- Sim… Bom, me acompanhe, por favor.
Foram ambos para a outra sala, em direção da janela que dava para o jardim. Por fim, o advogado apontando para o lado de fora, disse:
- Aquele é Beto, Fido.
No jardim, Fido pode ver Beto correndo de um lado para outro. Um “macaco” pelado sem bolas, que ao parar de correr, ficou olhando para Fido com uma cara de perfeito idiota, enquanto coçava a bunda.