DÁRCIA, A GUERREIRA
A batalha já durava mais de um dia. O
sangue banhava a pradaria, como um mar vermelho
que invadia os prados pelo Norte. Os cavaleiros de
negro com suas armas de aço cortavam corpos
como se estivessem ceifando o trigo. O Povo da
Pradaria jamais tinha visto tamanha crueldade num
ser humano. Homens, mulheres, velhos e crianças
haviam sido trucidadas pelas espadas, machados e
lanças do inimigo negro. Suas aldeias queimadas,
suas plantações destruídas, seu gado morto.
Os caçadores tentaram defender sua gente
assim que retornaram da floresta, mas era inútil.
No final, apenas um homem e uma mulher
sobreviveram ao massacre. De costas um para o
outro, cercados de todos os lados pelos cavaleiros
negros, empunhando armas de caça, ambos
derrubavam pelo menos um de cada vez. Mas para
cada um que caía, mais dez surgiam. A mulher
finalmente conseguiu apanhar uma espada de um
inimigo morto, e, exibindo uma habilidade que
talvez ela mesma não sabia possuir lutou
bravamente abrindo caminho para si e o
companheiro, até acharem um modo de fugir da
horda assassina. O casal pegou um dos cavalos dos
assassinos, e partiu para a floresta a todo galope.
Alguns cavaleiros ainda os seguiram, mas homem
e mulher conheciam bem sua floresta.
Desapareceram das vistas dos guerreiros do Norte.
Assim que perceberam que estavam a salvo
fizeram com que o cavalo diminuísse o ritmo do
galope. Aquela era uma floresta bastante fechada.
O Povo da Pradaria vivia às margens de uma
espessa floresta de carvalhos. E agora eram essas
árvores que os observavam à sua passagem. O
casal passou por um local que ainda não
conheciam. As árvores ali eram maiores e mais
ameaçadoras. Os sons das feras selvagens parecia
ter desaparecido de repente. Sua montaria ficou
agitada, e se recusava a ir em frente.
Resolveram saltar e prosseguir a pé. Se os
cavaleiros ainda estivessem no seu encalço,
certamente os apanhariam, se permanecessem ali.
O animal sentiu um certo alívio ao ver que estava
liberado, e não perdeu tempo. Saiu galopando na
direção oposta. Ambos chegaram a uma clareira de
onde podiam ver o sol. Seus rostos iluminados por
raios agradáveis e acalentadores. Os cabelos
dourados da mulher faiscavam ao toque suave do
astro vespertino.
Quando o sol começou a se pôr, ambos
notaram algo diferente no horizonte. Havia uma
grande e alta torre na direção Oeste. Uma
construção negra como o piche, mas que brilhava a
luz do sol. Aparentemente estava longe demais
deles. No entanto, sua visão fascinou tanto homem
quanto mulher, e ambos puseram-se a caminho
para alcançar a torre negra.
Quando a noite chegou, eles se
encontravam no pé da imensa construção que agora
mostrava toda sua imponência. Era redonda,
construída com rocha sólida lapidada
cuidadosamente. Não possuía janelas, e suas
ameias estavam cobertas por nuvens, o que
demonstrava claramente que se tratava de uma
construção altíssima. Era cercada por uma muralha
quadrada construída com a mesma rocha. O portão
de ferro estava entreaberto, como se estivessem
esperando por visitas. Caminhando
cuidadosamente, ambos atravessaram-no.
No interior da muralha havia um pátio repleto de
ossos espalhados pelo chão. Ossos tanto humanos
quanto de animais. Pensaram haver leões ou
leopardos ali guardando a torre, e ficaram atentos.
No entanto, sons macabros vindos do alto
sobressaltaram o casal. A garota empunhando a
espada de seu agressor, e o rapaz sua lança de caça,
ambos olharam para o alto. A lua estava cheia,
iluminando a noite opressora. O topo da torre se
escondia por cima de nuvens espessas.
Definitivamente, os sons vinham daquela direção.
De repente uma criatura surgiu dentre a espessa
camada de nuvens vindo em direção aos dois que
se surpreenderam com tamanha velocidade. Uma
monstruosidade, meio humana, meio morcego,
com asas de enorme envergadura. De presas
impressionantes e garras afiadíssimas, o monstro
alado agarrou o rapaz sem que este pudesse se
defender de forma alguma. Sua força era tanta, que
parecia nem sentir os golpes que a garota desferia
com sua espada. Uma cauda pontiaguda ajudava a
criatura a lutar, o que dificultava mais ainda a
tentativa da garota de salvar seu companheiro.
Finalmente a lâmina encontrou um ponto fraco na
espessa couraça, e a fera foi ferida. Seu sangue
jorrava pesado, com um odor nauseabundo.
Animada com o golpe certeiro, a garota desferiu
outro e mais outro, até que finalmente a criatura já
não reunia mais forças para lutar. Largou o rapaz
que se encontrava ferido e desacordado. Um último
golpe tirou a vida do monstro. A garota correu para
o rapaz que ainda respirava com dificuldade, e o
amparou.
- Vou leva-lo pra dentro da torre – disse ela
carregando o companheiro.
O rapaz nada disse. Apenas olhou na direção do
grande portal que levava ao interior da construção,
e depois fechou os olhos com um suspiro profundo.
Passando pelo umbral, a garota viu que o grande
salão do hall era iluminado por archotes presos às
paredes de pedra maciça. O piso estava repleto de
ossos humanos ou não, e o cheiro era insuportável.
Depositou o corpo inerte com cuidado no meio da
grande câmara, e passou a investigar o local com
mais atenção.
Caminhou cuidadosamente desviando de crânios
despedaçados, osso cortado, armas enferrujadas,
armaduras rasgadas, até chegar ao pé de uma
escada que parecia a única passagem para os
andares superiores daquela macabra torre.
Segurando firmemente o punho da espada, a garota
vasculhou o ambiente, apurando os ouvidos.
Parecia que algo se esgueirava logo acima de sua
cabeça, mas mesmo iluminado pelas tochas, o
salão estava muito escuro. Apanhou uma das
tochas e a carregou consigo. A sensação da
presença tornou-se mais forte, e a garota olhou
para o teto.
Lá estava. Uma daquelas criaturas aladas
espreitando, pendurada no teto com suas garras e
presas à mostra ameaçadoras. A garota
instintivamente apontou a lamina de sua espada na
direção do monstro e olhou na direção de onde
deixara o rapaz sem sentidos. Ele sumira!
- Pelos deuses – murmurou ela. – Ticon! Onde
você está?
A única resposta que obteve foi o rugido infernal
da criatura que pareceu zombar dela. Logo em
seguida o monstro alado lançou-se contra ela, mas
a garota teve uma surpresa. O monstro caiu sobre
seu corpo sem vida. Depois de afastar a fétida
criatura de si, a garota viu o que acontecera. O
monstro tinha duas flechas cravadas no meio de
suas costas.
- Quem...
- Já estou cheia de matar essas coisas – a voz
vinha da escada, onde a garota pode ver a silhueta
de uma mulher empunhando arco e flecha. A
mulher se moveu, e à luz das tochas, a garota pode
vislumbrar sua salvadora. Era uma negra de corpo
atlético, vestindo peles de leopardo, seus cabelos
como uma grande juba de leão, e seus olhos
esmeralda faiscavam ante a luminosidade do
ambiente.
- Onde está meu companheiro? – foi a única
coisa que a garota perguntou, levantando-se do
solo ensangüentado.
- Ora – respondeu a negra caminhando na
direção da garota. – Ele está bem aí.
E apontou para a criatura que se esvaía em
sangue. A garota custou a entender, mas depois de
um tempo, o monstro deu lugar a Ticon, o caçador.
- Pelos deuses...
- Ele foi atacado por uma dessas criaturas? –
perguntou a estranha.
- Sim. Eu a matei. Está lá fora...
- E é melhor também nós, irmos lá pra fora. Essa
maldita torre está infestada por essas bestas aladas.
A propósito. Sou Dárcia, dos Okoshas. E você?
- Sou Luma, do Povo da Pradaria.Este é Ticon,
nosso melhor caçador.
- Infelizmente acabou virando caça muito cedo.
Vamos. Meu cavalo está além do portão. Não
pretendo passar nem mais uma noite neste lugar
dos demônios.
Com relutância, a jovem Luma deixou para trás
seu companheiro morto, e ambas saíram para o
pátio externo da torre. Atravessaram o portão, e
Dárcia assobiou. Logo, do meio da mata, surgiu
um garanhão negro cujo pelo reluzia à luz do sol.
- E o que você fazia aqui nesse lugar maldito? –
perguntou Luma, enquanto se acomodava na
garupa do animal.
- Estava atrás de um pergaminho que contém
algo de muita importância para mim. Vamos
embora, Yildiz.
E o cavalo galopou rumo ao sul carregando as
duas novas companheiras.