O ANJO DA GUARDA - capítulo XVII
"E disse o anjo, tomando a vez:
- Para o Vale da Solidão, é para lá que vou."
Quando se abria a terra diante dos pés da garota Evangeline, o anjo logo a puxava para cima, batendo asas; não conseguia voar tão alto e nem por muito tempo, em razão de que suas asas estavam danificadas, por isso soltava a garota mais à frente. Bemasas também não podia voar, em vurtude das agressões que sofrera do irmão, até para correr tinha dificuldade. E quando se aproximavam do portão da cidade de Corvus, ia Bemasas cortar o pulso nos espinhos, no entanto, partiu-se o chão e caíram os portões de supetão, dando livre passagem para qualquer um que quisesse passar. Pulou Bemasas o buraco, para o outro lado, onde a andorinha só os aguardava; depois foi a vez do anjo com Evangeline, ele segurava a mão dela. Pulou. Mas quando passava Evangeline para o outro lado, levantava-se em dificuldade, entre os arbustos, o corvo servo de Malasas, bastante ferido e, tendo nas mãos uma pequena vareta pontiaguda, murmurou:
- Mesmo estando morto meu mestre e eu também à beira da morte, não deixo de agradá-lo. E caso não lembrem, para entrar ou sair de Corvus, é preciso algumas gotas de sangue!
Então ele deslizou a vareta no braço da garota... E a cortou. Nesse instante, ela sentiu o ardor e apertou os lábios; também nesse mesmo instante, o anjo da guarda olhou para seu próprio braço e estava a sangrar, era a primeira vez que derramava sangue de sua pele. Parou ele e congelou o olhar no sangue que escorria do braço e sentiu um arrepio passar por todo o seu corpo, um ar gélido no coração e muito medo, porquanto aquilo só podia significar uma coisa... Virou-se o anjo da guarda para Evangeline e viu, ela estava ferida. Bemasas, ao ver que eles haviam parado, regressou até o anjo da guarda, notou como ele fitava assombrado Evangeline, então olhou para o braço do anjo da guarda e viu que sangrava, em seguida, olhou para o braço da filha e este estava ferido. Percebeu Evangeline que desciam lágrimas dos olhos de seu anjo e que estes olhos haviam paralisado na ferida dela; olhou Evangeline para o pai, como ele estava a fitar o rosto do anjo da guarda, com as sobrancelhas dobradas e o semblante abatido. No que disse Evangeline:
- Foi só um cortezinho de nada, nem está doendo!
Ela tentou sorrir, mas notou que o anjo chorava ainda mais e seu pai ainda o olhava daquele jeito. Disse ela mais, agora bem mais nervosa e ainda tentando demonstrar um sorriso:
- Eu já disse, foi um corte pequeno, não foi nada!
Então o anjo da guarda baixou a cabeça e, tocando Bemasas em seu ombro, falou para ele:
- Você... Você fez tudo o que podia... Eu sinto muito.
- Sou eu quem mais sente agora.
O anjo da guarda disse, em lamúria. Então Evangeline olhou para ambos, depois sacudiu os ombros do pai, derramando lágrimas; não sabia bem ao certo o que acontecia com o anjo da guarda que deixava seu protegido ser ferido, mas imaginava que coisa boa não podia ser. E exclamava para seu pai:
- Pai, olha para mim! Eu estou bem! Veja, eu estou bem! Me escute!
Mas Bemasas não disse nada... Porque ele sabia, era a lei dos anjos da guarda. Foram eles seguindo por um caminho que desviava-se dos caminhos da cidade de Luz e, chegando próximos a um vale, perguntou Evangeline, a estranhar:
- Por que estamos vindo por esse caminho? Luz não é para lá?
Ela apontou para o outro lado, quando explicou-lhe seu pai, olhando no fundo de seus olhos:
- Filha, o anjo da guarda não vai para Luz conosco.
- E para onde ele vai?
- ...
- Pai, me responda!
E disse o anjo, tomando a vez:
- Para o Vale da Solidão, é para lá que vou.
Eles andaram mais um pouco e chegaram ao portão de entrada do vale, em frente haviam dois homens vestindo capuz escuro e com espadas nas mãos; um de cada lado; eles se aproximaram do anjo da guarda e num tom hesitante, Evangeline questionou o pai:
- O que vão fazer com ele?
Bemasas inspirou um tanto de ar e depois soltou, respondendo para a filha:
- Todo anjo da guarda, quando permite propositamente ou até despropositamente que firam ou que se fira seu protegido, ele é condenado, suas asas são arrancadas e ele é lançado para o Vale da Solidão, onde fica a andar por toda uma eternidade, sem que ninguém lhe possa confiar.
Sabendo disso, Evangeline ficou espantada, atônita! Abraçou o anjo e disse:
- Não, eu não quero que isso aconteça! Anjo, você me guardou de tudo e de todos! Dos corvos, da falsa andorinha, das plantas carnívoras... De todos os planos maléficos de meu tio! Não é justo que...
O anjo da guarda segurou os ombros da garota, penetrou seu profundo olhar nos olhos dela, como o mar que envolvia-se com a areia da praia, e para ela falou:
- Sim, é justo. Eu falhei no último momento, deixei que lhe rasgassem a pele e devo ser punido por causa disso.
- Mas eu estou bem, nem sinto dor! Por que não acreditam em mim?
- Eu acredito! Mas, mesmo assim, meu dever, minha promessa foi não deixar que lhe fizessem nenhum mal... Mas eu falhei.
- Não quero que seja castigado...
Ela dizia, a chorar. E falou o anjo, segurando o rosto de Evangeline:
- Olhe para mim... Eu vou ficar por aqui, mas isso não quer dizer que a esquecerei. Andarei por esses caminhos com você em meus pensamentos. Eu terei as estrelas para me lembrar de ti, lembra? As estrelas! Terei o campo para me recordar das vezes em que, tão pequenina, você engatinhava pela sala e eu corria desesperado atrás de você, temendo que caísse. (riso) você era uma criança muito esperta... Viu? Não estaremos distantes um do outro! Basta que guardemos e alimentemos as lembranças, basta que olhemos as estrelas, os campos, e pensemos no outro. E eu sei que nunca, nunca a esquecerei! E saiba que a minha maior dor não será perder minhas asas, e sim saber que você estará correndo pelos campos, campos tão vastos, e eu não estarei ao seu lado para te proteger...
Então chorou o anjo, chorou muito... E os homens encapuzados seguraram seus braços e o fizeram ajoelhar-se no chão; um segurou os ombros do anjo da guarda e o outro pegou a espada. E Evangeline, em agonia, sacudia o pai e suplicava em prantos:
- Pai, não deixe que eles façam isso!
Bemasas, sentido-se do mesmo modo que a filha, falou:
- Acredite, minha querida, estou tão amargurado quanto você... Mas é a lei... E eu não posso interferir. Me desculpe.
E quando levantou o homem a espada, o anjo da guarda virou o rosto para Bemasas e gritou:
- Não deixe que ela veja! Não posso deixar que isso fira seu coração.
Então ele baixou a cabeça, fechou os olhos e, baixando a espada, o homem cortou as asas do anjo, no que ele deu um alto grito de dor, que rasgou sua garganta! Ao passo que Evangeline escondia o rosto no peito do pai, para não ver, e chorava. Após isso, o anjo foi pôsto de pé e jogado para o Vale da Solidão, ele saiu caminhando em pura dor, enquanto os portões do vale se fechavam em suas costas. Evangeline ainda correu até o portão, para ver o anjo desaparecer no fim do caminho. Foi a última vez que ela o viu.
A andorinha foi-se embora para o Norte, viver seu restinho de inverno e Bemasas e a filha voltaram para Luz e os de lá os receberam em muita festa e alegria. Ora, a fada que havia batizado Evangeline em seu nascimento, fez a garota voltar a ter seus cincos anos, porquanto devia cumprir corretamente o ciclo da vida. E, tornando-se novamente menina, Evangeline correu pelos campos de Luz, a brincar com o pai. Eis que alcançaram a árvore de flores roxas, sempre ali, tão vívida e robusta! Evangeline adimirou a árvore, quando porventura pousou em seus galhos um pássaro negro, era Roxilas; ele havia escapado do palácio a tempo. A menina, muito surpresa, apontou para o corvo e disse:
- Olha, papai, Roxilas!
E falou Bemasas:
- Sim, Roxilas. Você ama essa árvore, não é?
Evangeline acenou para o corvo, ele, por sua vez, levantou a asa, muito contente! Depois disso, abriu asas e voou para longe... Não para Corvus, mas para qualquer lugar que talvez um dia pudesse chamar de Liberdade.
FIM.