ODE A UM CAÍDO
Desde que chegara de viagem, padre Erly
sentia em seu peito um aperto no coração, como se
algo muito grave estivesse por acontecer. Não
conseguia mais se concentrar no trabalho, perdia a
paciência facilmente, coisa que dificilmente
acontecia antes, não cumpria horários e tampouco
respeitava compromissos. Estava completamente
mudado.
Pediu auxilio de padre Jeremias, o pároco
local e grande amigo.
“Procure a ajuda de um psicólogo”, dissera
o pároco. “Acho que seu mal não se cura apenas
com a oração”.
Erly concordou, e consultou um
especialista. Entretanto o psicólogo nada pode
fazer, pois não havia como o padre pudesse
explicar o que realmente sentia. Estava deprimido e
estressado, e foi o único diagnóstico que puderam
atingir. Mas os motivos deveriam ser investigados
mais a fundo.
Certo dia Erly saía da sacristia quando viu
um estranho que observava atentamente a imagem
da Anunciação. Era um jovem andrógeno de olhos
calmos e brilhantes. Trazia no rosto um sorriso
enigmático, emoldurado por longos cabelos negros
e cacheados. Quando notou a presença do
sacerdote o rapaz lhe fez uma reverência, mas
continuou atento à imagem: a jovem Maria sendo
visitada pelo arcanjo Gabriel.
“Ninguém jamais soube representar as
vestimentas de um arcanjo”, disse o rapaz. Sua voz
era melodiosa e acalentadora, o que fez Erly se
interessar ainda mais pelo estranho. “Na verdade
usavam à época da anunciação armaduras e elmos,
trazendo em bainhas presas à cintura, espadas
longas, como as dos cavaleiros medievais”.
“Quem é você, meu jovem?”, perguntou o
padre se aproximando do estranho. “Em que posso
lhe ser útil?”
O rapaz fez uma reverência, agora para a
imagem, e se aproximou do padre. Sorrindo
amavelmente, disse: “Na verdade, padre Erly, eu é
que estou aqui para servi-lo”.
“Como sabe meu nome? De onde nos
conhecemos? Eu não...”
“Não me conhece, padre”, interrompeu o
rapaz. “Mas eu o conheço há tempos, e sei que é
um homem sério e dedicado à verdade”. Fez uma
pausa, e logo continuou: “Sei que anda tendo
alguns problemas. Sua concentração não é mais a
mesma, sua dedicação ao serviço religioso está
sensivelmente relaxada”.
“Quem o mandou? A Cúria?” Erly havia
escrito para o próprio cardeal arcebispo de São
Paulo pedindo auxilio. Seus momentos de incerteza
e insegurança o estavam deixando maluco, e
precisava de ajuda mais gabaritada.
“Não foi a Cúria que me mandou”,
respondeu o jovem. “Mas alguém muito acima de
qualquer instituição cristã no mundo. Sei o porquê
de sua insegurança. Do seu infortúnio. Sei que
procura uma resposta que pensa jamais encontrar,
não estou certo?”
Erly apenas assentiu. Há algum tempo
vinha tendo dúvidas e mais dúvidas quanto aos
desígnios de Deus, e, principalmente quanto ao
papel de Lúcifer no grande teatro de operações
cósmico. Historicamente jamais encontrara
indícios que pudessem atestar a veracidade de uma
guerra entre o Bem e o Mal, no entanto sabia que
essa guerra ocorrera em algum lugar e em algum
tempo. Agora vinha tendo problemas para atestar
certas verdades – seriam realmente? – ditas na
Bíblia.
“Estou aqui para revelar-lhe um segredo
que foi guardado há milhões de anos, mas por
causa de sua recente falta de fé somos obrigados a
faze-lo. Sua importância na Igreja é muito grande.
Se Deus perder seu apoio, certamente haverá um
desequilíbrio”.
“Quem é você, afinal?”
“Tudo a seu tempo. Precisa saber da
verdade, e aí vai entender tudo. Centenas de
padres, pastores, rabinos, sheiks, pais-de-santo,
lamas, estão passando pelo mesmo inferno astral
que você está vivendo. Não é isolado, posso
garantir. Vou contar uma história, padre. Quero
que preste bastante atenção, pois só lhe contarei
uma única vez”. Fez uma pausa e depois começou
uma espécie de oração numa língua estranha aos
ouvidos de Erly. Parecia aramaico misturado a
grego e latim. Quando parou, o estranho fechou os
olhos e começou sua narrativa:
“Deus tinha um plano. E esse plano
incluía, além da criação de uma raça inteligente, a
presença de um de seus súditos mais leais como
uma espécie de tutor dessa nova raça. Quando o
Povo Celeste soube dessa iniciativa do Criador,
logo houve um tremendo alvoroço. Pois é sabido
que havia uma disputa encarniçada para ser o
favorito de Deus. Entre eles estavam Gabriel,
Miguel e Lúcifer. Os três mais valorosos
comandantes das legiões celestes, sendo que
Lúcifer comandava um terço do exército. Mas
Deus pretendia que o escolhido não fosse tão
belicoso, por isso estava propenso a escolher outro.
Talvez Uziel, ou o próprio Rafael, cujos dotes
políticos se sobressaíam aos outros.
“Finalmente o novo mundo foi criado, e
nele colocada uma raça que governaria – sob a
tutela de um arcanjo escolhido pelo Criador – tudo.
Deus preferiu deixar para escolher o governante
supremo da Terra depois de algum tempo. Primeiro
queria ver como sua criação se arranjaria sozinha.
E se arrependeu, pois percebeu que aquela raça era
malvada, cruel, invejosa, ciumenta, enfim. Uma
raça que deveria ser riscada da face da terra.
“Enviou Lúcifer com suas legiões para
aniquilar os já poderosos exércitos dos vários
reinos da terra. Miguel se opôs ao ataque, e, antes
que Lúcifer investisse contra a humanidade, lançou
seus exércitos contra este. A guerra dos arcanjos
foi travada durante dias, e muitos humanos se
aliaram aos dois lados. No final, não houve
vencedor, e Deus puniu seus dois generais
banindo-os para o novo mundo. ‘Tereis de cumprir
tarefas que Nos mostrem seu valor e sua amizade
um pelo outro’, dissera Deus quando os baniu”
“Miguel e Lúcifer banidos para a terra?”,
perguntou Erly incrédulo. “Nunca li ou escutei
nada sobre isso”.
“A história da Terra é mais antiga que a
apresentada nas escrituras, padre”, respondeu o
estranho. “Miguel e Lúcifer ficaram aqui durante
muito tempo, e souberam usar esse tempo para
criar laços e alianças, os quais ajudaram a ambos
em seus desígnios.
“A Terra foi o lar dos dois inimigos até a
invasão das águas que quase destruiu o planeta. O
Dilúvio, representado em tantas religiões. Foi
Lúcifer que salvou uma família em cada canto do
planeta para que este fosse novamente povoado.
Por sua vez, Miguel reconstruiu algumas grandes
cidades, e com o tempo foi venerado como um
deus em algumas nações.
“Vendo que seus dois generais rebeldes
começavam a trabalhar em harmonia, mesmo longe
um do outro, Deus resolveu perdoá-los e traze-los
de volta ao Paraíso. A terra foi colocada nas mãos
de Gabriel, que segundo consta, não nutria grande
admiração pelos humanos. O planeta foi deixado à
sua própria sorte. Muitas guerras foram travadas
entre os habitantes, o que culminou na destruição
mais uma vez da humanidade. Gabriel sempre fora
leal e obediente, e por isso Deus não quis intervir
no seu governo desastroso.
“No entanto, Lúcifer tinha verdadeiro amor
pela raça humana e estava furioso com o crescente
descaso do outro. Decidiu intervir por conta
própria. Recrutou o maior número de soldados que
pode, e partiu novamente para a terra. Desta vez
para livra-la das mãos de um governante tão
inepto, segundo ele. Deus não gostou dessa atitude,
e permitiu que os aliados de Gabriel o auxiliassem
na guerra com Lúcifer. Inclusive proibiu Miguel de
intervir em favor deste, o que gerou um grande
descontentamento entre os arcanjos.
“O mundo já estava maduro o bastante
para que fosse governado mantendo o livre arbítrio
dos humanos. Gabriel e os seus chamavam o
homem de macaco, e odiava a condição deste de
carregar uma alma imortal, assim como os anjos.
Era uma blasfêmia que os humanos, seres
inferiores até mesmo às baleias carregassem algo
de tão precioso dentro de si. Não entendia a atitude
de Lúcifer ao querer auxiliar essa raça tão
mesquinha. E quando essa nova guerra estourou os
lados estavam muito bem definidos. Os arcanjos
comandados por Gabriel dispostos a destruir a raça
humana, e Lúcifer e seu exército desejando auxiliar
os mesmos humanos. Essa guerra não durou apenas
dias, mas séculos a fio. Deus tinha em mente
deixar o barco correr até que Sua intervenção fosse
realmente necessária. Não podia oficialmente
aceitar a atitude impensada de Lúcifer, pois Sua
autoridade não podia ser contestada em momento
algum, e não podia concordar com o tipo de
administração que fazia Gabriel na terra, pois esta
fora Sua melhor criação desde os próprios anjos.
“Assim, Deus esperou. Não muito, apenas
o tempo exato para que o conflito entre seus
generais tivesse durado o suficiente. Não digo que
tenha sido uma decisão cem por cento acertada, já
que muitas vidas se perderam. Mas o fato é que
Deus interveio finalmente, e decidiu que a terra
seria administrada por Lúcifer. Gabriel devia
aceitar a decisão custe o que custasse, pois este
deveria de tempos em tempos servir a Lúcifer em
determinadas questões.
“Muitos ainda acreditam que Lúcifer foi
condenado a reinar no inferno, mas na verdade foi
agraciado com o governo da terra. Algumas mentes
brilhantes como a sua sabiam de algum modo que a
História da queda de Lúcifer não tinha muito
fundamento. E tinham razão. Lúcifer é o
governador da terra desde a ascensão de alguns dos
maiores impérios do planeta. E governará até que
Deus lhe dê outra função.
“Responda-me, padre. Era isso que o
atormentava?”
Erly engoliu em seco. Respirou fundo, e
depois de um breve momento disse: “De alguma
forma eu sabia. Sabia ser quase impossível que
houvesse um lugar tão medonho e malévolo feito o
inferno. O inferno é nós que criamos com nossos
atos, nossa ignorância, nossas próprias atitudes
pecaminosas”.
“De certa forma”, respondeu o jovem
sorrindo. “Deus sabe quem é puro e quem é ímpio.
Mas os deixa escolher seus próprios caminhos. A
punição fica por conta do próprio individuo”.
Tudo o que Erly e tantos outros sacerdotes
se dedicaram a aprender no seminário e ensinar nas
celebrações e catequeses, tudo não passava de
mentiras? Embuste? Falácia? Sabia que a História
real da humanidade era bem diferente da contada
no Antigo e no Novo Testamento. No entanto,
algumas coisas pareciam verossímeis. Sabia que o
inferno era uma invenção da própria Igreja, e mais
tarde descobriu que outras religiões monoteístas
também tinham seus infernos particulares. E mais
atrás, as religiões nórdica, e greco-romana os seus.
Todos lugares de sofrimentos para os mortos. Para
as almas pecadoras e cruéis.
No fundo, porém, sabia que aquilo poderia
ser muito bem um embuste. Mais uma história de
terror para justificar o mal que anda sobre a terra
desde os primórdios da humanidade. Chegou à
terrível conclusão de que o mal não foi implantado
pelo demônio – se é que existia mesmo um -, mas
sim pela criação mais perfeita de Deus: o homem.
“E você, quem é?”, finalmente Erly
perguntou.
“Meu nome é Asrael, padre”.
“Você é...”
“Sim, sou um dos arcanjos. Fui enviado
por Deus para esclarecer suas dúvidas e de muitos
outros. não sei se era o correto a ser feito, mas
ordens são ordens”.
“Por que Deus esclareceria tais questões?”
“Simples. Deus não está ligado a esta ou a
qualquer religião, padre. Entenda isso. Não existem
no Reino Celeste religiões ou cultos. O homem
criou esses conceitos. Foi para que houvesse um
controle sobre as massas. Sem uma religião, sem
em quê acreditar, o homem se perde em si mesmo.
Deve haver um caminho a ser seguido. Não
importa se o determinado pelos papas, ou pelos
seguidores de Maomé, ou os de Moisés, enfim.
Esses caminhos foram criados para o bem coletivo
– muito embora guerras tenham sido travadas em
prol dessa ou daquela crença.
“E todas possuem o estereotipo do Bem e
do Mal. Deus e o Diabo. Sacerdotes e feiticeiros.
Não é porque há um Paraíso, que deva existir um
inferno, não concorda? E Nem um Diabo, já que
existe Deus. Sei que é difícil de entender, mas no
final as coisas são bastante simples. O homem é
que complica tudo com todo esse seu jeito de tentar
explicar as coisas inexplicáveis”.
Ficaram em silêncio. Erly olhava para o
anjo quase sem fôlego. Não era o fato de a
revelação ser tão bombástica que o deixara desse
jeito. Mas o fato de no íntimo, o padre saber que
aquilo tudo era verdade. Tudo no que acreditara no
passado, indo para a desconfiança quanto alguns
conceitos, e para a dúvida do sacerdote devotado
vinha à tona em toneladas de informação. E tudo
batia. Realmente, por que deveria haver um
inferno? Claro. A Igreja tinha de implantar um
local para o castigo às almas pecadoras. Mas que
pecado seria tão terrível para quem o cometeu
sofrer eternamente castigos inomináveis?
Erly sabia no seu intimo que o castigo
eterno propagandeado pelo Cristianismo sob todas
as suas formas era algo vindo da Idade Média. Não
havia dúvidas quanto a isso. Nenhum sacerdote
moderno poderia crer na existência de um pacto
entre os papas e o Paraíso Celeste. E em sua
experiência com as pessoas, ele tinha plena
consciência de que o Mal propriamente dito está no
coração humano, e não em um lugar obscuro como
o inferno.
“E Deus resolveu desmistificar todas as
religiões que edificam Seu nome?”
“Deus, padre Erly, com essa Sua decisão
pretende fazer com que a humanidade deixe de
caminhar sobre a terra imaginando que em algum
lugar, algum dia acontecerá um milagre, quando os
ímpios serão arrebatados para as profundezas e os
puros serão levados por anjos para junto Dele”.
Não há Cristianismo. Não há Judaísmo.
Não há Ismo algum. Essa revelação poderia levar
qualquer um sacerdote ligado às tradições à
completa loucura. Inclusive o anjo à frente de Erly
poderia ser confundido com o próprio Diabo.
Afinal, não é o Diabo o Mestre das Mentiras? Mas
Erly sempre viu o Catolicismo como uma das
várias formas de se ligar a Cristo e seus
ensinamentos. Cristo, o único que soube interpretar
todas as Escrituras. Ele sabia que Deus era um ser
onipotente e onipresente, mas que era apenas o
criador e governante da terra. Que havia colocado
ali um de seus principais agentes para administrar
aquele mundo de forma justa e sábia. Lúcifer era
esse agente, que ainda hoje segue as ordens do seu
mestre.
Não há e nunca houve uma rebelião, e
muito menos anjos caídos do Paraíso para o
inferno. Pois os anjos que supostamente foram
lançados às profundezas juntamente com seu
general estão aqui e agora, auxiliando Lúcifer na
difícil tarefa de manter o nosso planeta vivo. A
Humanidade iria saber dessas coisas. A tarefa de
colocar as pessoas a par de tudo era de alguns
sacerdotes. Muitos seriam perseguidos.
Escorraçados e até mortos. Mas a verdade virá à
tona um dia. E quando esse dia chegar talvez ainda
haja esperança para a terra e para os seres que
vivem nela. Todos os seres.
Asrael fez uma reverencia e começou a
caminhar para a porta principal da nave. O padre o
observou partir em silêncio. Tudo já fora dito.