O ANO DO BEBÊ

O sol descia pesado. Everaldo suava tanto que mesmo o pouco vento da tarde colava a poeira da rua sobre a sua pele. O menino não estranhava. Coçava-se. A coceira vinha diariamente, com poeira ou não, bastava aproximar-se da escola e... bomba.

Coçou-se novamente. Esfregou o pescoço com as unhas.

Mas hoje a urticária estava terrível. As unhas de Everaldo precisavam ser mais esfoliantes para diminuir a irritação. Everaldo arranhou os braços. Queria que sangrassem. Fincou quatro dedos no couro cabeludo. Parou. Olhou para o sol.

O sol vinha de longe e fincava o seu pé quente na cidade. O menino caminhou meia quadra. Parou novamente, soprou o peito, enxugou a testa na camisa.

Tanto calor não foi previsto pelo homem do tempo. Coçou-se. Calor de borbulhar asfalto, cozinhar bife sobre a lataria dos carros.

Everaldo logo concluiu, resignado. A causa provável da sua comichão não era o sol. A alta temperatura, a coceira, o pouco vento vinham do fato medonho ocorrido no dia anterior. Nascera em São Paulo o bebê-diabo.

Ah, ouvira a história nos corredores da escola. Alguns alunos leram o “Notícias Populares”. O filho do capeta nascera na periferia. O jornal informou e a cidade detalhou os absurdos: “O bebê tem chifres!”; “Saiu do corpo de uma defunta grávida!”; “O parto foi um exorcismo!”; “As enfermeiras quiseram esfaquear a mãe”.

Um desenho da criatura acompanhava a notícia. Não bem um desenho, um esboço apenas, do anjo do mal que puta que se pariu. Sim, se pariu, porque diabo não poderia ter mãe com formato de mãe. Mãe do capeta é incubadora superlotada de óleo fervente, mala sem alça, caixa com espaço para cascavel. O menino esfregou os dentes no pulso direito.

Perguntou as horas a um velho. Muito cedo, meu Deus. Nunca chegou tão cedo à escola. Madrugar dentro da classe provocava comichão de 1o grau elevado ao quadrado. Voltou para sua casa.

Não sabia se deveria ir para a escola hoje. Poderia faltar. Quem saberia? Alguém tocou a campainha. Souberam.

No portão, duas mendigas pediam comida. Colaram o rosto na grade do portão. Arrastavam um saco branco. Não havia fruta em casa. As mendigas insistiram.

– Minha mãe não está! Volta mais tarde!

As mulheres grunhiram algo. Riram do susto da criança. Depois sentaram na calçada, abriram o saco e despejaram no asfalto a fornada pães duros amealhados na provável peregrinação pelo bairro.

– Esfrega para amolecê – orientou a pedinte mais alquebrada, que friccionou um naco de pão francês no poste de luz.

O menino viu a proeza. A maltrapilha raspava o pão na coluna de concreto. O pedaço esfarelava-se, mas o miolo sobrava intacto e escuro como besuntado por uma manteiga de fumaça. Depois a mulher comia o troço. Parecia comestível. Um bolo.

As duas mulheres repetiram o ritual muitas vezes. Everaldo decorou a missa. Primeiro raspar a pedra de farinha até o ponto limite do pão, depois comer, lamber os dedos e deitar no chão.

“Mais um pouco as mulheres beliscariam o asfalto”, pensou, assombrado.

O bebê-diabo induzia as pessoas a confundirem fuligem com maionese.

Esperou o fim do almoço das mendigas e saiu. Desceu a rua em direção à escola. Coçou-se e teve a certeza: o ano de 1974 seria o prenúncio da vinda do Anticristo. E certos fatos confirmavam o que o dia rebentava.

Em janeiro último, os jornais e a televisão anunciaram a passagem do cometa Kohoutek. O rabo do cometa ocuparia o céu noturno. Atingiria a terra.

Não seria ele, o cometa, a estrela do mal prevista por Nostradamus?

Os pergaminhos do Mar Morto, o Apocalipse de São João, o tarô e até a astrologia previram a passagem do Kohoutek. O cometa do fim do mundo, a tomada elétrica universal que, subitamente puxada, desligaria as pessoas.

A profecia dizia, inclusive, que o primeiro país a desaparecer seria o Chile. As pessoas se tornariam zumbis e subiriam a Cordilheira dos Andes.

Everaldo lembrou-se: tanta blasfêmia e, no final, o cometa mal brotou no céu. Veio só a faísca. Não acendeu nem vela de macumba. Acenderia o aniversário do capeta.

As mendigas atravessaram a rua. Uma empurrava a outra.

Voltou a refletir sobre o cometa. Certamente uma força do mal. E o tamanho fora irrelevante. O cometa pequeno apenas sinalizava que o diabo chegaria em uma condição de bebê. O universo não tinha lógica. O rabo do elefante não pode divulgar o tamanho do paquiderme.

Outra tragédia, fora o incêndio do edifício Joelma. Morreram duzentas pessoas. A moça saltou da cobertura segurando uma sombrinha aberta. Pensou em flutuar como um paraquedas. Se paraquedas sustentavam o peso de paraquedistas, por que sombrinhas não sustentariam mocinhas? Caiu direto, coitada. Desespero ou influência do bebê-diabo? Agora solto pela cidade, batizado pelos incêndios. Antes tivessem percebido o rabo do cometa. Agora é tarde.

Everaldo saiu de casa. Caminhou depressa. As mendigas continuavam na rua. Andavam descalças, as perdidas. Os pés das mendigas eram pães duros bem raspados pelo Diabo. Capeta padeiro, do pão que ele mesmo amassou.

O menino também considerou como fato marcante a epidemia de meningite que se alastrou por São Paulo no início do mês.

A epidemia chegou e as histórias também. A vizinha falou de uma amiga doente. O açougueiro disse que estava com medo de vender carne e os colegas de escola contaram a história de um sapateiro. O sujeito não deu bola. Não ligou para coisa e foi sentindo uma coisa dura no pescoço. O homem endureceu. Virou poste de rua.

O inusitado foi que a doença não aparecia e todo mundo estava infectado. Doença de capeta que não divulga os seus feitos. Tão estranho. Por que os jornais não falavam dos mortos? Então ninguém morreu? Ou todos morreram e isso de esconder a morte também seria outra obra do filho do coisa-ruim.

No dia que chamaram a vacinação, a fila comprida varou o bairro até o aeroporto de Congonhas. E estávamos em agosto, mês de cachorro louco.

Everaldo pensou em como atenderiam as pessoas infectadas, caso a epidemia fosse maior, mais sinistra e derrubadora. Seria o tratamento dos vampiros? Furar o coração com estacas? Furar os doentes “cabeças de ferro”, para não assombrarem?

A estaca no coração era suplício antigo. Tão velho quanto o capeta. O anjo caído foi expulso do céu por querer ser Deus. Um Deus mais potente do que o principal. O coisa-ruim queria ser um Maverick. Potente. E olha que já tinha bandido com o nome do carro, o tal do Serginho Maverick. O diabo, decerto, invejava o nome do bandido.

Um grupo de alunas voltava para casa. Elas segredavam algo e riam excitadas. Decerto, falavam sobre o bebê.

As mulheres não compreendiam a seriedade. Misturavam o assunto do demônio parido à programação diária de namoros. O diabo teria a mesma importância dos mexericos. Segredos espalhados por bilhetinhos durante a aula: “Marcelo está namorando a Priscila.”; “Você viu? A Carla veio sem sutiã”; “Você trouxe o desenho do filhinho do capeta? Que engraçado o rabinho”.

Quanta pobreza na vida das mulheres. Coitadas. Somente os homens avaliavam o diabo solto no calor.

Everaldo assustou-se quando o carro de bombeiros passou com a sirene ligada. Os bombeiros procuram tragédias e até Deus os escuta.

Deus poderia ouvir-lhe também, lamentou. Ele rezava diariamente. Deus não o atendia. Rezava o pão nosso de cada dia e não entendia. O enigmático das orações atestava a chegada do bebê.

Mas seus pensamentos também andavam estranhos nos últimos meses, fixando-se teimosamente nos quadris das meninas. Suas bundas que iam e voltavam e sentavam.

O capeta queria que as coxas das meninas rasgassem a calça azul marinho. Se é para rasgar, porque não rasgam, porque não descosturam?

Os alunos foram aparecendo no pátio da escola. Vários traziam o jornal do dia anterior com a manchete do nascimento do bebê- diabo em São Paulo”.

Todos puderam testemunhar a figura. Perceberam o sorriso malicioso, quase didático, do maldito. Os alunos o imitavam perfeitamente, levantando uma extremidade da boca, olhando para o nosso rosto. Sorriso do tipo universal, propício para velórios, batizados, casamento de padres. Universal como uma sombrinha em dia de sol forte.

O desenho circulou. Outro aluno passou o jornal na bunda. Até alguém trazer a manchete da hora desmentindo a história. Foi uma brincadeira! O bebê não existia!

Everaldo ouviu aquilo e não acreditou. O bebê não existia? Brincadeira para os leitores? Mas e a substância do mal? A presença da entidade explicara o mundo. Esclarecia o raio na cabeça... o cadáver preto e branco da 2a Guerra.

Ontem dormira mais tranquilo. Não sentiu calor.

Agora ele deveria raspar a cabeça em um poste. Raspá-la igual ao pão das mendigas. Até chegar novamente ao ponto limite de compreensão do mundo.

Respirou. Buscou refazer-se do susto e distinguir as pisadas do capeta. Pensar. O grande arranjo do mal não consistia exatamente em negar-se, distorcer-se, encaixar as consciências distraídas na possibilidade do caos? Não seria adequado para tão escuso objetivo, utilizar as prensas dos jornais?

O menino parou no meio do pátio. O calor descia pelo mastro e dissolvia a bandeira do Brasil. Agosto quente.

O diabo trabalhava no jornal que noticiara seu nascimento.

A meningite voltaria e os meninos ririam até dentro de malocas.

Quando Everaldo concluía o seu raciocínio, a sirene de fechamento dos portões foi acionada. Everaldo nunca notara. A sirene disparava um uivo comprido, igual ao lamento dos lobos nos filmes da madrugada. A tevê parecia uma matilha.

O diabo, o cão, a besta, o rabudo, o “dois chifres”, chamava os fiéis alunos para o início de outro dia de aula.

O capeta, sem dúvida, não perderia a própria missa.

DO LIVRO:"AS CRIANÇAS DO GENERAL MÉDICI"

E-mail do autor: phcfontenelle@gmail.com

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 23/05/2016
Reeditado em 24/01/2018
Código do texto: T5644901
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