Devem os objetos quebrar seu código de conduta?

Não havia nenhum humano no quarto da menina naquele momento. Na casa, apenas a mãe dormia entorpecida no quarto ao lado. Era o momento ideal para aquela reunião. Não que fizesse diferença se a casa estivesse cheia, pois a conversa dos objetos não era acessível aos ouvidos humanos.

Quem convocou a reunião foi o Notebook. Ele queria conversar com todos que habitavam o quarto da menina.

- A situação passou dos limites. Precisamos intervir.

- Minha Nossa Senhora das Cadeiras Bambas! Não podemos, isso é contra nosso código de conduta, você bem sabe, Note. Nós existimos para servir os humanos, não temos autorização para interferir na vida deles – falou Cadeira, com as pernas bambas.

- Eu que não aguento mais o choro dela todas as noites. Mesmo quando ele não vem, ela chora. É um choro baixinho, triste. Nem todos vocês escutam, mas eu ouço bem de pertinho. É de partir o coração – disse Travesseiro.

- Daqui do alto, eu vejo tudo. Aff, meu sangue ferve! É realmente difícil continuar aceitando sem fazer nada, me sinto impotente. A menina não merece. Ele deveria ser como um pai para ela – falou Armário.

- Precisamos refletir à luz dos fatos – ponderou Luminária.

- Basta! Devemos represar nossos sentimentos e nada fazer a respeito. Não nos cabe intervir – bradou Relógio, sempre conservador e atento aos costumes.

- Permita-me discordar, caríssimo Senhor do Tempo, mas as coisas estão mudando – falou Notebook – Até mesmo você, outrora tão respeitado, está sendo substituído pelo colega Smartphone. Tanto é verdade que é ele quem sai com a menina para rua agora e você não.

Silêncio. Dava para sentir os ponteiros de Relógio se contorcerem de raiva. O fato é que ninguém contestava Notebook. Por estar sempre conectado e ter acesso às informações do mundo inteiro, todos o consideravam um líder. Alguém que sabia o que falava e merecia ser ouvido.

- Vou mostrar o quão grave a situação está – começou a ler a carta que a menina havia escrito no seu processador de texto ontem. Ela narrava as noites de abuso do padrasto, a omissão da mãe e se despedia dizendo que a vida havia se tornado difícil demais de se continuar vivendo. A carta estava inacabada, mas ao fim da leitura, todos já sabiam o que precisavam fazer.

À noite, o padrasto entrou no quarto da menina logo após a mãe cair de bêbada, como sempre fazia. Sem dizer nada, tirou a calça do pijama e deitou na cama da menina, que chorava baixinho.

***

Quando a polícia chegou não soube explicar como uma menina tão pequena e mirrada conseguiu atirar todos os objetos e móveis do quarto para cima do padrasto, que morreu asfixiado e espremido com o peso.

Fernan D Antonio
Enviado por Fernan D Antonio em 21/04/2016
Reeditado em 21/04/2016
Código do texto: T5611825
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