A árvore

a ÁRVORE

Um pássaro migrante cruzou às pressas uma floresta de eucaliptos.

As árvores o perceberam, mas não deixaram de continuar seu infindável diálogo com o vento.

No meio de uma clareira, um dos eucaliptos estava pensativo. E seu modo de pensar não se revelava a nada nem a ninguém. Exceto porque árvores isoladas no centro de clareiras em densas florestas sem limites muito definidos devem, talvez, ter pensamentos que não têm a quem revelar ou confidenciar. Talvez o isolamento as ensine uma espécie de silencio diferente do silêncio da parte restante de suas irmãs árvores, todas , inclusive exceções, imersas no sonho de viver e evitar a morte. Afinal um sonho diferente de outros. Aliás as árvores têm um modo diverso mesmo de sonhar e dormir. A começar pelas folhas, que se portam como peixes, que não têm pálpebras, nem pensam em nada, exceto o sonho de viver e evitar a morte no rio e no mar.

A árvore da clareira , sem saber por que, talvez o pássaro migrante a tenha inspirado a pensar e sentir, um sentimento que era uma antecipação. E poderia se cifrar no seguinte termo: ameaça. Ameaça de, por estar isolada, ser um alvo mais fácil para os raios, tão súbitos e caprichosos por entre as nuvens carregadas, como crianças que gritam caindo da cama em meio à noite, crianças divinas. Por outro lado, ponderou o eucalipto isolado, minhas parceiras em toda floresta, por estarem tão próximas umas das outras, sejam mais facilmente vulneráveis. Um raio apenas, caído entre elas, incendiaria a todas.

De tanto pensar nisto, ela começou a se sentir um pouco angustiada. E manifestava isso perdendo algumas folhas prematuramente, à maneira de belas mulheres neuróticas que lidam com suas famílias problemáticas.

Houve uma tremenda seca. Durante quatro meses não choveu uma só gota. O sol era um carrasco que, lá de cima, parecia no fundo pedir desculpas, mas, afinal, estava desempenhando um serviço importante, só compreensível e desculpável se contemplado desde uma perspectiva universal. Árvores são coisas conservadoras. A única parte sua que radicaliza, contrariando este termo, são as partes, os ramos folhas e flores que buscam o céu, e isto é um gesto, um impulso corajoso, corajoso mesmo de se fazer, quando se tem os pés cravados para sempre no mesmo lugar. No entanto, qual presidiário, em todo o planeta, teria condições de se dissolver e transformar em vegetal, fazer penetrar o solo de sua cela com raízes poderosas, e lançando novos e altos ramos pela janela estreita alta fechada com grades?

Mas não houve problemas. O húmus da floresta, e veios subterrâneos de água límpida salvaram todas as árvores ali presentes, mais fortes, bem mais fortes e resistentes que a armada de Xerxes, o líder persa que chicoteou as ondas do mar por terem afundado seus barcos. Talvez haja árvores do mar, também. Mas, estas, fazem oscilar e vagar ramos e troncos e folhas e flores sob um outro sonho, produzido pelo fluxo da água salgada, que conduz de modo diferente tantas vozes e silêncios através do infindável mar.

Sua resistência e inerente condição as salvou todas. Mas, uma certa noite, um grupo de mochileiros fez uma fogueira em outra distante clareira. Deixaram atrás de si umas poucas brasas. O vento distraído as soprou. Toda a formidável e heroica floresta anônima foi devorada pelas chamas, bem mais rápido do que um autor humilde leva para imaginar uma história.

E restou, em toda a vastidão da planície, a perder de vista, nada, absolutamente nada, exceto algum rato oculto em seu subterrâneo de corredores entrecruzados levando a câmaras falsas como uma armadilha pré-concebida, ou um lagarto, que teve a sorte de ocultar-se a tempo sob alguma pedra. Nada restou, exceto a árvore, o eucalipto que fazia antecipações aflitas, no meio do que agora já não se poderia chamar clareira, pois tudo estava claro, até claro demais, e fios de fumaça escura e carbonizada se elevavam pelo ar, que os acolhia indiferente, e continuava sua profissão de soprar.

E pássaros, daqueles que voejam baixo buscando a sua maneira a sobrevivência, mas também a beleza, que neles serve tão bem como num funcionário um uniforme, pássaros atravessavam o sonho impossível do céu, e não se detinham, porque nada havia a fazer ali.

A árvore continuou viva. Mas seus ramos não deram mais sequer folhas miúdas. Em pouco tempo, menos tempo do que Deus leva para anunciar um desastre ou um bom milagre, toda ela secou, e agora tinha o aspecto de cabelos hirtos de algum paciente louco congelado no frigorífico de um hospício.

Mesmo assim ela continuava a se afligir, e antecipar o mal (por que não antecipava o bem, jamais o bem?) que poderia lhe sobrevir. Nas longas, intermináveis noites insones, os ramos, as raízes, suspiravam, e sonhavam com inundações, ondas de peste e fome, e gente pior que grandes tribos de macacos amaldiçoados passando junto dela, rumo a uma esperança que não se podia, se não munido de muita e metódica loucura, sustentar.

Mas afinal tudo a lhe acontecer sempre foi muito simples. Como simples, para o bem ou o mal a vida e a morte são. Certo entardecer, um homem, o rosto coberto por longa barba e roupas em trapos, levando pendurados dos seus pulsos correntes de metal partidas, fez uma pausa junto de seu tronco e, olhando para a árvore, a amadiçoou, porque não dava frutos. E a árvore ouviu a voz profundamente triste e límpida do homem, e sentiu vontade de chorar, porque não tinha sido jamais sua intenção causar mal algum, a ninguém.

Um longo período de tempo, e o espaço entrecruzando o tempo em infindáveis e bizarras e enleadas complicadas e , no âmago, simples alterações. Esse tempo passou. E a árvore, com suas alterações que seguiam de perto as de seu entorno e circunstância e condição, sobreviveu. E ali, na planície, manteve-se de pé.

Chegou então uma manhã bem fria de inverno. O eucalipto, por certo devido a uma mera distração e descuido, não fora cortado, e agora estava localizado em um canteiro, no meio de um enorme estacionamento para carros , de um shopping.

Pessoas com sacolas e problemas que eram piores do que as sacolas cruzavam pela árvore, e ela se acostumara a respirar o saturado ar constipado de poluição de toda a grande metrópole.

No dia seguinte, ou na noite do mesmo dia frio, o céu armou uma nuvem muito carregada, como a fronte de um pai que encontra em casa todos os filhos mortos.

E um raio, acidental, casual, caiu bem no centro do tronco da velha árvore das antecipações.

E ela ardeu. E o vento levou e fez a faxina das cinzas com todo o empenho.

Glauco Schneider Rolim
Enviado por Glauco Schneider Rolim em 04/04/2016
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