Cybelle

Estava sentada na varanda do hotel, senti fome e pedi um pequeno lanche. A noite estava clara, a lua cheia iluminando tudo, na rua eu via poucas pessoas andando ainda. Ao olhar para o prédio baixo de 4 andares em frente ao que eu me encontrava eu via Cybelle, linda, albina com suas asas fechadas, sempre observando tudo. Eu a chamei. Claro, ninguém ouviu, nos comunicávamos somente pelos sentimentos que tínhamos uma pela outra, ela abria suas lindas asas brancas e vinha pousar no parapeito da sacada, eu a acariciava, conversava com ela.*

- Sei que tudo está mudando minha amiga, mas você vai comigo. Não abro mão de sua companhia e amizade.

* A coruja me olhava e entendia que não seria a mudança que nos afastaria, afinal nossa história era muito antiga. Eu comecei a me lembrar de quando nos conhecemos. Eu estava ferida, em uma estrada quando a caravana dela passou. Ela parou a carroça e veio me socorrer. Os outros não gostaram muito da ideia. Sim, ela era humana naquela época. Linda. Loira, cheia de enfeites pelo corpo, vaidosa, perfumada, mesmo em uma estrada poeirenta. Quando a caravana encontrou um lugar para se estabelecer armaram as tendas. Eu fiquei morando com ela. Aos poucos eu vi que ela também se encantava com as plantas como eu. Juntas criamos um jardim lindo, uma floricultura precária. Disfarçadas entre as flores vendíamos nossas poções, ervas... só quem precisava acabava nos encontrando, tudo era muito velado, quase escondido. Mas era necessário, ambas conhecíamos as perseguições e não estávamos dispostas a sofrer mais com isso.*

* Aos poucos o grupo dela se afeiçoou à mim, mesmo aqueles que não queriam que ela me acolhesse me viam como uma deles. Eu tinha me adaptado facilmente e acabei conhecendo alguns de seus segredos. Cybelle era na verdade uma grande sacerdotisa. Seu poder era invejável. Não posso dizer que não ensinei nada à ela, mas garanto que também aprendi muito com essa incrível mulher. Depois de alguns anos de convívio éramos vistas como irmãs. Cybelle conhecia meu segredo, ela sabia que eu era uma fada mas pedi que não contasse ao restante do povo. Acabei me tornando uma curandeira por ali. Sim, eu usava as ervas, mas também meu dom natural de cura sempre disfarçado. Eu incrementava os unguentos com magia acelerando a cicatrização de feridas, nos chás que o povo ingeria também o processo de cura de doenças era mais eficiente. Eu respeitava muito aquele povo e eles também me tratavam com carinho. Mas com Cybelle era diferente, eles praticamente a endeusavam. Todos queriam desposá-la, porém ela sempre fugia de amores, dizia que atrapalhava o seu crescimento. Um belo dia um dos rapazes da aldeia, Pablo era seu nome, começou a visitar nosso jardim e floricultura com mais frequência que o habitual. Ele era mais um dos apaixonados por Cybelle e eu já passava a sentir pena do rapaz, mas dessa vez eu estava enganada, Cybelle passou a retribuir os carinhos dele, e logo acabei percebendo que estavam apaixonados. Eram dias de paz, o amor contagiou todo o grupo. Somente Silas não parecia satisfeito, ele era rancoroso e teve seu amor desprezado por Cybelle, quando nos reuníamos em volta da fogueira para dançar, cantar e festejar a lua ele ficava solitário, excluído por opção e não por imposição. Os meses se passaram e Cybelle foi pedida em casamento por Pablo.O momento foi festejado e começamos a preparar tudo para a cerimônia que aconteceria em uma semana. Silas novamente se exilou e naquela semana praticamente não o vimos. No dia da cerimônia eu corria de um lado para o outro da aldeia, iríamos festejar na praia próxima, eu decorava o lugar com flores de todas as cores e com todos os desejos de felicidade para o casal.*

* Eu forrei o local todo com flores amarelas, rosas, laranjas. O espaço onde se realizaria a cerimônia enfeitei com lírios brancos mantendo a pureza de sentimento dos amantes. Para ela, uma surpresa especial, uma coroa de mini rosas vermelhas, desejando que o amor, a sensualidade e o desejo entre eles nunca terminasse. Enquanto decorava tudo sorria ao ver as crianças brincando, correndo de um lado a outro. Os rapazes novos já acendiam a fogueira para o caldeirão que iria ferver com o vinho condimentado que seria servido. Uma mesa improvisada ao lado já tinha os pães com frutas que simbolizavam o nosso desejo de fartura para o casal. Num canto, os homens mais velhos afinavam os instrumentos e começavam a tocar algo para alegrar os ambientes.*

* Depois de tudo pronto eu entrei na tenda onde Cybelle estava. Ali tinha algumas senhoras que cuidavam dela, se aproximavam uma a uma e recitavam uma prece em sua cabeça desejando uma vida feliz nessa nova etapa. Depois cantando, dançando e já festejando a ajudaram a se vestir, maquiar, perfumar. Eu estava com a coroa de flores escondida nas costas, esperei que ela me visse e viesse me abraçar, então a coloquei em sua cabeça, Era o dia mais feliz da vida dessa sacerdotisa que foi enlaçada pelo amor. Naquele dia eu não vi o Pablo, ele estava em outra tenda onde mulheres não podiam entrar sendo também cuidado pelos homens antigos do grupo. Silas é claro estava bem longe dali, ele não iria ver sua amada se entregando a outro.*

* Estava quase na hora da cerimônia, o sol já estava se pondo, a lua parecia nos presentear com seu brilho mais puro quando eu ouvi barulho, muito barulho, eram cavalos, do lado de fora um alvoroço, ouvia pessoas correndo e uma grande gritaria. Ficamos estáticas por um tempo, mas logo os gritos viraram choros, súplicas e novamente gritos mais estridentes. Abri levemente a tenda, somente uma fresta e vi cinco homens montados em cavalos, em suas mãos espadas curvas parecendo cimitarras matando todos que ali estavam. Eu tentei tirar Cybelle dali, mas ela correu para a tenda de Pablo, não consegui segurá-la. Eu corri o máximo que pude para a floresta, me embrenhei no mato e ali fiquei escondida chorando sem saber mais nada sobre Cybelle e o restante da aldeia. Fiquei ali não sei quanto tempo, estava em choque com a violência e brutalidade que vi. Depois de algum tempo voltei para onde se daria a cerimônia. Não restava mais ninguém, todos estavam mortos. As flores que forravam o chão estavam banhadas de sangue. A mesa de pães destruída, o caldeirão com o vinho derramado misturado ao sangue e muitos corpos. Não havia mais o que fazer, eu devagar enterrei cada um deles em meio às minhas lágrimas. Por último entrei na tenda de Pablo, vi os dois abraçados e mortos caídos no chão. Me ajoelhei e chorei compulsivamente. Naquele momento jurei vingança. Cuidei deles os enterrando juntos como estavam abraçados mesmo.*

* Deixei o local após me lavar na praia e fui ao vilarejo mais próximo. Entrei em um pequeno bar, comi algo e comecei a me informar sobre os homens que tinha visto. À princípio me diziam não saber de nada. Estava sentada em uma mesa no canto. Um rapaz novo ali veio me servir e falou em sussurros como se tivesse medo que os tais homens pareciam os mercenários que estavam morando nas ruínas dos castelos. Agradeci a informação, paguei o que comi deixando uma boa gorjeta para o rapaz e saí dali. Fui até a floricultura, em uma sala pequena que tinha no fundo eu comecei a revirar tudo, conhecia o castelo e sabia que ali tinha um poço. Procurei até encontrar o que queria. Peguei as sementes de rícino e as macerei até que se tornassem um líquido viscoso, sabia que pelo peso do óleo ele ficaria na superfície da água do poço e durante a noite fui até o castelo. Usando minha forma feérica passei pelos portões laterais sem ser vista chegando até o poço. Derramei todo o líquido lá dentro e saí. Fiquei sentada num canto no alto do castelo onde não me viam mas eu tinha uma bela visão do poço.*

* Mais alguém estava ali nessa noite, no início eu não o reconheci mas ao ouvir a voz eu sabia que era Silas, ele estava com uma bolsa de moedas de ouro e levava aos mercenários. Todos se serviram da água do poço. Eu então estaria vingada, dentro de algumas horas nenhum deles mais estaria vivo. Esperei todo o tempo, mas estranhava porque uma coruja branca passou a me seguir desde que havia enterrado o casal. Ela estava sempre próxima de onde eu estava e me observava.*

* Quando os vi sob o efeito do veneno eu desci de onde estava, fui até Silas, olhei no fundo de seus olhos. Só consegui emitir uma frase.*

- Seu amor a matou, agora tem o que merece.

* Virei as costas e fui embora daquele lugar que não me oferecia mais nada. A coruja veio comigo, eu dei o nome de Cybelle à ela. Algum tempo depois descobri por coincidência que minha amiga Cybelle na hora da morte conseguiu conjurar uma magia transferindo sua alma para a coruja. Com o tempo aprendi a me comunicar com o animal que me acompanha até hoje.*

* Enquanto voltava ao presente saindo das lembranças terminava meu lanche e ia para dentro do quarto.*

- Boa noite querida amiga. Vá passear, ver as belezas que merece.Sei que quando eu acordar ainda estará aqui.

Alanya
Enviado por Alanya em 20/03/2016
Código do texto: T5579946
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