Lembranças

Estava na penteadeira escovando meus cabelos quando os pensamentos vieram à minha mente. Não me lembro o ano com exatidão, mas sei que estávamos no século XIII, as cidades ainda tinham o nome de feudos, eu encontrei um lar com um casal de senhores. Aníbal e Gertrudes, eu havia saído de um mau momento e eles me acolheram em seu lar, a pequena propriedade rural era calma, o dono nunca tinha me visto, morei ali por muitos anos, eu ajudava com a horta, era um trabalho cansativo para dona Gertrudes, ela já tinha uma certa idade e os seus pulmões não ajudavam muito, eu sabia que podia ajudar, mas não podia chamar atenção, então todos os dias pela manhã eu ia para a floresta e recolhia algumas ervas, voltava e preparava beberagens, emplastros, tudo para que ela acreditasse que a sua melhora era somente devido às ervas, mas eu usava meu dom de regeneração aos poucos. Ainda assim eu impedia que ela fizesse grandes esforços físicos, eu pegava a água para o poço, cuidava da horta, fazia a maioria dos trabalhos domésticos. O Senhor Aníbal, uma vez enquanto cuidávamos da horta me contou que eles tiveram uma filha, mas que morreu ainda pequena, ele dizia que os deuses tinham me mandado para alegrar a vida deles. Eu tinha paz naquele lugar, fui feliz. Dona Gertrudes, mesmo enferma sempre tentava me agradar, apesar de eu não ser mais criança, ela me fazia bonecas de pano, por vezes me chamava de Suzana, eu fingia não perceber que ela trocava meu nome pelo da sua filha falecida. Conforme ela foi melhorando a vida se tornava melhor, mas ela começou a dizer à todos que eu tinha mãos de fada, que cuidava dela com tanto carinho que ela ficou curada, isso atraiu a atenção do dono das terras, ele começou a querer saber quem eu era, de onde tinha vindo. Eu sempre tentava disfarçar.

Eu estava na floresta pegando algumas ervas, essas não eram mais para dona Gertrudes, mas para um menino de 3 anos que adoeceu na vila, estava distraída, usava minha forma feérica,achava que ninguém me veria, naquele momento eu e a natureza éramos um só. Aquele não era um bom dia, eu não pressenti a presença do Senhor Jonah perto de mim, mas ele tinha me seguido, pois algo dizia que eu escondia algo. Quando eu percebi já era muito tarde, ele estava bem atrás de mim quando disse que aquele era meu segredo, que eu não devia estar escondida, eu via algo ruim nos olhos dele, voltei à forma humana, tentei conversar com ele mas era inútil, ele tinha alguns homens com ele e mandou que me prendessem e levassem para sua residência, eu chorava, mas não tive como avisar ninguém. Ele não tinha ideia do mal que ele estava fazendo à todo o vilarejo.

Algo que poucos sabem é que uma fada não pode ser aprisionada, pois ela logo adoece fisicamente e emocionalmente e quando isso acontece, o lugar inteiro sente os mesmos efeitos. Eu ficava trancada em um quarto, e ele ia me ver sempre que precisava de algo, para ganhar uma disputa, para aumentar seu poder, seu status. Ele dizia que tinha uma arma secreta. Além de ficar doente eu também estava depressiva, já não chorava, faltavam-me forças.

Na vila, as crianças logo começaram a adoecer, sem vontade de brincar, sem fome, infelizmente algumas não sobreviveram, o Senhor Jonah era irracional, via a vila morrer e não entendia que aquilo era por minha causa. Aos poucos os adultos entraram no mesmo estado, muitos eram os doentes e eu sem forças até para fugir.

Em determinada tarde, o trágico aconteceu, chegaram aos aposentos do Senhor Jonah e disseram que o filho dele estava doente, ele entrou como um animal em meu quarto, me ofendeu, disse que eu fazia aquilo para castigá-lo, berrava como um louco, mas por amor ao seu filho me soltou, eu saí dali, muitos da vila que gostavam de mim eram meus amigos me enxotaram dali, cuspiam em mim, me xingavam, diziam que eu matei seus filhos, pais, familiares, eu desesperada corri para a casa do Senhor Aníbal e Dona Gertrudes, a casa estava vazia, infelizmente os dois tinham morrido. Em cima da minha cama eu peguei uma das bonecas de pano e saí da cidade.

Olhava para a penteadeira, a boneca ainda hoje estava comigo, peguei-a em minhas mãos, cheirei a boneca, uma lágrima escorreu do meu rosto. Dona Gertrudes era uma alma boa, infelizmente a ganância de alguns tira a felicidade de muitos.

Alanya
Enviado por Alanya em 20/03/2016
Código do texto: T5579945
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