EM TERRA ESTRANHA


     O motorista parou o ônibus no acostamento. Estavam a caminho de Curitiba e, naquele trecho da serra, não se podia ver qualquer sinal de vida. Tranqüilamente, mas sem explicações, pediu a todos que saíssem. Os passageiros alvoroçaram-se e ainda assim desceram, indo espichar as pernas pouco além. Aproximando-se, ia pedir-lhes que se afastassem mais, quando se avistaram os primeiros sinais de fogo. Nenhum impulso foi na tentativa de apagá-lo. Todos correram o mais longe que puderam e, depois de alguns minutos, o ônibus explodiu.

     Os pensamentos de Lúcia durante a manhã, estiveram todos na viagem. Pela primeira vez iria tão longe sozinha. Emoções e idéias agitavam-se e agitavam-na. Esperanças vagas de aventura e liberdade. A meticulosidade com que arrumou as malas serviu para acalmá-la. Nem por isso, um sentimento indefinido deixou de estar pairando à sua volta o dia todo, nas compras de última hora ou no banho quente e demorado. Esteve quase desistindo. Chegou à Rodoviária uma hora antes da partida. Tomou um lanche rápido, pois não tivera fome à hora do jantar.

     Suave e muito lentamente, o nada à sua volta começou a desfazer-se. Lúcia pode ver algumas pessoas que a rodeavam, mas não entendia o que diziam, pois não podia ouvi-las.

     Esperando por Celso, Beatriz estivera pensando na viagem que deveriam fazer juntos. Depois de vários rompimentos, eles iriam tentar novamente. Parecia certo que, apesar de seus desentendimentos, muita coisa havia entre ambos a justificar uma vida em comum. Nesse dia, ela não saíra de casa. Ficar ali, desfrutar aqueles últimos momentos em que existia individualmente, eis o que importava. Apesar de sentir medo, ela resolvera finalmente partilhar com Celso todos os momentos de sua vida.

     -Alguém tem um agasalho? Beatriz estava ao lado de Lúcia, tentando ampará-la. Ao ouvir sua voz, Celso aproximou-se, e com ele um rapaz, emergindo da confusão. A beleza da jovem o impressionou e ele gentilmente ofereceu um casaco, com o qual Beatriz a envolveu.

Logo após o almoço, Célia levou as crianças para a casa de sua mãe. Depois de muitas recomendações, despediu-se e voltou para casa, pensando se como sempre Paulo chegaria atrasado. Telefonou para ele. Na verdade, ela não precisava preocupar-se: ele chegaria cedo e estava tudo em ordem. Preparou as roupas de ambos, tomou um banho e pôs-se a secar os cabelos. Paulo atrasou um pouco, mas nada ocorreu que os impedisse de estar no ônibus das dez.

     -Será que a moça está bem? perguntou Célia, aproximando-se com Paulo do grupo que socorria Lúcia.
     -Nós ainda não sabemos. Ela desmaiou durante a explosão, parece estar se recobrando, mas ainda não disse nada, respondeu Beatriz.
     Aos poucos, Lúcia foi se recuperando e tentou levantar-se, no que foi impedida por Beatriz. Entretanto, olhando ao redor, percebeu um rapaz que a fixava calado, a pequena distância. Notando que o agasalho sobre ela não lhe pertencia, fez menção de retirá-lo. Daniel aproximou-se, insistindo e ela o aceitou. Ele agora estava muito próximo e ela pode reparar no brilho de seus olhos. Tranqüilizada, ela permaneceu quieta e começou a observar. Além do rapaz, havia dois casais perto dela. Conversavam, olhando-a de vez em quando. O torpor começou a desvanecer-se. Ela sentiu-se agradecida aos estranhos que a ajudaram e, depois de algum tempo, recuperada, conseguiu dizê-lo. Disse também que desejava levantar-se e dessa vez, foi Daniel quem a ajudou.

     Lúcia e Daniel aproximaram-se do grupo. Ela não podia deixar de sentir curiosidade a respeito daquelas pessoa e de Daniel. Os ruídos da noite zumbiam ao longe e ela teve consciência deles. O homem ao lado de Beatriz era atraente; era charmoso em suas feições maduras, os cabelos ligeiramente grisalhos, realçados pelo luar. Embora se dirigisse a todos da mesma maneira cordata, percebia-se que algo o ligava àquela bela mulher morena, de cabelos longos e bem cuidados. A outra moça era alta e clara.   Falava rapidamente, gesticulando muito, enquanto o marido participava apenas com confirmações e movimentos de cabeça. Havia momentos em que ele parecia enfastiado. Os olhos de Lúcia encontraram os de Daniel e ela sentiu um arrepio. Sem nenhuma vontade de afastar-se dali, Daniel a estudava. Ela poderia precisar de apoio e ele interessava-se por ajudá-la. A atitude decidida de Beatriz, a gentileza de Célia, seriam mesmo suficientes? Que ao menos ele estivesse por perto. Prestou atenção em Célia que parara de falar e tornara-se pensativa.

     Teria valido a pena deixar as crianças e partir, numa débil tentativa de estar a sós, como se isso significasse estarem juntos? A rotina fora rompida. Muito mais que o esperado, mas como reencontrar aquele Paulo dos antigos tempos da conquista, do desejo ardente...Olhando para Beatriz e Celso, constatou que estavam muito apaixonados.

     Finalmente Beatriz compreendeu que Celso desejava, acima de tudo, viver ao lado dela. Esse amor precisava da proximidade para atestar o quanto era forte e seguro. Seu casamento, desfeito há já tanto tempo, jamais poderia ser empecilho à relação equilibrada e profunda, nunca antes experimentada, só possível ao lado da esquiva e doce Beatriz. Reparando em Célia e Paulo, ele lembrou de como se fossilizara sua vida ao lado da primeira mulher.

     -Vamos procurar um lugar para sentar, disse Célia. Seu dia atarefado a deixara cansada. Procurando apoio, sua mão tocou o braço do marido. Ela sentiu o calor da pele sob a camisa e isso a tornou feliz. Paulo notou a sutil mudança em sua mulher. Ela agora falava calmamente e ele sentiu uma nova emoção. Se ela mostrasse maior flexibilidade, valeria a pena tentar. Passou o braço pela cintura dela e percebeu, não sem espanto, que ela podia deixar-se abraçar.

     Beatriz aproximou-se mais de Celso e entregou-se ao prazer de desfrutar-lhe a companhia. Caminhavam como se sempre o tivessem feito unidos, compreendendo-se.

     Daniel ajeitou o casaco nos ombros de Lúcia. Suas mãos sentiram a maciez dos cabelos da moça e ele soube que desejava conhecê-la melhor. Para Lúcia a aventura era uma lembrança remota, mais distante a cada vez que seus olhos encontravam os daquele rapaz a seu lado.

(1979)