Uma longa espera

Era manhã de domingo e Dona Antônia já havia tomado seu desjejum costumeiro - uma broa de milho quentinha assada na hora e café preto sem açúcar - e já ia cuidar da pequena horta do sítio onde morava, quando lembrou-se que dia era aquele. Tomada de súbita alegria, precipitara ao quarto e ao toucador para tomar as devidas providências. Cerca de meia hora depois estava pronta e consultava o relógio, um velho relógio cuco, pendurado na parede havia mais de cinqüenta anos, com uma frequência que era reflexo de sua ansiedade por aquele momento.

Meio dia. Dona Antonia levantou-se da cadeira de balanço que ficava na varanda da pequena casa de madeira que fora de seu avó e depois de seu pai. Ao longe já divisava a fumaça de chaminé da locomotiva que acabara de chegar na estação e seu coração já batia mais forte só com essa visão. Sabia que logo ele estaria com ela e sua espera finalmente seria recompensada.

Em minutos, um homem aproximou-se da pequena varanda em que Dona Antônia estava. Ela o vira chegando pela estrada, mas continha sua ansiedade e procurava não demonstrar seu interesse pois não era educado uma moça de família se deixar levar pelos arroubos de paixão. O homem distinto aparentava ter trinta e poucos. Era de família abastada e, por isso mesmo tinha posses. Trajava terno risca de giz e chapéu de abas largas, típico da classe mais rica da sociedade paulistana. O sapato, de cromo alemão, era branco e preto e muitíssimo bem lustrado. O relógio de bolso, cuja corrente de ouro pendia do colete muito bem alinhado, completava o esmero do traje do homem. Dona Antonia não ficava atrás. O vestido, que tinha sido de sua mãe, fora trazido da Inglaterra. O colarinho e o peitoral era de renda francesa e bordados à mão com pequenas pérolas. O detalhe das mangas acompanhava o mesmo bordado da gola, cobrindo-lhe parcialmente as mãos. Um tecido leve e bordado na frente, descia logo abaixo do bordado, em formato de gota, sobrepondo-se ao vestido, que vinha embaixo deste, terminando em uma saia franzida e longa, que lhe cobria totalmente os pés, que calçavam botinhas de salto baixo, beges, da mesma cor do vestido. Os olhos do homem fixados em Dona Antônia e em seu traje, finalmente lhe saudaram, fazendo-lhe uma reverência, tirando-lhe o chapéu.

- Boas tardes, senhora. A quantas vais? Rogo-lhe permissão para adentrar em vosso lar.

- Senhor Justino, vou-me muito bem. Como sempre, pontual. Por favor, entrai. Deixai seu paletó e chapéu em meu átrio. Acompanha-me em um refrescante chá mate com limão? Preparei especialmente para esta ocasião.

- Agradeço-te sempre tua hospitalidade. Permita-me. Então, Justino fez nova mesura e fez o que a senhora lhe havia indicado. Sentou-se em seguida ao lado dela e serviu-se da bebida e depois serviu-a de mais chá.

- Deveras refrescante. Somente vossa mercê tem os dons de preparar tal iguaria.

- Contai. O que o trazes novamente a este rincão? Dona Antonia sabia que ele tinha vindo vê-la. Mas era o protocolo. Tinha de manter a formalidade. Era o que mandava a sociedade para uma moça de seus vinte e poucos anos.

- Como sabeis, senhora, meu pai e eu temos negócios por aqui. O café, a senhora o sabes. Mas não nego que tenho imenso interesse por tua companhia. Vossa mercê o sabes bem. E um sorriso discreto tomou-lhe o rosto.

Dona Antonia corou-se. Afinal, gostava dessa corte. "Ora, senhor Justino, assim deixa-me encabulada" e ao dizer isso sua mão pequena tapa-lhe os lábios, ao mesmo tempo que baixa os olhos, escondendo o sorriso que surge espontâneo.

- Antônia - Justino, sem aviso, toca-lhe a outra mão que havia sido pousada na pequena mesa onde o chá estava sendo servido - não consigo mais. Perdoai-me a ousadia, mas bem sabes o apreço e a admiração que venho nutrindo por ti. És uma bela mulher e digna. Bem sabes o quanto tenho para lhe oferecer e o quanto a quero desposar. Façais, pois a mim um homem feliz, e concede-me tua mão. Não te preocupes com nada. Minha vida será dedicada a fazer-te tudo que teu coração pedir, deste que sinceramente, pode-se até dizer, que vos ama.

Antônia não sabia o que dizer. Muda, fitava dentro dos olhos de Justino e ele os dela.

- Justino...

- Antônia...

Justino então aproximou-se de Antônia. Primeiro, apoiou-se em um joelho, e com olhar súplice,beijou-lhe a mão. Em seguida, levantou-se e tomou-lhe a mão. Sem tirar os olhos, uns dos outros, Justino puxou-lhe a mão e a fez levantar. Tomou-a nos braços e beijou-lhe, primeiro a testa, depois os lábios e, o que era somente um ósculo, tornou-se um beijo apaixonado. Enquanto se beijavam, o relógio da torre começou a soar os cinco toques, como fazia todo final de tarde. Antônia então, num misto de arroubo de paixão e medo, desvencilhou-se de Justino e falou, ainda recuperando o fôlego roubado.

- Justino, você não devia...você...precisa ir...

- Antônia...senhora...eu....sim...deveras...

A Justino dirigiu-se ao átrio da pequena casa, tomando apressado o paletó e o chapéu. Com o traje ainda nas mãos, pôs o chapéu na cabeça e lançou um último olhar para a amada. No seu olhar, como todas as vezes, Antônia leu: "Eu vou, mas voltarei."

Então Justino saiu. E Antônia levou as mãos ao peito, aflita. Sabia o que aconteceria em seguida. O relógio da estação que soava as cinco badaladas, emudeceu. Voltou a exibir a hora em que parara há trinta anos. A locomotiva voltara a ter o aspecto enferrujado e destruído, de ferros abandonados há décadas. O vestido, voltava a exibir os rasgos e desgastes. O tecido, carcomido e desbotado, já não tinha mais o brilho dos tempos de sua confecção. Os cabelos, negros como o ébano, postos em coque alto como era a moda, já tinham voltado ao seu natural, brancos como a neve, presos num coque desgrenhado e frouxo.

E tudo tinha voltado ao que era antes. Antes de Antonia ser Antonia e antes de Justino ser só uma lembrança, uma lembrança que voltava aos domingos, de terno risca de giz e sapatos brilhantes. Uma lembrança que tomava mate com limão, a cortejava, prometia amor eterno e ia-se ao som da quinta badalada do relógio da torre. E Antônia vivia aquilo enquanto esperava. E Justino, enquanto esperava, voltava. E ambos, cada um preso em seu mundo, esperava. Antônia para se encontrar com Justino. E Justino, para finalmente poder tê-la em seus braços e poder sair dali, não em sua locomotiva fantasma, mas pela estrada. E Em direção à luz.