Longa noite - Parte Final
Passadas algumas semanas de ausência do Sol sobre a Terra, a temperatura registrava recordes de negatividade. Nevascas intensas e ventos furiosos fustigavam o reino, que desaparecia rapidamente debaixo da grossa camada de neve que se formava sobre ele. Mensageiros foram enviados às pressas às vizinhanças para saber se os demais Estados fronteiriços passavam por semelhante apuro, mas nenhum retornou. O reino estava isolado e sem notícias do mundo ao redor.
As reservas de alimentos estavam perigosamente baixas, e o racionamento de víveres tornou-se necessário. Lenha, carvão, água, ração aos animais, tudo também faltava. Alguns habitantes já morriam, sobretudo os mais frágeis, e o clima de luto e desespero tomou conta dos lares dos homens dali. Acorriam ao rei, acorriam aos Céus; ninguém lhes dava uma solução. Nem mais as estrelas conseguiam ver, pois o céu estava quase sempre tomado por uma camada de nuvens de tamanha espessura que parecia sólida de tanta neve e gelo em seu interior.
O rei tentava fazer o que lhe era possível em conjunto com seus ministros e conselheiros, mas apenas conseguiam administrar a morte lenta de seu reino. Os sacerdotes rezavam sem cessar, e a catedral e as demais igrejas estavam sempre lotadas de fiéis desesperados ou refugiados em seus interiores.
– Majestade, temo que nossa situação seja insustentável. Se ficarmos aqui, morreremos. A neve acumulada já tomou a maior parte do reino, e muitos já morreram. Nossos animais e criações já estão praticamente esgotados, e nossas reservas não devem durar mais que duas semanas, mesmo racionando.
– O que você me sugere, secretário? - Perguntou o rei, desiludido e desalentado, em seu trono.
– Que organizemos um plano de fuga. Logo mais, esta cidade será um cemitério, e todos estaremos nele.
– Fuga? Para onde? - Retrucou, em tom de ironia.
– Um de nossos mensageiros retornou hoje. Pouco antes de morrer por hipotermia, ele deu notícia de que no leste as coisas estão melhores, e que há sol e calor por lá. Reunamos todos os habitantes que ainda restam, e nossas provisões, e marchemos ao leste, seguindo a rota do Grande Rio. Dentro de algumas semanas, deveremos estar melhor.
O rei pensou por um momento, e uma luz distante pareceu acender-se no fim do túnel de sua alma arrasada. Havia uma chance de salvação ao seu reino. Não importa o custo dessa viagem, ela lhe parecia melhor do que ficar e morrer. Loucura por loucura, era mais sensato escapar dali.
– Convoque o Conselho. Vamos organizar a marcha!
* * *
Em tempo recorde os preparativos foram feitos. Todos os habitantes que ainda tinham coisas para salvar acorreram aos seus lares para resgatá-las. Receberam instruções do Conselho para trajarem suas roupas mais quentes e organizarem-se para a fuga ao leste. As autoridades locais trabalharam incansavelmente até que tudo estivesse pronto, e o êxodo teve início na primeira oportunidade.
O rei em pessoa e todo o seu séquito se empenharam para que os cidadãos principiassem o caminho até o último homem, mulher e criança. Quando o que restou da cidade estava completamente evacuado, os servidores reais, ministros e conselheiros foram liberados para fugirem também. Restaram, para trás, somente o soberano e seu fiel secretário.
Totalmente coberto por camadas e mais camadas de peles e mantas, o rei contemplou uma última vez o interior de seu palácio, outrora tão vivo e agitado, agora deserto e sombrio. A escuridão do mundo lá fora era ampliada pela altura da neve acumulada que já cobria a maioria das janelas e portas, soterrando a pomposa estrutura da pujante cidade que ela administrava. Os andares subterrâneos e térreos já estavam inacessíveis, e só se podia deixar o palácio através das janelas das torres mais altas.
Suspirou entristecido, mas convencido de que o que podia ser feito, foi feito. Sentia, sob as toneladas de dor e resignação que o cobriam, uma nesga de orgulho e sentimento de dever cumprido, por toda a sua luta pelo reino contra a impiedosa natureza e a indiferença dos Céus, e era isso o que ainda o mantinha de pé. Tratou de esquecer logo tudo aquilo e foi encontrar-se com o secretário para que, juntos, deixassem o local.
Com alguma dificuldade, por causa do cansaço dos ciclos de sono alterados pela ausência do sol e pelo trabalho árduo de tantas semanas, além dos quilos de roupa que lhe pesavam e limitavam seus movimentos, o rei conseguiu arrastar-se através da janela para o exterior congelado. Ajudado pelo secretário, colocou-se de pé, ajeitou sua formosa coroa na cabeça e tratou de iniciar o caminho.
Após alguns passos, parou.
– Secretário! Não reparou em nada diferente?
– Não, majestade. Sugiro que discutamos sobre isso em marcha, para não nos distanciarmos muito dos demais.
– Espere! Veja que a neve parou de cair!
O secretário parou, e realmente percebeu que não havia nevasca. Nem vento. E o frio também estava menos severo. Virou-se para o rei, e ambos olharam para o céu no mesmo momento: a camada de nuvens parecia menor, e a escuridão por detrás delas já não era tão profunda.
– Secretário, você viu que horas eram?
– Confesso que, mesmo após tanto tempo sem diferir noite e dia, nunca deixei de olhar o relógio antes de sair para algum lugar, majestade. Agora são cinco e quarenta da manhã, exatamente.
– Logo… Vai amanhecer!
– Majestade…?
Ao dizer isso, o secretário abriu um grande sorriso. O rei virou-se para onde seu companheiro olhava e pôde ver os primeiros raios de sol vencendo as nuvens, no leste. Mal acreditou na alegria de sentir em sua face aquele calor, embora tímido, que quase já se esquecia de que existe! Tratou de logo voltar para o palácio, sem dizer uma só palavra, mas radiante de alegria.
– Majestade! Aonde vais?
– Me aguarde aqui, amigo! Volto em pouco tempo!
Disse isso e lançou-se ao interior do palácio pela mesma janela pela qual fugira. Passou alguns minutos lá dentro e retornou com duas belas cadeiras do mobiliário da copa real, rindo como uma criança. O secretário, ao ver o esforço do rei em carregar os móveis, logo acorreu a ele para prestar-lhe auxílio.
– Aonde vai, majestade? O que quer com isso?
Mas o rei não lhe disse mais nada, e nem precisou. Com apenas um olhar, o secretário entendeu o que ele queria. Sorriu, e acompanhou-o.
Deram mais alguns passos adiante e colocaram suas cadeiras sobre a camada pétrea de neve. Sentaram-se ali e dedicaram-se a contemplar aquela imensidão gelada e branca, silenciosa, imóvel. Acima deles, o Sol levantava-se cada vez mais, aos poucos, no ritmo de sempre. Ganhando força, já não era mais o Sol de inverno, mas um caloroso e familiar Sol primaveril, que afagava os dois combalidos homens, que não precisavam de mais nada para ficarem extremamente felizes.
– Secretário, me diga. Isso não é uma coisa muito bela?
– Sim, majestade. Sem igual, eu diria.
Um maravilhoso céu azul vencia as nuvens, agora cada vez mais tímidas e translúcidas. À frente, apenas a desolação alva que outrora fora o reino.