O Museu das Nuvens



O MUSEU DAS NUVENS


Miguel Carqueija


I


De meu ponto de observação, junto à amurada de proteção, contemplo, silencioso e melancólico, o imenso cubo de vidro antichoque à minha frente, estendendo-se por cinqüenta metros e o seu sombrio conteúdo: a cativa nuvem de tempestade, que ali pairava em permanente ameaça.
A cada vez que visito esse estranho local assalta-me essa mesma sensação de vazio, de desperdício da vida na voragem do tempo, assalta-me a idéia perturbadora de que aqui, neste mesmo lugar, deu-se em mim uma perda que se afigura irremediável, mas que a memória nega-se a trazer de volta à consciência. E por mais que eu esforce os neurônios acabo por desistir, mentalmente esgotado e levado a um estado de imensa perplexidade: que é, afinal, que me arrasta sempre, e sempre sozinho, a esse museu original, a essa imensidão monótona e tristonha, que não chega a atrair muitos visitantes? Que estranha compulsão me obriga a vir aqui periodicamente, em busca de um fragmento qualquer da memória perdida? Ou será tudo apenas um incipiente sintoma de uma loucura que avança silenciosa e sub-repticiamente? Quem poderá esclarecer esse mistério?
Em razão do imenso tamanho dos “mostruários” (ou “monstruários”) existem pisos rolantes que nos permitem uma aproximação mais rápida de cada nuvem. Já me cansei de olhar os cúmulos, os nimbos, os cirros, os estratos, a neblina, o nevoeiro cerrado, o chamado “smog”, a condessa-de-vento, os cúmulos-nimbos, tudo enfim. Sou um dos mais assíduos freqüentadores do museu, e reconhecendo embora a sua importância científica, não sei de fato o que venho fazer aqui com tanta freqüência.


I I


Mais uma vez me encontro aqui, e desta vez contemplo uma nuvem tão branca como floco de algodão. Iluminada por um sol artificial, ela brilha placidamente. É uma dessas imensas nuvens de tempo ensolarado, que se esparramam por cima dos montes e observam as extensas plantações e os rebanhos de bois e ovelhas. Ainda há pouco eu estivera contemplando uma nuvem de tempestade, acompanhada mesmo de chuvarada e trovões. Aquilo acabou por me dar nos nervos, por isso eu me afastara, procurando um meteoro mais tranqüilo.
A nuvem branca (cúmulo) era realmente tranquilizadora. Eu me absorvia na sua contemplação e, movendo-me para a direita, deslizava as mãos pela amurada. De repente outra mão esbarrou na minha: a mão de alguém à minha direita, que se movia para a
esquerda.
Voltei-me e deparei com uma garota de cabelos curtos, magra e vivaz:
- Oh, desculpe!
- Não, eu é que devo...
- Nós nos esbarramos mutuamente, é bobagem pedir desculpas. Estávamos distraídos.
- Você gosta desse lugar?
- Eu venho aqui desde que tinha doze anos. Nesse dia eu esbarrei com um garoto, como esbarrei agora em você. Conversamos muito e ficamos amigos. Mas aí as nossas mães nos puxaram e não pudemos nem trocar endereços.
- Engraçado... isso me faz lembrar qualquer coisa...
Torno a olhá-la, agora com intensidade. É como se uma cortina fosse afastada de meus olhos.
- Lara! Não é você?
- Sou eu! E você não é o Paulo?
Tocou minha mão e sorriu.
- Há muitos anos freqüento aqui, esperando reencontrá-lo. Lembra que juramos amor eterno? Eu nunca esqueci.
- Eu esqueci... perdi parte da memória num desastre de trânsito. Mas nos últimos anos voltei a freqüentar este museu. Qualquer coisa me fazia vir, e eu não sabia o que era.
Nós nos abraçamos, com todo o calor que os anos perdidos não haviam exterminado.
Estávamos nas nuvens.


Nota do autor: quando tinha 5 anos minha enteada Melanie Evarino falou-me sobre o museu das nuvens” por ela imaginado. Daí veio-me a idéia para este conto, que depois foi filmado num curta de sete minutos por Camilo Calandreli.



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