Continuação Da História De Um Fracassado

Quando voltou ao poço para pegar seu jarro, Nefarsius deu de cara com Lunia, que com um olhar meigo o observava.

- Por que está todo molhado? Resolveu tomar banho aqui fora? – Disse ela enquanto tentava afastar os castanhos e molhados cabelos de Nefarsius do rosto dele. Alguns fios brancos no cabelo dele que indicavam a aproximação da meia idade se destacavam em sua franja bagunçada. A barba, que crescia de forma desajeitada e incompleta, já alcançava o pescoço. Além disso, as primeiras rugas no canto dos olhos começavam a surgir.

Lunia certamente ainda não chegara aos dezoito anos, era uma moça baixinha, tinha um pouco de peso sobrando, o que a deixava com poucas curvas, seu rosto era arredondado e tinha bochechas protuberantes. Seu cabelo enrolado tinha uma cor viva avermelhada e seus olhos eram tão castanhos quanto um grão de café.

- Não preciso de sua ajuda. – Disse Nefarsius e com um leve tapa afastou a mão de Lunia.

Ela recolheu sua mão e observou Nefarsius se afastar até o poço e pegar o jarro. O fitou por um bom tempo, sentindo pena, e só então voltou a se aproximar.

- Não posso te esperar para sempre, Nef... Por que você não aceita que as outras não veem você como eu – Antes que pudesse concluir a frase Nefarsius a interrompeu bruscamente.

- Não pedi para que me esperasse! – Esbravejou. – Você não tem nada que eu queira. Apenas mais miséria. – Disse pouco antes de se afastar de Lunia e sumir entre as choupanas.

Lunia havia perdido o pai num conflito entre os Cefirs e uma tribo mais afastada. Só lhe restaram a mãe e a pequena irmã. Sua mãe trabalhava com argila e barro, construía peças necessárias para o dia a dia na aldeia, era ótima no que fazia e Lunia seguia os mesmos passos. Entretanto, os serviços eram suficientes apenas para a sobrevivência da família e nada mais. Logo, Nefarsius não via em Lunia uma boa companheira, só via apenas mais um problema.

Há muito tempo um conflito entre os Cefirs e outra tribo forçou os dois lados a usar todos os seus recursos em prol da vitória. Os Cefirs venceram no final, mas não havia sobrado muita coisa. Para piorar, uma época de seca atingiu a região. Sem recursos eles não durariam muito, desesperados, todos os sábios da tribo se reuniram, rezaram, jejuaram e ofereceram oferendas (as poucas que restaram), pedindo a mãe natureza, a divindade que adoravam, para que trouxesse provisão. Uma longa e agonizante semana se passou e a chuva veio na primeira lua cheia do ano. Desde então, em toda a primeira lua cheia de cada ano, a tribo homenageia a divindade com um ritual.

Na manhã seguinte os preparativos para o ritual começavam a ser feitos, todas as pessoas da aldeia se mobilizavam para ajudar. As famílias decoravam seus lares com adornos de madeira coloridos com flores e rosas silvestres e separavam seus melhores alimentos, comidas típicas que enchiam os olhos. Pequenas fogueiras eram preparadas por todo o canto para iluminar aquela noite, mas havia uma muito especial, maior do que qualquer choupana, ela era parte essencial do ritual, ficava exatamente no centro da aldeia e tudo ocorreria em volta dela.

Dezenas de homens tocavam musicas dançantes usando tambores e instrumentos rústicos de corda. As crianças corriam e brincavam por toda a aldeia iluminada pelas fogueiras. Em volta da fogueira maior as pessoas dançavam e festejavam, enquanto as famílias traziam suas oferendas alimentícias e as lançavam as chamas. A ideia era que quando a fumaça subia a mãe natureza receberia a oferenda. Era um ritual que só ocorria uma vez ao ano então todos o aproveitavam ao máximo.

Ao som da musica que reverberava desde o centro da aldeia Ernou e Sirse, que se esquentavam em uma das fogueiras menores, observavam as crianças brincarem e alguns adultos nas proximidades dançarem. Os dois não conversavam desde a noite anterior, quando falaram sobre o filho, ela estava sentada perto da fogueira quando Ernou se aproximou.

- Você estava certa. – Disse ele. – Afinal, quando você não está?

Sirse o observou por algum tempo.

- Olhando essas crianças eu me lembrei dele. Eu agradecia todos os dias por ter alguém para cuidar. Estaríamos sozinhos se ele não tivesse entrado em nossas vidas... – Ele completou..

Há muito tempo, mesmo antes de encontrarem Nefarsius ainda pequeno e abandonado numa velha choupana afastada da aldeia, Ernou e Sirse já sabiam que jamais poderiam ter um filho de sangue. Por inúmeras vezes eles tentaram, mas não lhes sobraram esperanças. Tudo mudou no dia em que encontraram Nefarsius. Após o mostrarem para o líder da aldeia e aceitarem cuidar do menino, pois ninguém encontrara os pais verdadeiros, a vida se renovou para os dois. Na verdade para os três.

Ernou olhou em volta e viu as pessoas alegres e felizes com a vida que tinham e no fundo de seu ser ele acreditava que sua família poderia superar aqueles problemas, era tudo uma questão de força de vontade.

- Há quanto tempo você não dança comigo? – Disse ele estendendo a mão para Sirse.

- Não seja tolo, estou velha demais para isso. – Respondeu e gargalhou em seguida.

- O que foi? Não consegue, não é? – Ernou conhecia sua parceira o suficiente para saber que ela não dispensava um desafio.

Naquela noite Ernou e Sirse dançaram como há muito não faziam, não haviam preocupações ou problemas para resolver, apenas a musica animada e aquele lugar. Apenas eles eram importantes.

A lua cheia estava em seu ápice, estava tão grande quanto poderia estar, sua luz prateada iluminava as planícies, vales, colinas e florestas da região. Os Cefirs a saudavam com musica e ofereciam suas melhores provisões a mãe natureza, assim como ela fizera por eles outrora.

Sentado sozinho sobre um muro que dividia duas choupanas próximas a grande fogueira, Nefarsius observava todas aquelas pessoas se aproximarem do fogaréu e lançarem seus alimentos nas chamas ao ritmo da musica de forma ritualística.

- Um desperdício. – Foi o que pensou. – Um grande desperdício.

Até a noite anterior sua família não sabia se teria o que jantar. Mas seu pai achava que o dia do ritual merecia um esforço a mais. Ele o arrastou naquela manha para uma caçada incessante na floresta ao norte em busca de uma oferenda aceitável. Mesmo sabendo que não conseguiria muita coisa, pois era uma péssima época para caça naquela região. Para felicidade de Ernou, findaram encontrando algumas lebres.

- Todo aquele trabalho por isso. Apenas para queimar aqui. – Berrou em pensamentos.

De repente ele sentiu uma pedrinha atingir sua testa, assustado, pôs a mão onde fora atingido e olhou em volta. Logo viu um grupo composto por quatro rapazes se aproximar.

- Que surpresa, ele estava sonhando acordado de novo. – Disse aquele que vinha na frente dos outros. – O que seu pai ofereceu a provedora? Você? Provavelmente ela o cuspiria de volta. – A piada arrancou gargalhadas dos outros três.

Aquele era Getiope, atormentava a vida de Nefarsius desde a infância. Era mais novo que ele, mas já era disputado pelas mulheres da tribo. Ele era tudo o que Nefarsius não era. Bom caçador, bom guerreiro e forte. Seus olhos verdes e cabelos escuros, além de uma barba que preenchia a mandíbula atraia a atenção das mulheres e ainda tinha um pouco de influencia na tribo, essa ultima característica devido a ser filho do atual líder dos Cefirs.

O grupo provavelmente se aproximou apenas para humilhar Nefarsius, pois já lhe davam as costas para sair. Nesse momento a barreira que continha a ira acumulada dele se rompeu e tudo em que pensava era vingança. Um combate seria burrice. Nefarsius tinha uma estatura mediana, sua massa corpórea com certeza não era de músculos, podiase dizer que possuía um corpo comum para um homem de meia idade que não trabalhava. Eram quatro homens fortes ali, então Nefarsius usou o que conhecia.

- Que tal voltar para perto de seus sábios hipócritas e sua divindade fajuta? Crianças idiotas. – Nefarsius sabia o quanto Getiope prezava sua cultura e não pensou duas vezes em usar isso a seu favor.

- O que foi que você disse?! – Esbravejou Getiope, enquanto olhava para o blasfemo.

- Isso mesmo. Não sou idiota para acreditar que choveu num dia qualquer apenas porque seus velhos passaram fome. Muito menos para acreditar que tostar comida no fogo pra uma divindade que vocês sequer sabem se existe vai servir para algo além de desperdiçar alimento para quem realmente precisa! – Disse por fim.

Nefarsius podia escutar cada batimento do seu coração em alto e bom som, enquanto via o rosto de Getiope corar de raiva e uma veia saltar de sua testa.

Ernou e Sirse ainda dançavam quando escutaram algumas poucas vozes alteradas no centro da aldeia, mais especificamente gritos, e algumas outras pessoas correndo naquela direção. Os dois não pensaram muito e fizeram o mesmo. Quanto mais se aproximavam do foco da confusão mais altas as vozes podiam ser ouvidas, até que finalmente conseguiram discernir a frase: “Ele é um blasfemo?”.

Quando chegaram ao centro viram um caos instaurado que começava do outro lado da grande fogueira, vendo aquilo Ernou soltou a mão de Sirse e correu naquela direção o mais rápido que pôde. Pouco antes de alcançar a multidão ele ouviu uma voz familiar.

- Saiam de cima dele! – Berrava a voz.

Depois uma moça foi jogada para fora do montante de gente. No exato momento que Ernou viu que era Lunia ele só pensou no pior. Se embrenhando entre as pessoas, conseguiu chegar ao foco do tumulto. Nefarsius estava no chão e por cima dele Getiope o socava, enquanto de tempo em tempo um de seus três amigos chutavam-no. Algumas das pessoas em volta tentavam puxar os rapazes da confusão, outras agitadas, apenas chamavam Nefarsius de blasfemo aos berros.

Vendo aquela cena Ernou avançou para cima de Getiope e lhe socou a nuca, deixando-o inconsciente. Assim que viram seu amigo cair desacordado no chão os outros três rapazes partiram para cima de Ernou sem fazer distinção de idade. A seção de espancamento terminou cinco segundos depois, quando o líder da tribo, Zacar, apareceu para dispersar a multidão.

Zacar era um homem pardo, assim como a maioria dos Cefirs, tinha o cabelo e a barba raspados. Logo abaixo do cotovelo esquerdo havia um suporte de madeira substituindo o braço que perdera em batalha, o suporte tinha a ponta cuidadosamente arredondada para não ferir.

Quando todos pararam o que faziam e se afastaram Nefarsius se levantou com dificuldade. Em seguida um grito que ecoou pelas ruelas da aldeia assustou a todos. Era Sirse, que olhava seu companheiro estirado sobre o chão com os olhos abertos. Sem respirar. Todos se calaram diante da cena.

Ernou tinha idade bastante avançada e não tinha a menor condição física de entrar numa briga de verdade, mas não havia sido a seção de espancamentos que o matara. Seu coração havia feito isso pouco antes do primeiro soco, quando parou de funcionar. Um infarto causado pelo estresse do momento dera fim a sua vida.

- Não queremos um blasfemo aqui. – Foi o que o líder da tribo disse.

O mundo de Nefarsius ruía em frente a seus olhos. De repente perdeu o pai e em seguida estava para ser expulso da tribo. O ocorrido no final do ritual havia esfriado a alegria do povo na aldeia, as famílias restantes ofereciam seus alimentos à divindade, sem musica e sem dança. As fogueiras já haviam sido apagadas. A escuridão teria tomado conta, não fosse a luz do luar.

Sirse chorava sobre o corpo do companheiro enquanto outras pessoas faziam os preparativos para a tradicional cremação do corpo. Na choupana do líder dos Cefirs, Nefarsius era avisado de sua punição.

- Meu filho me contou o que você disse. Nós não aceitamos blasfêmia. – Disse ele olhando nos olhos de Nefarsius seriamente. – Jamais pensei que algo assim fosse ser dito por um dos nossos. Quando um inimigo faz isso nós o punimos com a morte, mas um dos nossos... – Disse Zacar.

Zacar era o líder da tribo há pelo menos dez anos. No conflito entre as tribos Cefir e Galdeia, o mesmo no qual o pai de Lunia faleceu, Zacar liderava seus conterrâneos no campo de batalha lado a lado ao seu grande amigo Vanias, que também morrera na época. A maior de todas as perdas foi a vida do antigo líder dos Cefirs, com mais de cinquenta anos, ele era um homem sábio e um grande guerreiro, característica que o levou a morte. A tribo não teve tempo de ficar de luto, a escolha de um novo líder não poderia esperar. Os Sábios Cefirs acompanharam de longe o transcorrer do conflito com os Galdeses e viram em Vanias o espirito de liderança necessário para guiar seu povo. Entretanto com a morte do principal candidato eles partiram para a segunda opção, Zacar. A honra que Zacar sentiu ao ser escolhido desapareceu de seu semblante ao saber que seu grande amigo é quem deveria estar em seu lugar. Aquela era uma ferida que nunca se fechara para ele, desde então sempre tentava provar seu valor para a tribo, pensava em seu povo vinte e quatro horas por dia. Mas em contraposição a dedicação a sua família era zero, mesmo após a morte de sua parceira no conflito que o colocara como líder.

A choupana em que estavam não era muito grande, apenas o suficiente para atender as necessidades de um líder. Havia um cômodo grande para reuniões, onde no centro se tinha uma mesa de madeira sólida com poucas cadeiras e, para proteger a privacidade, havia uma porta também de madeira sólida. O local onde ficava a fogueira da casa era certamente maior se comparado com a casa de Nefarsius, além de ter mais ornamentos nas paredes, assim como em todo aquele lar. Em um pequeno salão repleto por tapeçarias que continham símbolos, Zacar andava de um lado para o outro no centro, sentado no chão de terra batida com as pernas cruzadas estava Nefarsius que encarava a todos. Do outro lado estavam em pé dois dos Sábios mais velhos da aldeia.

Os Sábios sempre tiveram importância vital nas épocas mais importantes da história dos Cefirs, isso por serem a ponte entre o povo e a divindade a quem adoravam. Eles rogavam pela ajuda da mãe natureza nos tempos de dificuldade e relembravam as pessoas de agradecê-la nos tempos de fartura. Não existia um número máximo de Sábios na tribo, em certas épocas houveram muitos em outras houveram poucos. De toda forma, eles precisavam existir por causa de sua importância espiritual. Sempre que os Sábios enxergavam potencial em um homem eles o convidavam para ser ensinado, mas apenas após cinquenta anos aquele homem teria experiência suficiente para agir. Claro que o convite poderia ser recusado, desde que ainda houvessem Sábios “jovens” para manter viva a cultura espiritual dos Cefirs.

- Expurgue-o da tribo. Deixe que vague pelas terras. A mãe natureza o punirá da melhor forma. – Disse o mais velho dos Sábios.

Nefarsius olhou para o velho com desprezo. Ele sequer pensara em contra argumentar, em seu intimo tinha a certeza de que aquele povo

não lhe daria ouvidos, talvez até piorasse a situação. Por fim Zacar concordou com o sábio e a punição foi dada. Zacar concordaria seja lá qual fosse a punição, afinal estava sempre tentando mostrar que era um líder digno. Então agradar aqueles homens era quase uma obrigação, pois eles eram tidos como os mais importantes na tribo, a linha de contato com a divindade.

Henrique Lima
Enviado por Henrique Lima em 04/01/2016
Reeditado em 01/02/2016
Código do texto: T5500322
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