O sapo que prendeu um boi por uma perna
Gordo, pintalgado, vaidoso, o sapo Adaúlfo disputava quantas sapas havia nas redondezas e era o pai e o avô de centenas de girinos.
Corria com todo o sapo, rã-macho e salamandro ... era um bicho de respeito!
Ficava horas e horas remirando-se nas poças, qual Narciso...
À sua volta crescia a erva viçosa, que atraía mosquitos, moscas e gafanhotos, seus petiscos predilectos.
Ora era o lameiro o pasto de Zacarias, “o boi do povo”.
Este era o felizardo boi comunitário.
Era lindo, anafado, reluzia o pelo ruivo. Tinha os cornos revirados com uma borla nas pontas.
Ninguém o atava ao arado; ninguém lhe punha a canga nem o prendia à carroça.
E, se bem que nem soubesse, por certo adivinhava, ter a vida garantida... garantido era que não iria para o açougue.
Os olhos meigos, dourados, rebrilhavam de saudável alegria.
Tendo sido eleito de entre todos os touros o mais escorreito e vistoso, era o noivo prometido das vacas da vizinhança.
Era o reprodutor por excelência, tinha emprego assegurado... e trabalhava por gosto!
Juntava-se entre todos o feno com que alimentá-lo no Inverno.
E se fazia bom tempo, cada um por sua vez, levava o boi ao pasto.
Esse era um dia de azar na vida de Adaúlfo!
Ah que raiva tinha ao toiro!
Malvado!
Roía, roía... enchia o prado de bosta, pisoteava as poças, onde cresciam os filhos... maldito do boi Zacarias...
Adaúlfo dava voltas aos miolos: como haveria ele de espantar o monstro?!
Ia perto, a ver se lhe apanhava o “tendão de Aquiles”, o ponto fraco de um ser tão forte, que não podia ser corrido como os outros... tinha de inventar uma armadilha, que o assustasse ao ponto de o fazer perder o apetite... claro que os humanos nunca suspeitariam se si!
Estúpidos, aqueles que andavam sobre as patas traseiras e se era preciso dar um salto, se esparramavam na lama que nem tartarugas coxas!
Tanto congeminou... tanto ia cada dia para mais perto do pacífico Zacarias que este, num dia em que procurava um lugar para se instalar ruminando, distraidamente pisou-o!
Ai que dor sentiu Adaúlfo!
Que vontade de gritar com a boca escancarada: Ai, que o boi mata-me!
... Abriu a bocarra, encheu-a de ar mas no instante exacto em que ia soltar o grito... a mente iluminou-se-lhe!
E em vez de se queixar, disse, meio debaixo do casco, e em tom vitorioso:
- Venham todos! Venham todos! Peguei o boi por uma perna!
- Peguei o boi por uma perna!
Zacarias, habituado a meiguices, apanhou um desses sustos!
Nem se deu conta do sapo!
Desarvorou em corrida, até que chegou à aldeia, o povo espavorido corria atrás do touro: mas que aconteceu ao bicho; mas o que é que o espantou, que era tão manso?!
Pois sim!
Corneava a torto e a direito; não deixava ninguém chegar-lhe a mão ao pelo!
Reuniu-se o povo no largo do pelourinho.
Que se havia de fazer ao touro, se não deixava ninguém chegar perto, como se levaria aos currais da vizinhança na altura de o chegar às vacas?!
E quem quereria arriscar-se a ver nascer no seu palheiro um bezerro marrão?!
Deitaram-se sortes, que havia várias opiniões.
Um chapéu passou de mão de mão e de cada mão caía um papelinho enrolado, como se faz nas quermesses.
No fim contaram-se os votos: sentença de morte ao domingo!
O que sobrasse da comezaina que teria lugar depois da missa, a carne, a pele os os cornos, seriam divididos por todos.
Assim se fez.
Agora o sapo Adaúlfo anda coxo, como uma tartaruga.
Já não lhe apetece remirar-se nas poças de água, outro sapo fecunda as sapas... mas nem assim se perdeu a sua fama de herói:
Ele prendeu um boi por uma perna e o lameiro pertence desde então aos sapos... e a outros bichos, que respeitem as distâncias!
20/1/2004