A História De Um Fracassado

Era verão, mas uma breve nuvem acinzentada trazia chuva naquela tarde, alguns feixes de luz vindos do corpo celeste transpassavam a nuvem e iluminavam a aldeia. Um pouco mais afastado dali havia um grupo de homens deitados em meio a relva verde de uma planície que se estendia até onde os olhos alcançavam, eles pacientemente espreitavam uma manada de búfalos que se alimentavam por perto. Equipados com arcos e flechas, aqueles tribais esperavam o momento oportuno para atacar.

Ao sinal de um dos homens, outro grupo se ergueu num local mais afastado e saiu em disparada rumo a manada enquanto gritavam em frenesi. Quase que imediatamente os búfalos iniciaram uma fuga no sentido oposto aos gritos, nesse momento o outro grupo com arcos se levantou e iniciou o ataque. Uma chuva de flechas caiu sobre os animais que de repente tentavam se afastar de seus algozes.

No fim daquela tarde os tribais conseguiram abater cinco grandes búfalos, além dos outros atingidos em partes vitais que morreriam no caminho da fuga, mas já havia um grupo de homens que se preparavam para segui-los.

Por tradição, a carne era dividida entre todos os homens que tivessem conseguido atingir as presas, para isso eles usavam variadas marcas nas flechas de cada um a fim de identificar os merecedores do alimento. A carne era dividida ali mesmo, sob o pôr do Sol, todos pareciam satisfeitos com a caçada. Todos menos um. Um daqueles homens ainda procurava alguma de suas flechas cravada em algum animal, mas não encontrava nenhuma. Talvez encontrasse uma cravada em alguma árvore, talvez cravada no chão, talvez até cravada nas costas de algum companheiro de caçada, mas não em uma presa.

Enquanto a carne terminava de ser dividida, um homem trajando as típicas calças de couro e pintura marrom por todo corpo, característica de seu povo e carregando nas costas uma bolsa feita de pele e recheada de carne, se aproximou do outro, que frustrado, apenas observava a partilha do alimento.

- Acho que você vai ter que caçar abutres de novo, Ernou. – Desdenhou. – Que tal pedir algumas dicas de caça para seu filho? Ou talvez ele esteja muito ocupado fazendo... Nada. – Completou e saiu rindo.

A piada foi dita em voz alta, causando gargalhadas entre os tribais mais próximos. Ernou olhou em volta e, ao longe, enxergou seu filho sentado sob a sombra de uma das grandes árvores dispersas pela planície no topo de uma colina.

O rapaz admirava o pôr do Sol quando, de repente, sentiu seu arco ser tomado de sua mão. Em seguida uma leve tapa na cabeça o fez levantar-se assustado e se recompor logo após ver seu pai com seu arco.

- O que pensa que está fazendo Nef? – Disse o pai, empurrando o arco de volta para o filho.

- Eu estava imaginando que deveríamos falar com o líder sobre as tribos da costa. É muito injusto nosso povo não poder aproveitar os frutos que o mar oferece. Não podemos pescar na costa só porque já existem aldeias por lá, eles não são os donos do oceano sabe? – Falou como se fizesse uma grande revelação.

- Não me importo. – Respondeu Ernou, quase gritando. – Você deveria estar na caçada me ajudando. Não conseguimos nada hoje. De novo.

O homem, repleto de cabelos brancos e corpo decadente, desceu a colina com dificuldade, mas falou enquanto ainda podia ser ouvido.

- Pare de pensar Nefarsius, comece a agir. – Fez uma pausa e concluiu. – Não vou estar por perto para lhe dizer isso sempre que precisar.

Ernou era um homem de idade já avançada que, além de não ter a mesma habilidade de tempos memoráveis para caça, não aguentava mais essas saídas exaustivas em busca de alimento. Seu filho Nefarsius, entretanto, já beirava os trinta e nunca se dedicou a aprender nada de útil dentro da tribo em que vivia.

À noite, naquele mesmo dia, as famílias da aldeia se reuniam em seus lares para saborear a carne conseguida com tanto esforço. Porém, havia um lar onde a família se reunia em volta de uma fogueira para compartilhar uma peça miserável de carne suína. Tão miserável quanto a carne, era o lar, uma choupana decadente, construída com uma boa madeira que já apodrecia e infestava-se de cupins.

No quesito design, os outros lares não eram tão diferentes daquele. O grande contraste ficava por conta do tamanho e do estado de conservação da edificação. A pobreza daquela família, assim como a de tantas outras, poderia ser vista só de comparar as choupanas na aldeia.

- Vá pegar mais água no poço. – Pediu Ernou assim que viu Nefarsius terminar de comer.

Nefarsius, então, se levantou, tomou um jarro qualquer e saiu. Todas as choupanas tinham praticamente a mesma organização. A fogueira, onde cozinhavam o alimento, ficava perto da entrada. No teto havia uma portinhola por onde a fumaça escapava. O chão era constituído da própria terra batida e a estrutura da construção feita de madeira. Não haviam janelas, a única fonte de ventilação ficava por conta da grande entrada principal e de fato as janelas talvez não fossem necessárias, pois todos os cômodos, não importa quantos houvessem, tinham suas entradas tão grandes quanto a principal. E nada de portas. Nem mesmo onde eles faziam suas necessidades fisiológicas.

Assim que seu filho saiu, Ernou se virou para sua companheira.

- Ele fez de novo, Sirse. Eu precisei da ajuda dele, mas ele estava vagando por ai de novo.

- Querido, precisa ter paciência. Ele vai encontrar seu próprio caminho. – Suplicou.

Sirse era uma artesã, sem muitos talentos, poucos anos mais nova que seu parceiro, seus longos cabelos brancos alcançavam o quadril e seu corpo esguio não tinha mais as belas curvas de outrora.

- Não temos tempo para ter paciência. Se você não tivesse conseguido trocar aquela pele de búfalo que consegui semana passada por esse pedaço de porco teríamos ido dormir com as barrigas vazias. Mais uma vez. – Respondeu, já sem forças para estar irritado. Franziu as sobrancelhas grisalhas e continuou. – Quando não estivermos mais aqui ele não conseguirá se virar sozinho... Às vezes penso que... Talvez não tenha sido uma boa ideia ter aceitado cria-lo. – Admitiu enquanto olhava para o fogo.

- Pare com isso! –Vociferou Sirse – Somos tudo o que lhe restou e ele é tudo o que nos resta. Dormirei antes que precise discutir com você de novo. – Disse e caminhou até sua cama nos fundos da choupana.

Ernou continuou cutucando a fogueira com uma vareta. Seus olhos escuros observaram, pela saída no teto, o céu limpo e estrelado. Pensava se tivera errado em algum momento como pai.

A tribo a qual pertenciam chamava-se Cefir, um povo que vivia da caça de animais selvagens em seu território. A pele desses animais era a principal moeda de troca, visto que era usada para quase tudo na aldeia, desde vestimentas até peças de decoração. Por tradição, as mulheres Cefir escolhiam com quem se uniriam e feita essa escolha não haveria volta, diante disso, os próprios homens poderiam recusar o pedido, o que seria uma vergonha para a mulher, por isso elas tomavam essa decisão com muitíssimo cuidado. A não ser que as outras mulheres escolhessem os mais “valorosos” da aldeia, nesse caso não sobrariam muitas opções.

Esse era um dos grandes problemas na vida de Nefarsius. Ele não era um homem nem um pouco “valoroso” para a tribo, logo, as mulheres pelas quais ele se interessava não lhe davam mais atenção do que a uma fruta estragada, exceto uma. Lunia não era a moça mais bonita da aldeia, mas tinha sua própria beleza. Ninguém sabia o que ela vira naquele “saco de nada”, mas alguma coisa ela viu.

Naquela noite, enquanto enchia o jarro com a água do poço, Nefarsius viu uma moça se aproximar para fazer o mesmo. Apenas os grilos e sapos quebravam o silencio instaurado em volta daquele poço cercado pelas choupanas em bom estado. A moça continuava enchendo seu jarro sem sequer olhar para Nefarsius. Ele, entretanto, não parava de observa-la.

- Olá Mona. – Disse tão alto e tão de repente que a moça quase deixou o jarro cair. – Soube que você ainda não escolheu um companheiro.

Mona era uma das mulheres mais bonitas da aldeia. Seus lisos e longos cabelos negros, olhos esverdeados e corpo delgado chamavam a atenção de todos os homens da tribo. E ela com certeza ficara irritada por aquela conversa ter se iniciado, embora não tenha dado atenção a Nefarsius.

- Bem, saiba que ainda estou livre, esperando uma merecedora. – Disse fazendo pose.

Após conseguir a água de que precisava Mona já tomava o caminho para longe dali. Mas, de forma insistente, Nefarsius entrava em seu caminho.

- Espere, estava pensando... Talvez você queira dançar comigo amanha, no ritual da lua cheia. – Falou como se fosse uma oportunidade de ouro.

Súbito, Mona vira o jarro sobre a cabeça de seu insistente paquerador, encharcando-o.

- Eu não quero nada com você. – Disse ela e saiu como se nada tivesse acontecido.

Mona provavelmente não queria ser “merecedora” daquele homem.

Henrique Lima
Enviado por Henrique Lima em 29/12/2015
Reeditado em 01/02/2016
Código do texto: T5494448
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