A MENINA E O POETA (Texto completo)

I

O Sonho

Na Praça Saens Pena, uma menina cresceu olhando pombos voarem sobre as cabeças de velhinhos aposentados e pousarem a seus pés. Acompanhou muitas vezes os grãos de milho que escorriam de dedos envelhecidos, e amarelavam o chão sujo da praça. A praça se localizava na Tijuca, bairro de classe média do Rio de Janeiro. E aquela cena, e muitas outras, e muitas coisas mais de sua história pessoal, a fizeram olhar a vida com um outro olhar, amar escrever e sonhar transformar o mundo com suas idéias. Nem que fosse apenas seu próprio mundo particular...

Ana Luiza era uma garota tímida, recém chegada à adolescência. Vivia seus conflitos interiores de uma forma diferenciada, por conta de uma família onde a mãe era mais presente, e dava as cartas na liderança daquela cabecinha inquieta que procurava na leitura, a descoberta de um mundo que ninguém lhe passaria de mão beijada. Ela deveria construir sua própria história sem as interferências de tradições familiares, conceitos pré-formulados e religiosidades milenares. Era este tipo de educação que recebia dentro de um psicologismo barato de que “é proibido proibir”. Mas, a geração que assim pensava já se perdeu em muitas “drogas, sexo e rock-and-roll”.

Enquanto passeava nas alamedas que margeavam a praça, Ana Luiza ia olhando para os pombos esvoaçantes e lembrando dos versos de Augusto Gil:

“Rola que estás arrulando

À beira do poço fundo,

Eu também sofro e não ando

A queixar-me a todo mundo...”

Aqueles versinhos singelos, lidos alhures em outras páginas literárias, acompanhavam a pequena naquelas andanças matinais pela praça. E os pombos arrulhando infernalmente, como que a preencher sua cabecinha ainda em formação, de um lamento profundo de existir...

A menina tinha suas dores. Tinha ela seus temores. Chorava. Mas sabia chorar. Fazia-o às escondidas, no seu quarto de dormir, com a cara colada no travesseiro limpo, com cheirinho de amaciante de roupas, no qual a empregada se esmerava em trocar a fronha todo dia para que a pequena tivesse uma noite de sonhos... Ela não era como os pombos que freqüentavam uma terapia coletiva matinal à cata de alimentação por meio de um lamento gutural. Já com onze anos descobrira os livros. Fora apresentada a eles por pura curiosidade. Ao ouvir falar numa reportagem televisiva sobre o conteúdo de um livro, lembrou que já tinha visto um volume do mesmo sobre a escrivaninha de seu pai.

Quando estava sozinha em casa, foi pé ante pé ao escritório do pai e lá compulsou exaustivamente o livro que lhe chamara a atenção, tendo acesso a informações que, de outra forma, só saberia num tempo posterior de sua vida. Aprendeu com isso que os livros escondem mundos e revelam realidades que nem sempre as conversas de casa e da escola apresentam. E foi a este mundo que passou a ir, sempre que sua cabecinha inquieta pedia novas descobertas...

A partir daquele momento, Ana Luiza tornou-se uma leitora obcecada, deixando-se preencher pelo sonho de se tornar também uma escritora. Ela procura vencer todos os seus medos, lendo tudo que se deparava diante dela. Ela começou a perceber que diante de um livro sua timidez se acabava. Ela incorpora os personagens e apropria-se de sua força. Por conta de sua timidez e de uma série de decepções na vida, tornara-se uma menina retrancada, medrosa. Tinha receios de ser decepcionada, de sair frustrada de relacionamentos, assim como percebia algo de muito tênue no relacionamento de sua mãe com seu pai. E isso lhe causava estranheza.

A pequena, sem que os pais o soubessem, afinal de contas estavam ambos muito ocupados em seus afazeres, iniciou uma jornada criteriosa pelo labiríntico mundo dos livros. A mãe, uma médica, cumpria agenda diária intensa nos atendimentos do Consultório e do plantão hospitalar, além do curso de pós-graduação que fazia para incrementar a carreira profissional. O pai era um desempregado que vivia diuturnamente - segundo ele mesmo afirmava -, numa maratona pelas ruas em busca de solução para sua vida, sem conseguir êxito. O fato, que já se estendia por longos dois anos, trazia desconforto visível ao relacionamento conjugal. Mas, como estava dizendo, a menina, sem o conhecimento dos pais, que estavam muito atarefados para terem tempo de cuidar da formação da filha, tornou-se uma inveterada leitora de livros de filosofia, de auto-ajuda, esotéricos e afins; livros existencialistas, biografias e relatos nada edificantes de comportamentos sexuais de adolescentes e prostitutas deste mundo.

A sordidez do mundo caiu-lhe no colo de forma avassaladora de modo que, sem sair de casa, Ana Luiza conheceu o submundo do crime, da prostituição, da política e da mente humana, ao ponto de se questionar se a vida valia mesmo a pena, ou não seria melhor aproveitar seus dias entornando garrafões de vinho com os amigos e declamando poesias e textos de Leconte de Lisle, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé, Paul Verlaine, Tristan Tzara, Bertolt Brecht e Ezra Pound, dentre outros, em tardes e noitadas que promoviam nas casas uns dos outros, sob o pretexto de estudar as tarefas escolares. Se houvesse um copo de absinto à disposição, com certeza aquela cambada de adolescentes sonhadores experimentaria o mundo romântico e nefelibata da Paris de fins de Século XIX.

A menina, porém, enquanto agente de seu próprio destino, entregue à própria sorte da formação intelectual aprendida nos livros e da formação para a vida extraída de experiências de terceiros, vai tendo um amadurecimento precoce de tal forma que, aos quinze anos, já possui uma experiência intelectual acima da média para a sua idade, embora o amadurecimento emocional ficasse um pouco a desejar, pois os parâmetros que tivera não possuíam a força do peso da experiência familiar, o que perdia em impacto na sua vida e a tornava um tanto quanto insegura diante de certos fatos que a vida, já nesta fase, lhe começava a impor.

Mãe e filha são resolvidas enquanto detentoras de papéis sociais que as aproximam. Só que a menina ainda não se deu conta de que sua mãe é uma mulher madura, de personalidade e vida definidas. Ela, porém, é apenas uma sonhadora garota, que quer ser feliz na vida. Ana Luiza tem, porém, em si o germe da busca do novo. Ela avança em sua busca, sequiosa de conhecimento, e com isto vai construindo seu mundo ainda que com os retalhos da vida de terceiros colhidos nos livros.

II

O Encontro

Com o tempo livre que tinha para gerir a própria vida, Ana Luiza descobriu o mundo da Internet. Nele mergulhou fundo à busca de novidades e conhecimentos. Para bem de sua formação, muito do que descobriu logo abandonou, livrando-se, como tantos não conseguem, de uma dependência que a poderia tornar uma pariá vagabunda da sociedade, com vida ativa no mundo virtual e nenhum envolvimento significativo na vida real. E esta lhe era uma possibilidade bastante plausível, tal o abandono que experimentava na vida, exceto por uma babá que estava sempre à disposição para atender seus caprichos de mocinha mimada.

Passado o deslumbramento da descoberta, a menina aprendeu que a Internet poderia ser uma ótima ferramenta para fomentar sua ingente busca de conhecimento literário, de compreensão do mundo e da existência pessoal. Mais que isso, a Internet lhe abria um vasto campo de possibilidades para dar vazão ao seu interesse de ser escritora. E foi neste mundo novo, que ela descobriu o Recanto das Letras, site destinado à publicação de textos os mais diversos, onde passou a publicar suas crônicas, incipientes ainda, mas que já demonstravam uma cosmovisão bafejada de estilo e cultura crítica, mostrando a sua intelectualidade precoce.

No fim de uma tarde de sexta-feira, em algum lugar distante do interior do Rio de Janeiro um poeta maduro é abordado pela menina que quer ouvir sua opinião sobre um texto que acabara de escrever. “De onde aparecera tal menina?” O dispositivo de comunicação interpessoal do Windows, conhecido como Messenger, indicava que alguém estava interessado em se comunicar com o poeta. Ele adiciona esta nova amiga e recebe o impacto do interesse dela em saber a sua opinião sobre o que acabara de produzir.

O poeta é um homem vivido. Sabe que não pode frustrar uma garotinha que sonha com as letras. Ele já percorrera muitas estradas literárias e trazia na própria pele as marcas das montanhas que teve que transpor para conquistar o seu lugar debaixo do Sol. Ficara sabendo que a menina era uma leitora inveterada de seus contos e poemas; disponibilizados no mesmo site, que ela agora acabara de descobrir poder também abrigar seus textos. Democraticamente, a menina foi acolhida não mais apenas como leitora, mas, também, como escritora.

Ousa o poeta dar umas opiniões, fazer uns elogios. A menina é seca. A menina é resistente. Ela adota uma postura defensiva, de quem não acredita na vida e nem nas pessoas. É cética. Crê e aceita apenas o que faz. A opinião de terceiros é apenas opinião e será ouvida e digerida para alimento ou evacuação. Só o tempo dirá. “Por que o procurou então?” Pensa o poeta... “Mas ela o procurou!” Continua ele a refletir...

Então o poeta vai acreditar que há ali um coração inseguro que quer apoio e que quer ajuda e que quer conquistar a literatura, mas que precisa primeiro conquistar o seu “eu” interior, conquistar a confiabilidade no mundo das palavras que imprimem sonhos e transformam vidas. E o papel do poeta como criador deste mundo, que vai promover uma reviravolta na vida modorrenta de leitores que se perderam na jornada da existência, é de fundamental importância. Mais do que nunca o poeta precisa estar consciente de que a vida imita a arte. E a arte embeleza a vida, dando mais cor e sabor à existência.

Um pouco antes das dezoito horas daquela sexta-feira, a menina e o poeta se encontram batendo um papo inaugural:

- Oi.

- Tudo bem?

- Você pode me dar sua opinião sobre um texto que acabei de escrever?

A menina vai direto ao ponto que lhe interessa e o poeta é apresentado àquela personalidade forte, de uma maneira nada usual no mundo da intercomunicação virtual.

- Sim. Com todo prazer!

- Ok. Posso mandar?

- Pode. Mas amanhã devolvo minha análise e opinião para você...

- Só amanhã? Mas o texto é curto?

O poeta descobre a impaciência da menina que precisa de uma opinião para seu texto, quer imediatamente, não está muito disposta a ouvir conselhos, é resistente a elogios, tem medos interiores que a atormentam, mas que ousa interpelar um estranho pela Internet, só porque se identificou com seus textos e ali viu alguém que poderia ajudá-la de alguma forma a se encontrar no mundo da literatura...

Ela não sabe ainda que nem todo mundo que investe tempo com a Internet está ocioso. Ela ainda vai aprender que a Internet hoje é a mais ágil, e melhor equipada, ferramenta de trabalho para o escritor contemporâneo. E que há muitas atividades que se desenvolvem paralelamente ao uso do computador como agente transmissor de dados, viabilizando comunicação on-line, transações e negócios.

- Ta.

Um lacônico consentimento popular apresentou a sua resignação, mesmo que a contragosto, à posição do poeta.

Na casa da menina um cheiro de bolo assado chega-lhe às narinas e ela sabe que dali a pouco a doméstica vai lhe trazer um saboroso lanche. No escritório de trabalho do poeta uma xícara de café forte é sorvida com pressa, por aquele que precisa terminar uma matéria para entregar ao jornal “Páginas da Vida”, publicação do interior de Goiás Velho, GO, para o qual escreve como jornalista free-lance.

A tarde é quente embora ainda fosse Primavera. A menina sorri com encanto e se delicia com o rostinho angelical que vê no espelho lateral do quarto. O poeta sorri com fina ironia e sente o cenho franzir diante do compromisso de produzir as matérias que lhe garantem a sobrevivência como pessoa e como poeta.

Ainda não houve tempo suficiente para ambos digerirem o que estava ocorrendo. O fato é que um poeta quase quarentão e uma menina adolescente se encontram na Internet e na literatura. Sem o saber, a pequena é abençoada pelo destino em conhecer um poeta daquela grandeza. Aquele poeta, homem maduro, vai funcionar-lhe como um pai sem que ela se aperceba disso. Mais que isso: será seu ponto de apoio para vencer a timidez e encontrar-se como pessoa. Ao que tudo indica, esse poeta será fundamental em sua história de vida.

III

A surpresa

No dia seguinte, a menina se encontra novamente com o poeta no mundo virtual. Ela está ansiosa, e ele, por saber disso, vai logo comunicando que a análise do texto com sugestões de mudança está pronta.

- Manda para mim agora?

- Mais do que pra já, amiga!

“Amiga?”, pensa a menina. “Ele é apenas um conhecido. Um conhecido que eu nem conheço direito. Só conheço o que ele se dá a conhecer pelos seus textos e pelas vagas informações que encontro em seu perfil no site”. E, em assim matutando, a menina abre o arquivo que chega a seu micro e lê aquelas palavras analíticas do poeta. Um catatau de informações que ela tenta digerir devagar. “Esse cara ta querendo reescrever meu texto!” A aprendiz de escritora se enfurece diante daquilo que considerou ser demais para ela.

As reações que se sucedem indicam que a menina recebe o texto do poeta, lê avidamente (faz-se um silêncio de letras na tela do comunicador de textos da Internet), não gosta do que lê e, por fim, diz que o poeta está mentindo.

- Você está querendo me agradar com este papo de que eu tenho futuro? E por que mexeu tanto no meu texto? Você está mentindo, gostou nada!

O poeta se maravilhou de ter conseguido levar a menina a expressar um pouco mais os seus sentimentos, a usar mais palavras em sua comunicação do que costumeiramente o fazia...

- Bem, fiz o que pude e o que achei que poderia ser o melhor para você. Está aí a minha contribuição. Agora é com você se vai aceitar ou não!

O poeta resumiu seu pensamento e optou em dar por encerrada aquela sessão de conversas. Era melhor deixar a menina refletir sobre as idéias que ele passou, e aguardar que ela encontrasse a maturidade suficiente para a aceitação de uma crítica construtiva.

Ficou por ali, trabalhando, dialogando com outros internautas. De vez em quando a menina esboçava uma aproximação, digitando algumas palavras, uns comentários, pedindo uns esclarecimentos. O poeta respondia com educação a cada investida da menina, mas era econômico em suas palavras para não dar muitas brechas que levassem a estender muito a conversa.

Passam-se alguns dias. O poeta resolve visitar a página da futura escritora, no site de literatura. Descobre lá o texto que ele analisou. Nenhuma alteração proposta por ele foi absorvida. “É, essa menina tem um gênio forte mesmo!”, conclui o poeta. O poeta não se esgarça por isso. Ele sabe que ali está alguém em formação, alguém que precisa amadurecer e seguir o próprio caminho literário e pessoal. Não fizera nenhuma proposta de alteração do conteúdo, mas apenas observações que diziam respeito aos aspectos ortográfico, gramatical e estético.

Os dias seguem seu curso temporal. Contrariamente ao que ocorre quando se comunicam entre si pela Internet, a menina se aproxima demais emocionalmente do poeta. Ela lê tudo o que o moço produz. Sabe de cor as aventuras que ele criou em seus contos. Conhece cada personagem por ele elaborado. Cita sem pestanejar cada trama e: chora, ri, se enraivece, sonhando junto com os sentimentos de cada personagem feminina que o poeta descreve em seus textos.

Nesta altura, eles já haviam trocado endereços. A menina queria enviar um livro de presente no aniversário do poeta: "Malu de bicicleta", um livro de Marcelo Rubens Paiva que o poeta ficou encafifado até saber de que se tratava, pois a menina achava que tinha tudo a ver com o estilo dele. Leu. Não era o tipo de literatura que estava acostumado ou que gostaria de ler, mas o fez por causa da insistência dela. O livro tinha tudo a ver com ela e ela achando que o livro tinha tudo a ver com ele... Como são as coisas!

Numa manhã de sábado, a menina, sob o pretexto de ir a um passeio da turma da escola, desvia-se de trajeto com uma amiga, e destrambelha-se para Niterói. Nesta altura, o poeta já havia montado apartamento naquela cidade fluminense e a menina, de posse do endereço, vai bater à sua porta. São nove horas da manhã. O poeta tinha participado de um sarau literário no dia anterior, e o que ele mais queria naquele momento era uma espichada a mais no sono. Ledo engano. Toca o interfone. É a menina.

- Alex Guima?

- Sim, quem é?

- Sou eu a Ana Luiza!

O poeta toma um susto. “O que esta menina está fazendo aqui?” Pergunta-se, tentando entender as razões que a levaram a procurá-lo de forma tão espontânea e inusitada.

- Você está sozinha?

- Não! Trouxe uma amiga comigo!

- Ah, então pode subir!

O poeta arrojou-se para o toalete e ajeitou o que pôde a cara amarrotada de uma noite curta demais, correndo para o quarto para colocar uma roupa mais apropriada para receber as meninas.

A campainha do apartamento toca. Teve o tempo suficiente apenas para ajeitar-se e por a mesa para um possível café da manhã. Vida de escritor é assim mesmo. Ainda mais de escritor solteirão: uma correria louca para produzir o imaginário e outra para viver o real.

Quando abriu a porta da sala deu de cara com duas meninas simpáticas, estilo colegial underground. Uma com ar sereno, embora brincalhão e questionador, como que aguardando o próximo lance do jogo; outra com ar tímido, porém respeitoso e reverente, como se o sucesso do encontro dependesse da aceitação positiva do primeiro olhar...

- Bom dia, Aninha! Como você está?

E enquanto dirigia-se a segunda, que identificara como sendo sua interlocutora da Internet, acrescentou:

- Que grata surpresa receber visitas tão simpáticas logo de manhã! Com certeza o meu dia hoje será muito bom, porque está começando muito bem.

E, enquanto lhes dirigia estas primeiras palavras, foi cumprimentando-as e solicitando que entrassem logo, pois o vento que corria no corredor poderia lhes ser de péssimo tom para a saúde...

As meninas adentraram timidamente a sala de estar do apartamento, e foram logo se alojando no sofá a convite do poeta. Rebeca, a amiga de Aninha, a olhava inquiridora como que a dizer: “Agora é com você, miga! Deslancha aí! É a sua vez!” E Aninha não se esquivou.

- Muito bem, senhor Alex Guima. Quer dizer que finalmente estamos nos vendo? Parece sonho, mas planejei este dia durante muitas noites insones...

Que coragem a menina estava tendo para fazer aquele discurso. Ela estava evoluindo em sua capacidade de expressão, embora os vestígios de timidez estivessem presentes no olhar, no jeito matreiro, e na fala miúda, quase um esgar de voz, sumido no fundo de uma garganta suave que emitia sons diminutos, quase que pedindo licença para sair.

Sem que soubesse, Alex Guima estava diante de uma menina de quem, nos últimos meses tornara-se tutor à distância, sem que para tal tivesse sido convidado. O comportamento, as atitudes, os sonhos e expectativas de Ana Luiza estavam condicionados agora por tudo o que conseguira extrair do seu ídolo literário...

IV

A Crise

Como a ansiedade era grande e o desejo de rever o poeta maior do que sua capacidade de esperar; certo dia, a menina resolve ir novamente à casa do poeta e não o encontra. Frustra-se. Pergunta aos vizinhos. Havia seis meses que o poeta mudara. Ela não se apercebera disso. Afinal de contas as cartas, e-mails e bate-papos pela Internet transcorreram normalmente naqueles meses.

- Já tem aproximadamente uns seis meses que o senhor Alex Guima mudou-se do prédio...

O porteiro informava distraidamente à pequena garota, pondo atenção na ansiedade que a dominava.

- Mas ele não deixou nenhum telefone de contato; uma informação qualquer que me ajudasse a descobrir seu paradeiro?

- Não! Nos primeiros dois meses ele até que retornou algumas vezes para acertar algumas pendências com o locador do imóvel. Depois disso, não mais o vi...

Ana Luíza olhava firme para o senhor, que instalado na portaria do Edifício, ganhava uns ares de autoridade naquele momento que a incomodava bastante. Encarava o porteiro, o tanto que a sua timidez permitia, mas não se convencia de que Alex Guima tinha desaparecido assim tão abruptamente.

- Se pudesse ajudar, bem que o faria, pois percebo a sua vontade de encontrá-lo...

O porteiro arrematou a conversa, enquanto a garota se despedia e se encaminhava para a porta principal do prédio. Ela ia embora levando junto uma decepção tamanha.

É claro que ele sabia mais informações de Alex Guima do que expusera naquele momento. Recebera, porém, orientação expressa do escritor para guardar as suas cartas e passar-lhe todas as informações úteis, preservando sua privacidade. O porteiro seria regiamente recompensado se colaborasse com o escritor.

Ana Luíza ganhou a rua e foi caminhando à esmo pela calçada, na indefinição angustiante dos que caminham sem rumo, portando pensamentos dissociados do espaço físico que ocupam. Naquele instante duas orientações distintas se percebiam nela: o corpo vagava comandado mecanicamente pelos pés e a mente viajava tartamudeando esperanças provindas de um coração desassossegado.

Foi nesse transitar descompassado, por entre carros e gentes da urbis, que a garota, após mais de meia hora de perdição, achou-se sentada nos fundos de uma lanchonete, comendo um sanduíche e pensando na vida. Ainda não atinara o quanto o poeta estivera presente em sua vida nos últimos meses e o quanto ela se tornara dependente dos seus escritos, do seu estilo literário, da sua filosofia de vida, da sua visão de mundo.

É exatamente neste momento de procurá-lo e não encontrá-lo que a menina se dá conta de que não consegue mais viver sem o poeta. Toma um susto! E diz de si para si: “Não pode ser. Ele tem idade para ser meu pai. Será que estou apaixonada por ele?” Instaura-se uma profunda crise em seu ser interior.

Não se sabe por que cargas d’água, mas a menina está perdidamente apaixonada pelo poeta e só agora, no momento de desejar encontrá-lo e não poder satisfazer esse desejo, que vê o quanto sua vida está ligada à dele e o quanto ele lhe é importante.

Paralelamente o poeta fica sabendo que a menina está à sua procura. Tudo indica que a sua decisão de se mudar era exatamente por que se percebera gostando da garotinha. Como não tinha coragem de assumir a verdade dos fatos, decide por sumir do mapa. Pára de se corresponder com a menina. Cessam os e-mails. Muda o MSN. A menina se desespera.

V

A Decisão

Desde que se frustrara ao não encontrar o poeta no endereço que ele havia lhe dado e onde já estivera por uma vez, a menina ficou com o interesse pelo moço ainda mais aguçado. A percepção de que o seu interesse por ele havia extrapolado o conteúdo literário e adentrado o mundo dos sentimentos, a estimulava ainda mais a encontrar o poeta perdido no alvoroço da cidade grande.

Naquelas semanas que se sucederam a sua frustrada tentativa de encontrá-lo em sua residência, ela só teve decepção em cima de decepção. Mudar daquele prédio fora uma decisão difícil para o poeta, mas necessária porque ele não estava preparado naquele momento para lidar com o interesse que a garota adolescente também lhe havia despertado. As atitudes que ele tomara em seguida, é que acrescentariam decepções à menina.

Em princípio, ele parou de responder às cartas que lhe abarrotavam o escaninho do prédio toda semana. Em seguida já não entrava mais no Messenger com a mesma regularidade que antes, até que desapareceu por completo da Internet. Por fim, nem os e-mails ele respondia mais...

O poeta procurava se esvaziar da menina e quanto mais o fazia, mais a menina procurava preencher-se do poeta. Naquele vazio de comunicação que se sucedeu à tentativa frustrada de encontro, a menina aproveitou para rever as cartas e e-mails recebidos do poetinha – era assim que ela o chamava carinhosamente – ao longo dos últimos doze meses.

Reviu a aula sobre estilos literários, repensou a classificação dos textos conforme a categoria, teve oportunidade de refazer a viagem nos textos que o poetinha lhe recomendara sobre a função e a natureza da poesia e, acima de tudo, caminhou com alegria mais uma vez sobre os trilhos do versejar, revendo as conversas sobre soneto, haikai, balada, verso livre, ode, epopéia, canção, dentre outras formas de poemas, deparando-se com as questões da métrica, da rima, do verso de pé quebrado, do jambo, das aliterações e assonâncias, que para ela tinham sido uma descoberta excepcional sob a luz do poetinha, que com paciência soube introduzir a menina no mundo da poesia que permanece.

Ana Luíza aprendera que há uma poesia descartável, datada, que é aquela que apenas revela sentimentos individuais, fruto de paixões adolescentes, mas que não possui caráter universal. Ela aprendera que devia dominar seus sentimentos e domesticá-los pelas palavras, fazendo com que seus versos deixassem o jeito piegas e alcançassem o estilo de uma poesia mais permanente, mais durável.

Mas, naqueles meses que se sucederam ao afastamento do poetinha, foi quando ela mais perto dele ainda ficou. Agora, de uma forma espiritual; pela poesia. E os textos e as poesias fizeram – por obra das artes do coração – a reaproximação da menina e do poeta. O que mais foi determinante para a intensificação do desejo de estar junto do poeta foi a releitura das intervenções que ele fizera nos textos que submetera à sua apreciação.

A menina, no distanciamento do tempo e da emoção do momento em que produzira os textos, podia agora compreender as dicas que o poeta dera a respeito de seus escritos. E como ela observava agora o quanto a maioria deles possuía um toque infantil ou superficial. Ela agora podia rir do que escrevera, percebendo o quanto amadurecera naqueles meses. E ela estava disposta a abandonar a poesia-desabafo para produzir algo mais consistente.

Depois de todo aquele exercício, ela se sentiu segura para retirar seus textos do site, reescrevê-los e tornar a publicá-los se achasse viável. Foi com bastante tranqüilidade – e leveza de consciência – que foi fazendo bolinhas de papel com dezenas de textos seus que se amontoavam sobre a escrivaninha, mirando a cesta de lixo com precisão, e a cada bolinha encestada vibrava como se fosse o Michel Jordan de saias da subliteratura brasileira. Com aquela brincadeira de jogar bolinhas ao lixo, ela encerrou uma era de preconceitos, pieguice e achismos em sua vida, inaugurando um novo tempo em sua escrita.

Com emoção, Ana Luíza empunhou sua caneta e concentrou-se no papel branco à sua frente, pôs-se a escrever o primeiro texto de um novo tempo de sua vida literária. As semanas e meses seguintes foram dedicados à sua paixão pela escrita e à missão quase que impossível de achar o poetinha no Estado do Rio de Janeiro. Sua tarefa seria mais hercúlea que todas que já tinha se deparado até então e mais minuciosa que procurar agulha no palheiro. Mas, a menina era determinada e nada obstruiria sua missão. Percorreu sites de literatura e poesia. Freqüentou saraus e lançamentos de livros. Visitou livrarias, museus e bibliotecas. Foi a eventos oficiais, inaugurações e coquetéis. Onde houvesse uma esperança, tênue que fosse, lá estava a menina no anseio de reencontrar seu poetinha.

VI

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A determinação da menina em encontrar o poeta estava calcada em sua vontade suprema de estar ao lado dele. Ela sentia quase que uma necessidade vital de respirar o mesmo ar que o poeta. Queria fazer parte daquele universo lírico que compunha não só a ficção do poeta, mas o seu mundo real recriado pela literatura. O poetinha já se tornara uma presença mística na vida da menina.

Além disso, a decisão da menina por encontrar o poeta tem tudo a ver com o seu estado emocional. Precisa vê-lo. Quer desfrutar de seu olhar, seu sorrir, seu tocar. Esse encontro, a seu ver, é fundamental para determinar se está mesmo gostando dele ou não. É por isso que pesquisa por todos os meios, e mesmo esbarrando em dificuldades, está resoluta.

Vale dizer, nesta altura, que Aninha, embora não fosse rica, possuía uma situação sócio-econômica privilegiada, pois não precisava se preocupar com questões materiais. Vivia debaixo de certo conforto; era mimada em seus desejos extravagantes; sorria para a vida, que gargalhava para ela. No meio desta aparente tranqüilidade material, ela encontrava tempo para cuidar das coisas do espírito: ler bastante, pensar, refletir e escrever.

Ao tempo em que estudava num conceituado colégio particular no período matutino, dedicava suas tardes e noites às leituras e também à sua incessante busca do poeta de sua predileção. Não faltavam profundas inserções nas páginas literárias do poetinha, onde mergulhava em profundidade na tentativa de absorver aquele mundo tão encantador pelo qual se deixara seduzir.

Uma certa tarde se achou na balbúrdia humana e livresca da Bienal do Livro do Rio de Janeiro. Ali, absorvida pela magia da literatura, percorreu stands, visitou exposições, participou de debates e lançamentos, ouviu atentamente escritores e editores falarem de seu ofício e, acima de tudo, confirmou seu intento de nunca abandonar o binômio leitura/escrita, pois faria dele sua razão de viver.

O mega espaço do Riocentro, em Jacarepaguá, tornara-se pequeno para tanta gente e tanto livro, que se misturavam misticamente numa simbiose cultural de forte apelo emocional. A menina estava encantada com o mundo fantástico da literatura. E foi participando de uma homenagem a Mário Quintana, num dos stands da Bienal, que Aninha julgou ter visto alguém familiar. Um vulto se esgueirou por detrás da mesa redonda de poetas que recitavam e comentavam poemas do “poeta das coisas simples”.

Enquanto ouvia a leitura do canto I de “A Rua dos Cataventos” a imaginação criadora da menina viajava pelo mundo encantado da poesia. “Escrevo diante da janela aberta / Minha caneta é cor das venezianas: / Verde!... E que leves, lindas filigranas / Desenha o sol na página deserta!” E seu pensamento voava para além da janela da vida em busca do sonho de encontrar o poetinha de seu coração, enquanto ouvia as lindas palavras da verve de Quintana a assoprar em seu ouvido: “Não sei que paisagista doidivanas / Mistura os tons... acerta... desacerta... / Sempre em busca de nova descoberta, / Vai colorindo as horas quotidianas...” E nada, nem ninguém naquele momento, poderia retirar Ana Luíza da janela mágica da literatura e do amor na qual entrara de forma intensa...

O declamador continuava sua interpretação de Quintana, tendo por fundo um play back de orquestra que realçava a beleza do soneto e a menina continuava seu transe emocional: “Jogos da luz dançando na folhagem! / Do que eu ia escrever até me esqueço... / Pra que pensar? Também sou da paisagem...” E assim como o poeta em seus versos vai se imiscuindo na paisagem e fazendo com que ele, a natureza e a palavra se tornassem uma unidade indivisível, a menina também perde a noção de tempo e espaço e transita leve e solta no mundo imaginário da poesia e do amor que aquele instante mágico lhe proporciona: “Vago, solúvel no ar, fico sonhando... / E me transmuto... iriso-me... estremeço... / Nos leves dedos que me vão pintando!”

É exatamente neste instante de plena identificação com o mundo à sua volta, recriado pela poesia, que Ana Luíza julga ver um vulto no tablado de artistas da palavra onde são declamados e comentados os versos de Mário Quintana. Seu coração dispara! “É ele!” Julga ver Alex Guima no meio daquela gente e seu coração se preenche de uma alegria inaudita. Ela quer alcançá-lo com o olhar, quer uma identificação rápida para não perdê-lo de vista, e esforça-se para chamar a atenção do moço distante, separados que estavam por uma pequena multidão que se aglomerava no auditório de seminários da Bienal. Mas a barreira mais forte que Aninha precisaria vencer era a da timidez. Para que ela pudesse chamar a atenção do poetinha e demonstrar que desejava um encontro, precisaria gritar, e muito, e mesmo assim sem qualquer garantia de que seria ouvida, pois a distância e o burburinho eram intensos. Mas esta ousadia, e a perspectiva do fracasso, era tudo o que ela não queria diante de sua famigerada introspecção.

Enquanto pensa e tenta agir, a menina pelo menos encontra forças para deslocar-se no meio daquela gente e ir até o local onde divisara o vulto que julgou ser Alex Guima. Quando finalmente aproxima-se do palanque, dá-se conta, decepcionada, que ele não está por lá. Uma dúvida cruel sobre se realmente tinha visto o poetinha, ou tudo aquilo tinha sido fruto de sua imaginação por conta da ansiedade de encontrá-lo, tomou de assalto a menina. Ela, porém, concluiu convicta, para seu desprazer, que realmente o tinha visto, e que o que tanto almejara, escapara-lhe como água por entre os dedos depois de quase estar ao alcance das mãos e de seus lábios ardentes.

Para tentar amenizar sua frustração, a menina passa por stands, adquire livros às mancheias, e num consumo compulsivo, tenta descarregar toda a tristeza daquele momento em que esteve tão perto de realizar seu sonho e deixou-o escapar. Como ela se recriminava por não ter feito algo mais naquele momento em que saindo do transe poético viu Alex Guima transitando no stand. Além dos livros que adquiriu, ainda passou por stands oficiais do governo e pegou exemplares gratuitos de livros de Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, patrocinados pelo Ministério da Educação através do FNDE/PNBE, programa do Governo de disseminação da literatura brasileira.

Quando chegou a casa já no meio da noite, a menina estava emocionada por tantas experiências vividas. O taxista que a deixou em frente ao seu apartamento em Ipanema, tentava entender o que se passava por trás dos olhos brilhantes e do rosto fulgurante da menina que parecia ter visto um pássaro azul voando baixo e trinando harmoniosas melodias.

Tomou um banho reconfortante, ajeitou os novos volumes em sua biblioteca particular e após um lanche deitou-se para dormir e pensou em como aquele dia tinha sido vivido intensamente. Não sucumbiu ante a frustração de não ter podido falar com o poetinha, porém, viu no episódio a demonstração de que é possível encontrar-se com alguém mesmo que se esteja procurando um ser entre milhões. Não há barreira que o amor não vença, estava aprendendo a pequena Aninha, mesmo que às duras penas.

No outro dia, quando acordou e se preparava para rumar para a escola, não se sabe por qual razão do destino, resolveu pegar o exemplar do jornal que o seu pai recebia por assinatura e levá-lo consigo. Era um sábado. A escola estava ministrando aulas também aos sábados para repor tempo perdido com interferências nocivas do governo sobre a Educação. Estava trafegando em trem do Metrô e compulsando o diário, quando se manifesta de forma expansiva, contrariando sua própria estrutura emocional. Ali estava um anúncio que resolveria definitivamente a sua angústia existencial dos últimos meses.

Falar que ela já estava quase desistindo da busca, pois já não acreditava na real possibilidade de reencontrar o poetinha, talvez não seja o mais correto, pois o episódio do Riocentro lhe havia reabastecido as esperanças apesar da frustração. Agora, o que lhe acontece dentro do vagão do Metrô do Rio de Janeiro é simplesmente uma recarga explosiva de esperanças. O jornal traz anúncio de lançamento de livros em caderno literário, e, aquela edição do jornal de grande circulação dá conta de lançamento de livro de poesia de Alex Guima apresentado ao grande público carioca pela promoter curitibana Sandra Carvalho, tendo como participação artística da cantora brasiliense Nalva Star e produção da manauara Mhayah Bahvatkxy. O evento vai acontecer naquela noite. Ela não pode perder. Vai ter que dar um jeito de inventar uma história para dormir na casa de uma amiga e passar a noite no sarau literário.

VII

O Reencontro

Naquelas horas que se sucederam ao achado de Ana Luíza, a menina foi tomada de uma transformação meteórica em seu comportamento. O motivo de sua incessante busca estava por chegar ao clímax e ela não escondia a sua alegria.

Naquele fim de tarde, quando acabara de tomar o seu banho, ao ver-se nua diante do espelho do quarto, com a toalha caída aos seus pés, Ana Luíza deparou-se com uma mulher feita. Pela primeira vez contemplava o seu corpo e se agradava do que via. Embora seu rosto ainda guardasse um jeito de menina, o corpo, no conjunto, expressava os atributos de mulher feita; pronta para o amor.

No rosto, os olhos, os lábios, a expressão facial, demonstravam uma determinação e uma sensualidade próprias de uma moça que sentia que o amor palpitava em seu coração. As sinuosas curvas de seu corpo, os seios bem torneados, as pernas longelíneas, servindo de colunas helênicas para um Monte de Vênus misterioso e acolhedor era como fotografia idealizada da mulher brasileira.

Um leve e insinuante sorriso tomou conta da face de Ana Luíza naquele instante. Era como se fosse um sinal de aprovação ao corpo exposto no espelho, mas também aos pensamentos escondidos em sua mente. E que pensamentos eram estes? Não era possível ainda decifrar os pensamentos da menina-moça, embora uma suspeita se apresentasse.

Após as aulas da manhã, com a descoberta no jornal do evento para aquela noite, Ana Luíza ligou para casa, dizendo que almoçaria no Shopping. Lá, fez um tour pelas principais grifes de moda feminina e estacionou na Forum depois de ter passado pela Zoomp, M.Officer, Ellus e Fit. Queria algo despojado, pois depois que a übermodel brasileira, Gisele Bündchen, foi eleita a Modelo do Ano pela revista Vogue americana, as brasileiras precisavam se desdobrar para apresentar o seu diferencial. Para Aninha não seria difícil. Além de sua beleza física, aquele dia, em especial, fazia dela a garota mais bonita do mundo: o olhar, o sorriso, a expectativa, o mistério, o amor e outros ingredientes, faziam dela uma mulher completa. A menina estava revestida de um plus invejável!

Lindamente nua, Aninha olhava para as peças dispostas com carinho sobre sua cama e que serviriam para ornar o seu belo corpo de menina-moça. Pegou a lingerie nova, um Conjunto Corselete, formado por calcinha Click-up, corselete em renda francesa e meia 7/8 com renda siliconada, dando um toque bastante sensual e sofisticado. Vestiu as peças íntimas com meticuloso vagar, como se estivesse se preparando para um ritual religioso. Depois de terminar de ajeitar os detalhes sobre o corpo virgem, postou-se mais uma vez defronte ao espelho e contemplou seu corpo enfeitado de rendas. Novamente, deliciou-se com o que viu, qual narciso no lago misterioso do amor.

Agora era a vez do vestido. Um vaporoso longo preto, que se ajustou perfeitamente em seu corpo jovem, e lhe emprestou não só elegância e jovialidade, mas contribuiu para ressaltar sua beleza e ampliar sua altura, já que ela era de estatura mediana. Mais uma vez, Aninha se perde na contemplação de si mesma diante do espelho. Está pronta. Os últimos retoques da maquiagem e o borrifar do perfume francês indicam que em pouco tempo ela ganhará as ruas para a grande noite de sua vida.

Quando o táxi estacionou defronte ao prédio da Biblioteca Nacional, no centro do Rio de Janeiro, a noite já estava em seu esplendor e Ana Luíza pisou firme na calçada, subindo com desenvoltura a velha escadaria de acesso ao hall de entrada do edifício. Ela tinha o céu por cobertura e bênção. Nele, as estrelas salpicavam o manto negro de luzes, benfazejas luminárias que rebrilhavam nos olhos inquietos da moça.

Quase três centenas de convidados se aglomeravam, segundo os cálculos da moça, para o lançamento do livro de Alex Guima. Toda a estrutura para o evento estava montada, com cadeiras bem dispostas para os convidados, palanque com som profissional de primeira qualidade, holofotes, mesa para autógrafos, bufet para o coquetel. A noite estava linda. Muitos poetas de renome compareceram para prestigiar Alex Guima. Como a noite prometia ser bastante agradável, a menina se preparara para viver um bonito momento de sua vida. Dirigiu-se às cadeiras mais próximas ao tablado central, pois pretendia ter uma visão privilegiada do seu autor favorito.

A Banda “Legião Urbana” foi convidada para dar uma canja e, enquanto os convidados mais atrasados chegavam, o ambiente deixava-se tomar por uma música de boa qualidade. Era hora do artista principal da noite. Alex Guima faria três sessões de recitação de suas poesias, intercaladas por novas participações da Banda. Na primeira parte, a leitura de “M de Mulher” aqueceu o coração da moça, levando-a a sonhar acordada. Na segunda, foi “Limitações da Poesia” que a encantou.

Mas, na terceira parte, a jovem deliciou-se em ouvir dos próprios lábios do autor a recitação de “E o Vento Respondeu...” A sensualidade do poema calou fundo em seu coração, levando-a a se imaginar Musa daquele enredo. Pois foi exatamente neste instante que, Alex Guima, já incomodado por um sentimento queimante que lhe acometia o eu interior, viu os olhos da moça cruzarem o seus e o seus estacionarem nos dela. Algo de familiar havia naquele olhar e naquele rosto. Até que ele descobriu estar ali a sua pequena aprendiz de poeta.

A sensação que o poeta sentiu naquele momento foi de ter sido descoberto. Sentiu-se nu. O flagrante daquele momento de idílio poético desnudava toda a carga de poesia que ele imprimia em sua declamação. Falar de amor na impessoalidade abstrata de gentes com as quais possivelmente não mais conviveria era uma coisa. E, neste sentido, quanto maior a platéia, mais ele se sentia seguro por trás da couraça de artista que sempre vestia em ocasiões como essa. Mas, falar de amor para tanta gente, ante os olhos ávidos e perscrutadores daquela que ainda era a razão de sua poesia, era algo bem diferente.

Somente naquele instante do reencontro surpreendente com a amada, foi que ele se deu conta do quanto ela lhe era querida. Num dado instante, um dos holofotes cruzou a platéia e se deteve num jorro de luz amarela sobre Ana Luíza. O facho de luz que incidiu sobre a jovem, apresentou-a em sua plenipotência para o poeta. Não era mais aquela menina tímida, desajeitada, descolorida, que conhecera já havia mais de dois anos. Era, agora, uma moça bela, elegante, maquiada com glamour, e que entrava na juventude esbanjando sensualidade e senhora de seus desejos.

O coração do poeta disparou e os versos finais de “E o Vento Respondeu...” foram declamados por uma voz embargada, entrecortada de uma emoção que só corações amantes sabem entender. Ana Luíza revirava-se em sua cadeira, sabedora, somente ela e seu coração, de que o poeta a descobrira ali e que suas almas estavam agora interligadas numa só sintonia de amor. Mas o coração do poeta não resistiu à tamanha emoção e um infarto agudo do miocárdio, como conseqüência da obstrução das artérias do coração, o surpreendeu naquele momento, fazendo-o tombar pesado ao chão. O desespero tomou conta dos circundantes, em especial a sua musa juvenil.

Mais que depressa a equipe médica de plantão do Espaço Cultural da Biblioteca Nacional foi acionada e os enfermeiros retiraram o poeta byroniano na maca. A platéia estremecida e comovida foi acalmada pelo anfitrião, Srº Muniz Sodré, Presidente da Fundação Biblioteca Nacional, que interveio para acalmar os presentes e tentar levar o evento até o fim.

Por obra do destino, o poeta já havia autografado mais de 300 exemplares do livro. Embora não houvesse uma dedicatória a ninguém em particular, o presidente se incumbiu de personalizar os livros para os interessados. E, por conta das emoções da noite, não houve um assistente que voltasse para casa de mãos vazias. Todos adquiriram seu exemplar, para terem junto a si as poesias do “poeta das emoções flamejantes”, como sintetizara o crítico Adroaldo Lampreia em sua resenha no Jornal do Brasil. Os livros adredemente autografados por Alex Guima não foram suficientes para a ocasião, de modo que outras centenas de exemplares foram vendidas aos interessados. Conforme estimativa da coordenação do evento, nunca se vendeu tanto livro de poesia na noite de seu lançamento. Foram mais de mil exemplares vendidos. Sucesso absoluto de crítica e venda.

A equipe de literatos que se acotovelava na mesa de autógrafos para assessorar o presidente da FBN nesta tarefa de repassar aos interessados um exemplar do livro, surpreendeu-se quando uma jovem elegantemente trajada, com voz suave e quase imperceptível, perguntou, já quase no fim da noite e do evento, pelo poeta. A moça foi encaminhada ao presidente que, apresentando-se, teve a oportunidade de ouvir de seus lábios a frase:

- Prazer! Sou Ana Luíza, amiga do poeta!

Quando ouviu aquele nome, Muniz Sodré lembrou-se de tê-lo visto em algum lugar naquela noite e, tomando o exemplar do livro que colocara em sua pasta, releu para si mesmo a única dedicatória que o poeta havia feito de seu livro: “Para Ana Luíza. Este mimo de menina que de tanto estudar poesia foi transformada na própria!”

O texto estava quase que ilegível, pois fora feito de afogadilho, minutos antes do trágico acontecimento. O Diretor terminou de ler, e, estendendo o livro em direção à moça, disse:

- Tome! Este exemplar é seu!

Ana Luíza tomou o pequeno volume em suas mãos, manuseou com carinho o exemplar, sentiu a epiderme vibrar e, detendo o olhar na folha de rosto leu a dedicatória ali contida. Uma fortuita lágrima despencou de seus olhos e caiu sobre a assinatura do poeta ao fim da dedicatória.

Recompondo-se, disse para o Diretor:

- É meu sim! Ele foi meu professor de poesia e de vida. Mais desta do que daquela. Aprendi com ele os segredos da auto-aceitação.

- Parabéns! Respondeu o Mestre.

- Não poderia haver melhor professor para você...

Ao que a jovem emendou:

- E que é feito dele? Que lhe aconteceu?

- Não temos retorno ainda da equipe médica, mas, ao que tudo indica, a situação é grave, pois ele foi vítima de um ataque cardíaco.

Ana Luíza engoliu em seco. Despediu-se de todos e, apertando o livro do poetinha de seu coração contra o peito, retirou-se apressada do recinto. Tomou providências para retornar à sua residência, pois em poucos minutos já seria madrugada.

VIII

Nem Tudo Tem Fim

Quando acordou no outro dia, ao pegar o exemplar do jornal do pai, largado relaxadamente na poltrona da sala, Ana Luíza leu a manchete que nunca gostaria de ter lido: “Poeta morre declamando poema de amor”.

O susto foi grande! A jovem ainda tinha esperanças de que ele se recuperaria. Como num filme em preto e branco, toda a história de sua aproximação e relacionamento com ele veio à sua memória. E o que se tornou mais doloroso, foi relembrar que se vestira e se preparara na noite anterior para sua primeira noite de amor na vida. Mas o amor da menina e do poeta teria que ser apenas platônico...

Ana Luíza constatava, naquele momento de dar-se conta da fatalidade, que o mesmo periódico que lhe reaproximara do poeta se incumbira de proclamar o seu afastamento definitivo. E a moça chorou copiosamente ao ler o lead e o sub-lead da matéria, falando de acontecimentos que ela mesma presenciara na noite anterior. Das páginas literárias para as manchetes e obituário do jornal, Alex Guima percorreu meteoricamente sua sina. Também foi assim que deu um salto da vida para a eternidade.

A moça se viu só neste mundo. Afastada do ser amado, sem sequer lhe ter dado o beijo molhado do amor, que seus lábios tanto desejaram; resignou-se por apenas ter sido beijada pelo beijo sereno da poesia, o que, seu coração também poeta, sabia não ser pouco.

Soube, pelo jornal, que o poeta seria velado na própria Biblioteca Nacional, templo da Sabedoria brasileira, por intervenção do Diretor junto ao Ministério da Cultura, que quis, com este gesto, ser solidário à família daquele que morreu fazendo o que mais gostava.

O sepultamento só se daria ao fim da tarde. A jovem vestiu a mesma roupa da noite de autógrafos, agora, não mais com o simbolismo da classe e da elegância, mas, sob o signo do luto e da dor. Passou numa Estação Digital, onde se fazia arte final e plotagem pronta-entrega, e mandou fazer um mini-banner com a seguinte inscrição:

“O poeta sobrevive a si mesmo,

por meio da poesia que dele se originou.”

Ana Luíza

Teve permissão especial da família do falecido, por interveniência do Diretor, para afixar o banner na parte superior do poste da luminária oitocentista que estava ao fundo do caixão. E todos os que passaram por ali, leram sua homenagem àquele que lhe ensinara a ser poeta e mulher.

Ao fim de tudo, depois das emoções saudosas reforçadas pelas múltiplas homenagens prestadas ao poeta, Ana Luíza se retirou do local, achando-se em uma nova noite de sua vida. Caminhou pelo internacional calçadão de Copacabana, sendo tragada pelo fluxo de pessoas notívagas que ali trafegavam e contemplando as miríades de estrelas e as incontáveis areias da praia. Seus olhos passeavam constantes do chão aos céus, buscando, naquele ir e vir indiscriminado, as razões que de agora em diante alimentariam seu coração e pensamento. Mas a noite era escura, embora estrelada; e a praia, de areias claras, porém infinita.

Ao fundo, o barulhar das ondas nos rochedos, e seus pés caminhando lentos em direção ao indefinido horizonte. Mas a visão seguinte, em que perdidos pingüins que deram nos costados brasileiros se arrastavam bem longe de seu habitat na tentativa de encontrar um porto seguro, lhe aqueceu o coração com a perspectiva de que, mesmo no desvio, a vida prossegue quando não falta poesia no olhar.

ALEX GUIMA
Enviado por ALEX GUIMA em 01/07/2007
Reeditado em 13/01/2024
Código do texto: T547744
Classificação de conteúdo: seguro
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