ESTIAGEM

Calor de quase quarenta graus. Lá fora nenhum vento, apenas o mugido de bois que cozinham ao relento, cavoucando a terra em busca de raízes, já que o verde não mais existe. A seca dizima tudo, avança impiedosamente a cada dia, como uma maldição que se disfarça, mas que nunca se acaba. Mata o gado, a plantação e a vontade de viver. Dentro, estão os homens, num marasmo sem igual, entregues à própria sorte. Calados, apenas se olham, nada mais.

Alguns deixam a seca sair da memória e com ela seus males. A bebida parece ser o último recurso. Ali estão nove homens amontoados no pequeno armazém de secos e molhados, àquela altura já desfalcado, com apenas poucas tiras de salame penduradas no varal, exalando um odor forte e apetitivo que chega a dilatar as narinas. No balcão, alguns biscoitos, arroz e pacotes de fubá já mofados. Debruçado sobre ele jaz seu Tomé, incrédulo como ele só.

Vez por outra, o debochado Tomé ainda arrisca alguma piada, como quem quer espantar a tristeza. Mas ninguém ri. A alma está seca demais para sorrir. Apenas olhares rotos de esperança voltam-se para ele, com desdém. Assim a tarde avança lentamente, e, por volta das quinze horas, com muito alarido o silêncio é interrompido. Os homens se entreolham e custam a acreditar que alguém possa perturbar assim, sem mais nem menos o seu momento de pesar.

Na porta, esbanjando benevolência, a figura espectral do velho Salú, mestiço andarilho, com fama de vidente. Chega cansado, maltrapilho e sujo, carregando um saco às costas, que logo cai ao chão, num estrondo seco. Dizem que o velho, quando abre a boca só sabe proferir bênçãos ou desgraças. Poucos chegam-se a ele, ou por medo ou por temor. Do outro lado da rua, um grupo de meninas desalinhadas e pés descalços ficam a tagarelar, cheias de mistério e sorrateiramente espreitam a imagem mística do velho.

Olhando para cada um daquelas faces, o velho Salú parece esquadrinhar o local, sondando os corações, lendo as mentes em desespero. O mal estar parece tomar conta daquela gente sofrida. Alguns enxugam grossas gotas de suor que teimam em escorrer pela face marcada por sulcos profundos em evidente desleixo.

Ainda de pé, no umbral da porta, o sinistro Salú profere em alto brado, como um mantra sagrado:

- Cai a chuva sobre a terra, molha o chão, traz a vida...

- Cai a chuva sobre a terra, molha o chão, traz a vida...

E assim repete infinitas vezes. A voz vai se tornando mais suave, até ficar quase que imperceptível. Os olhos já não contemplam o lugar. Atravessam o pequeno recinto e miram, pela janela escancarada, o horizonte infinito, tórrido e escaldante.

Sem perceber o tempo se esvai, o entardecer se aproxima e eles ali, unidos por uma voz que ecoa profética e tenaz:

- Cai a chuva sobre a terra, molha o chão, traz a vida...

O primeiro a sair é o próprio Salú, que atravessa a porta puxando atrás de si o pesado saco. No pátio, um cachorro magro e sarnento faz a festa entre suas pernas e segue com ele, por caminhos incertos. Ao longe, as meninas sorridentes acompanham quase hipnotizadas a velho desaparecer na curva da estrada. Depois, um a um, os homens se vão, com os olhos fixos no horizonte distante. Introspectivos, levam para seus lares uma mísera centelha de expectação. Fica sozinho, a espreitar pela janela, o descrente Tomé. Tenta coordenar as idéias, organizar os fatos, mas não sabe explicar o que se passara ali naquela tarde, mas notara que ao saírem do armazém, os homens disfarçadamente enxugavam teimosas lágrimas, que esgueiravam-se pelo canto dos olhos. Assim pensativo, não consegue desprender-se do infinito límpido e vê, além, uma pequena nuvem escura que se levanta, tímida e débil.

Oséias Santos de Oliveira - Santa Rosa - RS

oseias.ol@uol.com.br

Professor e Membro da ASES – Associação Santa-rosense de Escritores

CONTO PUBLICADO NA OBRA 103 QUE CONTAM, ORGANIZADA PELO ESCRITOR CHARLES KIEFER - Nova Prova Editora - PORTO ALEGRE RS

Oséias Santos de Oliveira
Enviado por Oséias Santos de Oliveira em 30/06/2007
Código do texto: T547551