Meu primeiro conto publicado no Recanto
                              Em 20/02/2008

              O SONHO DE CHUANG CHOU



 
        Há cerca de 2300 anos a sociedade chinesa vivia um tempo de imensa desordem política, social, econômica, moral. Nessa época, e não por acaso, viveram grandes Mestres cujas obras discorriam sobre o Conhecimento e a Iluminação, com o objetivo de tornar as pessoas melhores. Um desses mestres nos conta, entre muitas outras, a primeira parte da história de Chuang Chou. Quanto à segunda parte, contraface profana, tomei seu relato a meu encargo, a partir das informações do sobrinho coreano de Chuang, o Kim, meu amigo fiel, de alma, apesar de ou por causa das nossas insuperáveis diferenças lingüísticas.
        Chuang Chou, chinês, não aparece descrito como alto nem baixo, magro nem gordo, pobre nem rico, feio nem bonito, apenas Chuang Chou. No entanto, possuía algo que o diferenciava dos demais: vivia sonhando que era borboleta.
        Todas as noites, até o momento do nascer do Sol, ele amava como as borboletas, voava como as borboletas, comia como as borboletas e, nas horas vagas, filosofava com elas sobre o bem, o mal, a vida, a morte, Deus. Não com todas, é claro, porque a maior parte daqueles lepidópteros não se envolvia com tais questões: durante a semana trabalhava duro e, a partir de sexta-feira à noite, saía borboleteando por aí.
        Chuang Chou dormia e sonhava os sonhos de borboleta. Sonhava tanto e tanto e tanto, que já não sabia se era um chinês sonhando que era borboleta, ou uma borboleta sonhando que era chinês, dúvida que não causava sofrimento a nenhum dos dois porque partilhavam do mesmo Conhecimento Essencial: Tudo e todos somos, todo o tempo, apenas o mesmo sonho.

        Na China contemporânea tornou-se, há cinco anos, funcionário de uma das maiores Empresas de Exportação de Pequim, no Setor de Contabilidade. Cultivou desde então e a tal ponto a imagem de profissional assíduo, competente, criativo, que já obteve várias medalhas de Honra ao Mérito e, em agosto de 2007 d.C. foi promovido a Chefe de Secção.
        Assim, Chuang Chou tem todos os motivos para se sentir perfeitamente feliz: chefe de secção em Pequim, num mundo com tantos desempregados. Ele se considera feliz  embora experimentando, já ao acordar, a  permanência de certos desejos esquisitos, que sempre haviam sido saciados somente nos recessos das noites e das madrugadas. Racionalizou então tais desejos, isto é, os manteve sob controle (exemplo a ser seguido por todos os homens de negócios que não os queiram por em risco, aos seus negócios), a fim de preservar as qualidades diurnas do funcionário-modelo, para tranquilidade geral.
        Bem... essa tranquilidade acabou. Na semana passada, recebi e-mail de Kim no qual informa que a família do nosso chinês não deu, a princípio, qualquer importância à sua síndrome de inseto voador, atribuindo-a a excesso de trabalho. Os médicos receitaram-lhe complexo vitamínico; todavia, após enorme susto, agora há grades de segurança em todas as janelas do apartamento no segundo andar. O problema é que a Empresa na qual Chuang Chou trabalha de segunda a sábado, está localizada no vigésimo-nono andar.