O Andarilho - Prólogo
Já não sabia há quanto tempo caminhava, muito menos exatamente para onde rumava. Não sabia o que devia esperar encontrar, ou se é que iria encontrar algo àquela altura. Na verdade, não sabia de nada além de seu nome, Zephir. Seus cabelos acinzentados balançavam ao vento forte do deserto, seus olhos, um amarelo tão incandescentes que pareciam imitar o sol intenso, fitavam o horizonte de areia infinito a sua frente, inexpressivos. Trajava roupas de um tom verde escuro e pequenos pedaços de uma armadura negra, bastante leve, quase como se não oferecesse proteção alguma e estivesse ali apenas de enfeite. E consigo nada carregava além de uma montante nas costas, grande o suficiente pra ter metade do seu tamanho. Demasiadamente larga, com uma safira gigantesca incrustada no centro pouco acima do punho. Parecia tão pesada que dois homens precisariam fazer um grande esforço pra segurá-la, mas ele a carregava nas costas sem esforço algum, como se mal tivesse peso. Ela era a única coisa que importava pra si, tinha uma vaga sensação de que não a possuía por muito tempo, mas não lembrava de ter vivido antes dela, sua vida tinha começado a partir do momento que pôs suas mãos nela e o resto não fazia diferença alguma.
Um ruído distante chamou sua atenção, se sobrepondo ao assobio insurdecedor do deserto. Ele parou olhando para trás. Nada além da imensidão do mar de areia, até onde suas vistas conseguiam alcançar. Tinha quase certeza que era o único ser vivo presente ali. Continuou a caminhar, decidindo ignorar, devia ter sido pura impressão.
E caminhou. Dez minutos, três horas, metade de um dia? Não sabia dizer, o tempo parecia não existir ali, o sol forte nunca mudou de posição ou intensidade desde que se recordava, e isso não o incomodava. Devia continuar andando, era importante continuar, sabia disso, mas não o por quê.
E então, subitamente, a areia se deslocou pra todos os lados como uma avalanche descomunal sem direção, um sibilo sinistro quase estourou seus tímpanos. Uma serpente gigantesca surgiu a poucos metros adiante, exibindo presas enormes de cerca de um metro e meio, escamas douradas como ouro derretido. Parecia furiosa. Ou faminta. Talvez ambos. Investiu em cima dele numa questão de milésimos, feito surpreendente para algo daquele tamanho, levantando um mar de areia com o impacto.
Quando enfim se dissipou, depois de quase um minuto, ele podia ser visto a uns dez metros de distância do ataque e da criatura. Impassível, inabalável. Ele nem sequer sabia como tinha parado ali, tinha agido por reflexo, se movendo tão rápido que sequer tivera tempo para pensar ou processar o que tinha acabado de acontecer. Estava prestes a cogitar suas opções de fuga e continuar sua jornada quando a ouviu. Era um som que ele não captava com os ouvidos, mas que pareciam ecoar dentro do seu próprio ser, como um segundo pensamento que não vinha dele. Parecia uma canção desafinada estranha num ritmo quebrado, não fazia ideia do que era, mas pôde entender.
- Me permita o controle. Deixe-me saborear o que há muito não sinto. Chegou o momento, Zephir.
E por algum motivo, ele sabia o que fazer. Relaxou o corpo, respirou fundo, fechou os olhos. Quando tornou a abri-los, eles já não eram mais amarelos, tinham se tornado negros. Tão negros que pareciam devorar a escuridão e absorvê-la pra si. Tinha um aspecto antigo, como jóias vindas direto das profundezas do inferno. Ele contorceu a boca num sorriso macabro, e saltou socando a serpente colossal que não tinha perdido tempo e tornava a investir. Ela desabou para o lado, levando mais areia pros ares, e por lá ficou, atordoada, por alguns segundos até se erguer novamente. E dessa vez, a fúria era perfeitamente clara quanto água cristalina em seus olhos.
- Há quanto tempo não sinto sangue pulsar, há quanto tempo tenho sido feita prisioneira no aço...?
Ele sussurrou, num tom calmo, sua voz era estranhamente macia e aguda.
E a serpente tornou a avançar, ainda mais rápida, mais mortífera, mais brutal. Tudo para dar de encontro com um único golpe da sua montante, sacada tão rápido quanto a luz é capaz de percorrer distâncias, e, além de partir sua cabeça ao meio, teve força suficiente para forçar todo aquele corpo gigantesco a tombar na direção contrária.
Ele guardou lentamente sua montante às costas, com sangue da criatura escorrendo dos seus cabelos, e voltou a caminhar como se nada tivesse acontecido. Outra vez impassível, seus olhos voltando ao amarelo de origem e pouco a pouco tornando a serem inexpressivos, alheio ao ao cadáver gigantesco ao seu lado condenado a apodrecer. Era como se nem o visse.
Longe dali uma garota de cabelos cacheados e vermelhos observava com ar de divertimento, sentada na areia, com olhos não mais redondos que seu rosto, que por sua vez carregava um sorriso torto malicioso.
- Finalmente as coisas vão voltar a serem interessantes por aqui.