Um bardo entre mercenários

“Elas desaparecem.”, disse o homem barbudo.

“Hum?”, indaguei, desperto de um devaneio qualquer.

“As enguias...: no outono, elas desaparecem...”, explicou.

Olhei lentamente para baixo e divisei o cadinho de metal onde se fazia presente minha refeição: um ensopado asqueroso – e pouco tocado – de enguias. Perguntei-me, amargamente, o que era pior naquela situação: a comida, o charco úmido onde me encontrava, a companhia sórdida dos mercenários com quem eu estava ou a missão (trabalho?) suicida a que tinha sido incubido. Não conseguindo chegar, de imediato, a um consenso, decidi que o melhor a fazer era responder ao homem.

“Como sabe disso?”.

“Nasci num lugar assim como esse”, retrucou, sombriamente, enquanto movia a cabeça e apontava a paisagem a nossa volta com o queixo. “Minha mãe morreu logo quando me deu à luz, veja... E meu pai ficou muito, muito irritado...”. Ele levantou, fez algo que me pareceu ser um exercício de alongamento, e, logo depois, aproximou-se da panela ainda fumegante. “Muito irritado, entende? Me atirou no rio.”, continuou, enquanto servia-se de uma posta particularmente repugnante do ensopado. “Me atirou no rio e foi embora!”, completou.

Ergui as sobrancelhas para isso. Atirado no rio? Que tipo de monstro faria uma coisa dessas com um recém-nascido? O grandalhão pareceu se divertir com meu espanto.

“Mas não se preocupe, meu amigo: era outono. As pequenas diabinhas não estavam lá para acabar com seu companheiro aqui.”. Em algum lugar incerto alguém deixou escapar um riso. O barbudo olhou em volta tentando encontrar o autor do escárnio, mas não o encontrou. “Dias depois fui encontrado por este brejeiro que vivia pelas redondezas. Ele me achou escancarado num buraco úmido qualquer, quase morto. Sentiu pena de mim e resolveu me criar como seu filho.”. Dessa vez alguém soltou uma risada bem menos contida. O barbudo tocou no cabo de seu pesado machado e grunhiu animosamente, novamente em busca do autor do gracejo. Eu, particularmente, demorei alguns instantes para assimilar a versão do nascimento do meu colega de jornada, e, vendo que não fazia o menor sentido tentar convencer o obtuso grandalhão de como ela era absurda – e parecendo, em contraste, bastante convencido das implicações de o que deixar patente minha opinião sincera traria para mim –, assenti e lhe oferei meu mais teatral sorriso.

“Que sorte, não é? Um viva ao outono!”

“Viva!”, concordou, interrompendo brevemente sua busca pelo autor da risada com um meneio de cabeça que julgou solene. Como não conseguiu identificar, apesar do esforço, quem foi que fez o gracejo, deu de ombros e voltou a pousar sua atenção sobre mim.

“E você, músico? Onde nasceu?”.

“Num castelo... Nascido e criado.”.

“Que castelo?”.

Gabriela...

“Um bem distante...”.

O grandalhão pareceu digerir a informação em sua cabeça pequena e suada.

“Nunca vi um castelo.”, comentou, enquanto limpava as mãos na sua barba. A gordura do ensopado escorria pelos fios ruivos, deixando-me enojado. Contudo, ele não pareceu se importar com o fato de eu não estar à vontade para falar de onde vim. Ao invés disso, apenas acrescentou: “Dizem que é feito de pedras. Onde cresci as casas são de palha e musgo.”.

“Habitações formidáveis, sem dúvidas”, deixei escapar, impensadamente.

“Você acha?”, inquiriu, surpreso, de sobrancelha erguida.

Tive que rir disso. A estupidez do sujeito parecia só não ser maior do que seus músculos, sua barba e o grotesco machado de guerra que trazia consigo. Ao invés de respondê-lo, mudei de assunto.

“E como o filho adotado de um brejeiro veio parar em tão formidável cortejo?”, perguntei, contemplando nosso grupo com um gesto de mãos.

“Salteador de estradas. Ofereceram-me duas opções: isto ou a corda. As duas pareciam péssimas, mas aqui pelo menos meu pescoço continua preso à cabeça...”, respondeu, bastante bem humorado, em meio a esfregos de mãos e arrotos guturais.

“Mas como você chegou a ser salteador, para começar? E o seu pai adotivo?”.

“Matei-o... quando... fiz... diabo... onze anos.”, disse entrecortadamente enquanto lutava com uma espinha presa entre algum par de seus dentes tortos e amarelos. “Ele tentou pôr as mãos em mim, certa noite, então cortei o pau murcho dele fora com uma faca e enfiei-o goela abaixo. Deixei-o sangrando, colhi os cobres que consegui encontrar e parti.”, completou, com a tranquilidade de quem discorre sobre a coleta de impostos ou a possibilidade de chuva durante uma noite de verão.

Um calafrio percorreu minha espinha: é com esse tipo de gente que estou dividindo o chão, todas as noites, aqui, no meio do nada? Toquei na corrente que Gabriela me dera, há muito, e a beijei. O grandalhão pareceu perceber meu desconforto com relação ao seu parricídio e riu de deleite.

“Assustei você, músico?”. Gargalhou. “Não devem ter dito isso a você enquanto o engordavam com mel e vinho no seu precioso castelo, mas o mundo está cheio de monstros.”.

Eu começava a esboçar qualquer resposta quando a trompa soou.

Trazendo, com ela, os gritos.

Literatura de Fantasia
Enviado por Literatura de Fantasia em 09/11/2015
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