Massacre numa colina qualquer

“É ainda pior do que nos livros” – disse Gil’branth, depois de acalmar sua égua e avaliar a paisagem encosta abaixo. Era sua primeira missão “de campo”, e, embora houvesse ansiado pela oportunidade de vestir sua armadura de malha para além dos muros da Fortaleza, não conseguira evitar o vergonhoso – mas, felizmente, secreto – calafrio que percorreu sua espinha.

“Como se você já tivesse lido alguma maldita porra de um livro, Gili” – retrucou William, o líder do destacamento. Como Gil’branth, ele também acabara de apear sua montaria, e, depois de avaliar brevemente o local, sentiu uma involuntária – e bem ocultada – apreensão: parecia a pintura obra-prima de algum artista inebriado de loucura e angústia: o chão era negro, empoeirado e rasgado a intervalos irregulares por fendas que emitiam vapores translúcidos de algum gás desconhecido e de aspecto mortífero. A rara vegetação era seca, espinhosa e parecia se contorcer – em ângulos obcenos – ao longo de sua própria extensão. E, embora a pálida mácula de luz parcamente visível que, do alto do céu, se insinuava timidamente por entre as nuvens escuras anunciasse que ainda se tratava do meio dia, um homem sem treinamento poderia jurar estar diante do crepúsculo.

“Ali” – disse Rasca, apontando, com o queixo, para aquilo que todos já tinham visto, mas sobre o qual nenhum ainda se atrevera a comenta: à distância, percebia-se uma pequena aglomeração, claramente humana, de tendas esfarrapadas.

“Quantos? Vinte?” – perguntara Gili, enquanto se esforçava para avaliar a quantidade de Adoradores presentes no decrépito acampamento.

“Trinta. Talvez quarenta. Apenas dez devem ter condições de lutar. Metade disso deve ter alguma arma de metal. E provavelmente nenhum sabe direito como usá-la...” – respondeu Rasca, depois de cerrar os olhos e avaliar mentalmente o assentamento. Era um homem lacônico, de olhos muito azuis, cabelos curtos e muito loiros, uma cicatriz que dividira sua bochecha esquerda obliquamente num sulco ligeiramente profundo e personalidade sombria. Tinha o dobro da idade de William, mas era o segundo no comando. Sua voz não traía nenhuma emoção – boa ou ruim.

“Será um massacre”, murmurou Gili, mais para si do que para os outros.

“Será.” – concordou William. Seu rosto era uma máscara. “Cavalos?” – inquiriu a Rasca.

“Não. Burros e algumas éguas, mas nenhuma de montaria." - retrucou e, após um profundo suspiro, concluiu: "Não têm como fugir.”.

“Pagãos estúpidos.” – sibilou William, entre os dentes, enquanto abria e fechava sua mão por sobre o punho da espada. “Acha que nos viram?”.

“Não. Sem vigias.”.

William aquiesceu lentamente. Abriu a boca e, por um instante, pareceu que ia falar algo, mas nada disse. Passou um momento refletindo, e, depois suas ideias parecerem chegar a um consenso, comentou:

“Se os atacarmos agora, somos capazes de flagrá-los ainda depenando as galinhas que pretendiam comer no almoço.”.

Rasca aquiesceu. “Agora parece tão bom quanto qualquer hora. Será rápido.”.

Alguém murmurou uma aprovação. Outro cavaleiro incentivou o líder com um grunhido. Gili se limitava a olhar o acampamento. William avaliou a situação por um último momento. Por fim, limitou-se a dizer:

“Assim será.”.

Desembainhou sua espada e, sem dizer mais nenhuma palavra, esporeou sua égua encosta abaixo. Frações de instantes depois, os outros nove cavaleiros seguiram o exemplo de seu líder.

Primeiro houve o barulho dos cascos riscando a terra.

Depois, gritos.

O som opaco do metal rasgando pano e carne.

O baque surdo dos corpos sem vida contra o chão.

O crepitar das chamas se alastrando por palha e lona.

E, por fim, o silêncio.

Horas mais tarde, oito soldados reuniam os cadáveres de quarenta e dois esfarrapados Adoradores numa pilha a que, sem cerimônia, Rasca atearia fogo – e a que William, do alto de sua montaria, observaria silenciosamente .

Ninguém disse nada sobre o fato de haver crianças entre os mortos. Ou mulheres com seus filhos ainda embalados contra seus seios num último e eterno abraço. Ou de terem sido velhos aqueles que os tentaram defender, e não com lâminas do precioso aço do Rei – mas com os bordões de madelha podre que usavam para se sustentar debilmente no chão.

E, principalmente, ninguém reparou que, num arbusto não muito longe dali, um par de olhos assustados observava o fim de tudo que representava sua vida em meio a soluços e lágrimas mal contidos. Ninguém sabia – nem poderia saber – àquela altura, mas o primeiro fio de uma teia de acontecimentos que motivaria os terríveis anos que se sucederiam acabara de ser tecido.

Porque o destacamento do Capitão William tirou quarenta e duas vidas naquela tarde.

Mas deveria ter tirado quarenta e três.

Literatura de Fantasia
Enviado por Literatura de Fantasia em 09/11/2015
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