O Rapa-Vidas
O pós-guerra era uma chuva de cinzas e neve. O sentimento de alívio que pairava sobre o panorama da parcial destruição dos Treze Reinos, não se via tão sincera na face ferida do rei Süda Wierny III Paturnary. Sua senhora, a rainha Roseri, insistira para que seu rei não sublevasse sua espada, insistira que havia homens o suficiente para aquela que seria a última batalha da Guerra dos Treze, mas para Süda, um rei que erguesse sua espada pelo seu povo, era um rei por quem o povo levantaria sua espada. A família Paturnary havia vencido a guerra, mas a morte sempre foi voraz, ambiciosa, ávida e implacável, ela havia se tornado a real vencedora e a vida do rei Süda estava prestes a ser tomada como seu troféu, não mais valioso do que qualquer outro.
- Há batalhas mais difíceis, meu mestre – disse o lagarto branco com o corpo caído sobre a neve e a lama. Südaha Jaht, o único lagarto de cinco patas que existira, era uma das centenas de espécies que foram criadas nas Fortalezas de Jaha, a terra das montanhas cujo reinado pertencera à Rainha Amálgama Eleda II da família Hidrargírio. O corpo da matriarca real, jazia ao lado da espada de Süda, dentre centenas de milhares de corpos espalhados pela neve.
- Sei que sim Südaha, mas infelizmente as vitórias custam muito - disse o rei -, nem um milhão de barris com dentes de ouro cervante poderiam pagar o preço.
Süda Wierny fitou os olhos verdes do lagarto com pesar, os ferimentos em seus corpos se abriam em tantos lugares que Südaha pensou se teriam mais tempo, ele sabia que não. O silêncio pesou em suas bocas, amargo como veneno de corvo, para Süda os dois se encontrariam no outro mundo após suas mortes, onde eles cantariam sobre a batalha e teriam bons pensamentos sobre o futuro dos Treze.
- Não há outro lado para mim, mestre – grunhiu o lagarto com a pele coberta pelo seu sangue escuro, como a paisagem de uma caverna. -, sou uma criatura provinda das trevas, mestre, meu cerne não pode adentrar os Jardins de Cima.
Infelizmente Süda não poderia discordar de Südaha, não havia lugar para criaturas como ele nos Jardins de Cima, era o que as lendas tradicionais contavam. Seu trabalho era servir o teu mestre. Juntos eles nasceriam, juntos eles morreriam, mas não juntos eles ficariam – dizia uma das lendas -, e quando Süda ouviu o gecar da garganta de Südaha, percebeu que a lenda poderia estar certa afinal, o som já não era o mesmo, antes ele entoava os cânticos das Fortalezas de Jaha com um estalo maior do que um cachalote. Mas Südaha, assim como o teu mestre, já não pertencia totalmente ao mundo dos vivos.
- Amalü será uma bela madama, assim como sua mãe – ponderou o rei entoando as palavras como se fossem sagradas, e para ele, elas eram. – Sünine, meu filho, será um homem audaz, corpulento como seu pai e governará com ardileza e estima. Rosira se orgulhará de cada passo de nossos filhos. Essa é a benção de um pai em seu leito de morte.
- Eu gostaria de ter tido asas para levantar os voos mais belos – choramingou o lagarto com seus olhos verdes desfalecendo. -, mas nem todos são feitos para os céus.
Seus olhos ficaram escuros, não houve despedida, suas almas partiram irremediavelmente com o soprar da brisa.
A carruagem já esperava pelo homem, adornada pelas luzes das estrelas e conduzida pelo cocheiro da morte, o Rapa-vidas. O homem não sabia quem era, quem ou se havia sido algo, tampouco seu nome, mas sabia que lugar era aquele. Viu então uma criatura branca como uma nuvem, asas amplas, brilhantes e cinco patas, ela dançava no céu. O homem não sabia quem ou o que era aquilo, quando viu os olhos verdes da criatura alada fixarem-se nele, sentiu que o conhecia, sentiu que tinha uma conexão com aquele momento. Um pensamento reconfortante lhe veio à mente, ardente e genuinamente:
O céu é um lugar para todos nós.