Eterno Retorno

O Big Bang, surgimento e expansão em velocidade inconcebível de um tudo-que-existe que cria seu próprio espaço e tempo na medida que infla, transformações instantâneas e paulatinas de estruturas e leis internas que se desenvolvem, se auto regulam e desaparecem na medida que o processo se define em seus próprios desdobramentos, elementos energéticos cabíveis num agora que determina suas interações e seus produtos, a expansão até as ultimas possibilidades energético-gravitacionais, quando o processo se inverte e inicia sua fase de retração, com consequentes efeitos energéticos-espaciais-temporais inimagináveis, até a contração final num ponto de densidade infinita e espaço nulo, seguida de nova explosão e novo universo-tempo, e assim ad infinitum, processo descomunal que determina a ocorrência incessante de todas as possibilidades de interações sequenciais da matéria (ou da energia), se repetindo infinitas vezes em quaisquer de suas versões cabíveis, de modo que assim como ele escolheu esse exato mictório para descarregar seus primeiros trinta e sete minutos de cerveja, em outras possibilidades da matéria-energia no espaço-tempo ele estaria (e esteve e estará para sempre) mijando naquele outro da esquerda, embora o entupimento e a consequente piscina infeliz de mijo devessem necessariamente limitar suas ocorrências no eterno retorno, ainda que o infinito seja sempre o infinito e em todo caso sempre haveria as realidades de mictórios da esquerda não entupidos. Enquanto lavava e secava as mãos pensava e suspirava com uma nostalgia metafisica nos agoras alternativos em que estaria em casa ouvindo jazz e terminando seu livro (infinitas possibilidades de qual) e mandado a Aline resolver o mistério  da santíssima trindade ao invés de ter aceitado sair e penar numa mesa de bar da moda com outros dois casais, seus análogos de outras realidades talvez tivessem menos azar nas causalidades impenetráveis que lhe impingiram esses Renato/Luciola e Alexandre/Decote Vermelho, assim que tinha que escolher entre memorizar o nome ou o resto, mas aqui estava, se esgueirando entre as cadeiras de um hipster envergando um bigodinho Clark Gable e uma fitinha nosso-senhor-do-Bonfim, marcando sua religiosidade popular num meio em que o ateísmo e o agnosticismo eram too mainstream, e de uma garota com cabelo parte comprido e parte raspado que orgulhosamente sustentava uma armação de óculos vermelha sem lentes e a tese de que o cinema de Eisenstein pós Encouraçado Potemkin era superestimado, com a possível exceção de Alexander Nevski, coisa que ouviu muito de passagem, uma vez que a mera identificação do tópico abordado lhe causou a ansiedade de vencer logo o obstáculo e o consequente descuido e atabalhoamento que fez com que empurrasse violentamente a cadeira do Clark Gable magricela, que sibilou como uma surucucu, o que pelo menos lhe proporcionou um pouco de alegria ao lembrá-lo dos tempos de meninice na fazenda do tio Vasconcelos, sensação que não durou muito ao aterrissar em sua cadeira e receber logo na cara os primeiros respingos de saliva do intenso debate que se formara sobre a realidade ou não dos aspectos ostentatórios das cafeteiras nespresso. Chamou o garçom com cara de cansado e pediu mais um chope e um bloody mary, menos bloody mais mary por favor, o que foi preguiçosamente e resignadamente anotado num artefato eletrônico engordurado. Uma mosca dava mostras de adejar exclusivamente ao redor de sua mesa, o que pareceria legítimo não fosse o caso dele ter se esgueirado penosamente até o sanitário e ter constatado a realidade humana similar das outras, brincou com a ideia de que a mosca sempre esvoaçava a cabeça do orador do momento e procurava as respectivas moscas das outras mesas, quando percebeu que estava sendo interpelado já pela segunda vez, Decote Vermelho lhe perguntava algo que terminava com Não é verdade Bruno? procurar o olhar de Aline era inútil, ela já o conhecia o suficiente para se divertir vendo-o ser fisgado e pescado de repente de seu oceano mental particular, mas era a única talvez a perceber seu olhar de badejo estupefato com o que lhe exigiam assim molhado e pendurado pela boca, Ah sim, claro, é bem possível, mas pelas expressões faciais que obteve com isso era fácil conceber a infinitude de seus análogos de outras configurações espaço-tempo que tinham/têm/terão se dado melhor, a única a exalar satisfação era sua namorada, o que talvez fosse a resolução do mistério do porquê desses encontros absurdos.

      Dava o primeiro gole em seu drinque excessivamente carregado de pimenta do reino quando dois sujeitos entraram gritando e ostentando uma pistola e um revólver, sabia diferenciar porque uma era do James Bond e o outro do Clint Eastwood, carteiras e celulares, o de sempre, não chegou a conseguir visualizar as moscas dos assaltantes mas achou que o momento era excelente para analisar as personalidades reais das pessoas de sua mesa, Renato só faltava aliviar as tripas ali mesmo, Luciola parecia prestes a rebentar num ataque de riso histérico, Alexandre procurava empunhar um olhar épico mas suas mãos tremiam e suas pernas não paravam de bater no tampo da mesa, foi o primeiro a depositar obedientemente seus despojos morais no saco plástico, não teve tempo de escrutinar Decote nem Aline que já era sua vez, entregou sua carteira e seu telefone a João, podia bem ser esse o nome do ladrão, pensou nas outras realidades em que ele é que estaria arriscando sua liberdade e ameaçando a vida dos tomadores de aspirina e de florais de Bach em troca de quinquilharias eletrônicas e poder de aquisição de comida, drogas ou satisfação de consumismo de classe da qual ele fosse excluído, olhou para Aline, que lhe devolveu o olhar e que parecia mais inquieta com a profundidade de realidade paralela em que ele estaria imerso deslizando tranquilamente enquanto o caos grassava na superfície, o garçom não parecia nada cansado enquanto levava uma coronhada Bond e caía por cima do vaso horroroso de samambaia, mas ele era João, não podia perder mais tempo, melhor deixar o mezanino pra lá, com isso tudo e mais o restaurante de ontem já tinham o bastante, daria pra curtir uma semana de praia com a Raquel. No sucesso da fuga de moto, já longe dos bairros chiques e entrando na periferia, a adrenalina baixava e lembrou-se do livro de ficção científica que tinha lido, que falava de infinitas realidades que se repetiam no tempo infinito, em infinitas delas ele talvez estivesse bem vestido e fumando tranquilamente do lado de fora do mesmo bar que acabara de assaltar, talvez se dignasse a dar um cigarro e acendê-lo com seu zippo, o mendigo Bruno o agradeceria humildemente.
Dener Pastore
Enviado por Dener Pastore em 23/10/2015
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