O inimigo da Princesa Dilene

O INIMIGO DA PRINCESA DILENE
Miguel Carqueija


Protegido por um esfarrapado chapéu de palha, sentado numa encardida banqueta, o cantador seguia cantando com voz enjoativa, uma caixa de papelão aberta a seus pés para receber as inexpressivas esmolas, os dedos fazendo soar monotonamente a viola. Atrás dele, a cinzenta muralha; à sua direita, o imenso portão da cidade.
Pessoas iam e vinham, montadas ou não, mas poucas jogavam alguma moeda. Provavelmente, se a voz dele fosse mais agradável, obteria mais sucesso.
Nesse ponto, porém, uns cascos de cavalos se aproximaram; distraído com uma balada que cantava um caso de amor trágico, o jogral só percebeu quando viu as pernas desmontadas que se aproximavam:
— Que está fazendo aqui?
— Senhor, eu canto uma canção de amor...
O homem alto, rijo, de bigode e chapelão, armas na cintura, prosseguiu com voz forte:
— Não se permite que mendigos façam ponto na entrada da capital. Não viu este cartaz?
O homem olhou para a placa na muralha e respondeu com voz trêmula:
— Senhor, eu não sei ler!
— Pois já está na hora de aprender! Alphonsus, tire esse verme daqui!
— É pra já, senhor!
Calistro estava acompanhado por seis homens, inclusive seu primo e secretário, Abelardo. O oficial-de-escolta Alphonsus, que desmontara junto com Calistro, ergueu o chicote:
— Você ouviu, cão! Vá saindo!
— Senhor! Calma, eu já vou! Deixa só eu recolher minhas coisas!
— Agora!
O braço moveu-se para desferir uma chicotada, mas foi seguro em pleno ar.
— O que...
— Parem imediatamente! — exclamou uma voz feminina, com energia. — O que se passa?
Todos do grupo observaram a amazona que chegara com uma escolta de três homens e uma mulher.
— Princesa Dilene! — exclamou o líder.
— Sim, eu sou a Princesa Dilene Pérola, Primeiro-Ministro Adriano Calistro. Perguntei o que se passa. Por que iam chicotear esse homem?
— Alteza — respondeu o Primeiro-Ministro, deliberadamente calmo mas fervendo por dentro — a lei do nosso reino proíbe a mendicância nos portões da capital. Não importa que ele ofereça um canto horroroso em troca das moedas.
Dilene sorriu e desmontou.
— Bem, nós não podemos mudar a lei mas podemos aplicá-la com sabedoria. Gian, importa-se de levá-lo na garupa? Vamos tirá-lo daqui.
— Princesa! — balbuciou o cantador. — Eu não poderia...
— Conversamos depois. Não vamos contrariar o chefe do governo, não é?
Havia ironia nas palavras da princesa. Quando ela encarou Calistro, havia desprezo em seu olhar e ódio nos olhos do seu inimigo. Contudo, este sabia ser hipócrita quando lhe convinha:
— Princesa Dilene, para que dar carona a este trapo humano? Além de tudo está sujo... vai submeter seu oficial...
— Tem razão, ministro. Isto não seria conveniente. Gian, ajude-o a montar no meu cavalo.
— Quer mesmo que eu faça isso, Princesa? — Gian sabia que era uma pergunta retórica; já estava acostumado às idiossincrasias de Dilene.
— É claro. É o mais lógico, pois eu peso pouco, para que sobrecarregar o seu cavalo?
— Permita-me observar, Alteza — interveio Calistro — que a uma princesa não convém tocar ou deixar-se tocar...
— Não me importo de tocar em seres humanos, Calistro.
— O Rei e a Rainha não aprovarão...
— Eu me entendo com eles.
— Princesa, eu não sou digno... — balbuciou o cantor.
— Tolice, homem. Discutimos isso depois, agora suba e vamos embora. Já estamos chamando muita atenção!
Os homens do ministro murmuravam. Dilene voltou-se para um deles — o do chicote — e indagou de chofre:
— O que estão dizendo?
Nesse momento o broche furta-cor que ela usava pendurado no pescoço rebrilhou com as cores do arco-íris. O homem recuou, assustado. Aquele era o famoso broche de proteção que se dizia terem as fadas presenteado a princesa quando ainda criança. Esse objeto e mais a imponente cruz dourada, bordada no manto azul da jovem, causavam terror nos esbirros de Calistro. Nele mesmo não, pois o primeiro-ministro tinha a coragem dos facínoras.
— Nada não, Alteza — balbuciou o guarda Alphonsus.
— Fique quieto, Percival — disse Calistro, avançando dois passos e encarando a princesa.
— Alteza, permita-me lembrar que este homem, se vier a reincidir, deverá ir para a masmorra.
— Acredito que há crimes piores do que o que ele cometeu, e que jazem impunes. Em todo o caso ele não tornará a fazer ponto aqui. Com licença, Primeiro-Ministro.
Dilene montou em seu lindo cavalo branco de imensa crina e, com o menestrel na garupa, afastou-se rapidamente, seguida por sua escolta.
Calistro montou também e chamou o seu primo:
— Venha cá, Abelardo. Preciso falar com você. E vocês me esperem!
Afastaram-se os dois, com seus cavalos, da muralha. Abelardo não tinha a imponência assustadora de abutre do primo; antes era um bonitão com jeito cínico. Naquele momento parecia irônico:
— Acho que ela ganhou esse “round”, Adriano.
— Pode até ser. Pequena intrometida! E fica circulando por aí com roupa de equitação...
— Ela é uma pedra no seu sapato, não é?
— No meu e no seu, Abelardo, não esqueça disso. Você e eu estamos no mesmo barco.
— Mas é claro, não é? E o que é que você pretende fazer?
— Por ora nada. O que a pirralha fez? Salvou um reles pé-rapado de levar umas merecidas lambadas. Se isso a faz feliz, que seja. Posso aguentar que ela me contrarie nas pequenas coisas. Agora, quando ela começar a me contrariar nas grandes...
— O Rei e a Rainha não podem cuidar dela? Se você falar com eles...
— Não é tão simples assim, amigo. Veja bem, os monarcas são muito fátuos e só se importam mesmo com as frivolidades da corte. Desse modo eles deixam a administração do reino comigo. É claro que eles têm a filha na conta de desmiolada. Mas é a filha deles, não é? Eu nunca conseguirei que eles se coloquem a meu favor contra ela. Isso se chama política, meu caro. Vamos deixar a coisa como está.
— E se a Dilene começar a incomodá-lo demais?
— Ela é a Princesa e muito benquista pela ralé. Não será fácil bater de frente com ela; temos de resolver nos bastidores. É claro que não posso agir diretamente, nas circunstãncias atuais, mas acidentes acontecem...
— Seria uma pena, afinal ela é tão bonita...
— Qual! Tem muita mulher bonita no Reino da Névoa, sem ser problemática como essa princesinha... e sei quem a fez virar essa pretensa paladina dos pobres e oprimidos. Foi aquele seu preceptor, aquele frei santarrão...
— Mas Adriano, mesmo que pareça um acidente, as consequências para o reino...
— Eu sei e é por isso que só usarei esse recurso em último caso. Ela é filha única, o reino perderia a herdeira. Provavelmente o trono iria para um dos sobrinhos do Rei Augusto. Mas, como eu disse, é uma hipótese remota. Por ora vamos esperar e ver até onde irá a audácia dessa fedelha atrevida.
Enquanto isso, tendo entrado na cidade com sua escolta e seu carona, a “fedelha atrevida” desmontou numa pracinha, onde deixou o cantador, depois de ouvi-lo cantar um pouco. Deu-lhe algumas moedas (que poderiam sustentá-lo por uma semana) e recomendou:
— Por favor, evite ao máximo essa corja do primeiro-ministro. Eles não são vistos nas ruas secundárias. Qual é mesmo o seu nome?
— Julius, para a servir, Alteza. Nunca poderei agradecer o bastante o que fez por mim.
— Pode, sim. Aprimore o seu canto, faça uns gargarejos — disse ela, ligeiramente sarcástica. Afinal, a “performance” de Julius não era lá essas coisas.
Ela deu-lhe um beijo de despedida e o rapaz, meio incrédulo, afastou-se pelas vielas. Ela voltou a montar em seu cavalo branco:
— Vamos, Floco de Algodão.
O grupo real partiu então e Dilene conduziu seus companheiros até um coreto, lugar ideal para uma conversa antes de penetrarem no palácio. Este, parcialmente oculto por brumas, já era avistado ao longe. As pessoas do povo local cumprimentavam sempre a princesa, já acostumadas com a sua cordialidade; os escoltadores também eram bem populares.
Tendo deixado os cavalos pastando na grama e recostada à balaustrada do coreto, ela pediu atenção dos seus guardiães: Gian, Usher, Telmo e Lizette.
— Vocês viram o que aconteceu. Não é a primeira vez que eu troco farpas com esse canalha e isso só vai piorar daqui para a frente.
— Você é a Princesa — disse Lizette. — Você é mais do que ele!
— Não é tão simples assim. O governo do país está com ele, eu como princesa estou acima dele em teoria; na prática é muito dificil enfrentá-lo enquanto meus pais acreditarem nele.
— O que pretende? — indagou Usher, um homem gordo, grande, com vastos bigodes.
— Isso depende do que vier a acontecer. Esse homem é muito inteligente para bater de frente comigo, pois arriscar-se-ia a perder o favor dos meus pais.
— E ainda tem Fritz... — lembrou o sardento Telmo, o mais jovem dos guardas da Princesa.
Fritz era um dos magos do reino, mas a sua fama era dúbia e sinistra. Corria a boca pequena que Calistro o visitava à noite, com frequência. O que os dois tratavam era um mistério.
— Eu sei disso e também não confio nesse mago — observou Dilene, e com um suspiro continuou:
— Só lhes dou um aviso, meus amigos: preparem-se para o futuro que virá. A nossa luta será dura, perigosa e prolongada.




NOTA: A Princesa do Reino da Névoa aparece pela primeira vez no poema "A Princesinha", aqui publicado em 9 de outubro de 2015.
Rio de Janeiro, 10 a 20 de outubro de 2015.

(imagem pixbay)