O Espólio da Baía Arcana

Os vassalos a queriam morta.

Qualquer um deles não pensaria duas vezes antes de empurrá-la para a doce liberdade do mar, vestida de nada além do sangue derramado pela fenda que fariam em sua garganta.

Ele não.

Não podia, não conseguiria nem se quisesse. Por mais que achasse que aquela era a única solução.

A pilhagem à Baía Arcana fora uma decepção em todos os sentidos. As muitas histórias sobre as douradas riquezas das chamadas filhas do mar revelaram-se tão verdadeiras quanto os alertas sobre o risco de se cair na beirada do mundo. Os casebres abrigavam pessoas pobres, arredias, quase selvagens. Mataram todos eles, exceto uma. Matar não era costume do grupo, é preciso que se diga... a menos que fosse lucrativo. Talvez só o tenham feito por causa da frustração que se apoderou de cada um deles ao constatarem que as vítimas eram talvez o povo mais pobre que já tinham encontrado.

De início estavam receosos. As histórias não falavam apenas de riquezas, mas também da origem dela: um estranho poder antigo manejado por aquele povo afastado do mundo conhecido. Mas diante o cenário que encontraram – barracos de madeira velha, algumas ferramentas primitivas, quase nenhuma comida, ossos velhos e cães, gatos e pessoas igualmente magros e doentes – não é de admirar que o medo tenha recuado como uma onda depois de quebrar. Se fossem tão poderosos, dissera o capitão, não estariam vivendo nessa miséria.

Foi ai que começaram a matar. Velho, jovem, mulher, criança, recém-nascido, animal, não ofereceram clemência a ninguém.

Exceto a uma, que recebeu uma misericórdia tão irrefletida e aleatória quanto a sentença de morte dos demais. Era uma garota pálida, com talvez sete anos de idade e longos e ondulados cabelos brancos. Em sua testa, uma estranha tatuagem: um V, com um pequeno círculo precisamente desenhado em cada uma das três extremidades. Apenas ela, vestindo um trapo sujo e rasgado, foi poupada da violação e da morte. Nem mesmo os pequenos objetos que pareciam ser de algum metal que poderia ter algum valor no Mercado de Mastro Forte – encontrados numa espécie de altar – foram coletados.

Enfrentaram uma grande quantidade de infortúnios desde que zarparam da Baía Arcana. Começou com a extrema dificuldade que encontraram em levantar a âncora e continuou com ondas da altura de montanhas que encontraram em alto mar, primeiro dia. No segundo, houve chuva suficiente para encher todas as cavernas do mundo, e deixar metade da tripulação resfriada. Três deles tiveram febre depois disso. Dois morreram; os corpos pareciam congelados como se tivesse passado um dia na Terra do Gelo. Todos queriam a morte da garota pálida. Todos, exceto o capitão.

O comportamento da garota era, relativamente, livre de suspeita. Não falava, dormia, chorava nem comia (a não ser que se alimentasse de algum camundongo perdido à noite), ou dava sinais de haver usado o balde de madeira que era lhe deixado como urinol. Permanecia como se estivesse num transe profundo como o coração do oceano. Os olhos, tão pálidos quanto sua pele, presos num rosto que parecia ter sido esculpido pelas mãos do um hábil artesão, não expressavam nenhuma reação. Apenas uma vez o capitão surpreendera a garota quebrando o padrão. A vira observando o mar por uma escotilha. Ele a chamara mais de uma vez. Levou um susto ao vislumbrar um lampejo de luz azul no contorno da tatuagem na testa da garota quando ela se virou para ele e voltou à imobilidade de sempre.

E já fazia mais de um mês que estavam com a garota. Um ou outro marujo já tinha sugerido que estavam perdidos; que aquelas águas eram desconhecidas; que vira uma movimentação estranha no mar; que as constelações vistas à noite eram desconhecidas e formavam desenhos monstruosos. E todos pareciam concordar que apenas jogando no mar a garota – a quem chamavam de cria de bruxa – eles se livrariam da maldição e poderiam voltar ao Porto do Tridente e contar aquela história maldita encharcados de gim e rum.

Todos exceto o capitão.

Passara a observá-la por muito tempo.

Protegendo-a.

Prezando-a.

Decifrando-a... ou pelo menos tentando.

Perguntando-a o que ele deveria fazer para voltar para casa.

A garota não demonstrou nenhuma reação até completar o sexagésimo terceiro dia a bordo. A comida tornou-se tão escassa que eles se alimentavam dos ratos e camundongos do navio e do que conseguiam nas redes e anzóis: pescados minúsculos, doentes e deformados.

No dia em que a garota pálida finalmente falou, talvez já fizesse dois dias que o homem a quem todos no navio chamavam de capitão não ingeria nada além de água acumulada da chuva.

– Liberte-me, triste filho do mar. – Era uma voz cristalina, tão pura e inocente que feria seus tímpanos habituados à linguagem suja dos homens com quem vivia e da sua própria boca. Ele não a viu mexer os lábios, não a viu fazer nada além do nada costumeiro.

– O que preciso fazer, minha senhora? – ouviu sua voz e achou que soava como alguém que acabara de engolir um ouriço-do-mar vivo. Mas o que mais o assustou foi a delicadeza das palavras que usava. Nunca se imaginara usando expressões como minha senhora, aquilo era coisa dos nobres prepotentes, e certamente não eram palavras apropriadas para uma garota esquelética filha de um povo primitivo qualquer.

– Leve-me viva até o... convés.

– Só isso? Então era só isso o tempo todo? Por que não disse antes, minha senhora?

– Tenho falado desde o início, mas seus ouvidos só agora se abriram. Talvez tarde demais.

– E depois, o que vai acontecer? – O homem suava.

– Eu não sei. Não sou eu quem vai decidir.

– E os meus homens?

– Eles já receberam suas sentenças. Você receberá a sua em breve. No mais tardar, após o pôr da lua.

O capitão abriu a grade da jaula de ferro enferrujado onde mantinha a garota.

– Perdão, minha senhora. – Disse, e pegou-a nos braços.

No convés, banhado pela luz prateada de uma lua cheia estranhamente próxima, seis dos seus homens tentavam pescar, dois brigavam entre si enquanto outro os incitava, e cinco estavam caídos – adormecidos ou mortos. Apenas um prestou atenção quando o capitão surgiu sob a lua com o espólio da Baía Arcana nos braços.

– Afaste-se – O capitão apontou o sabre para o vassalo.

O marujo o fitava incrédulo.

– Graças aos céus e ao Grande Azul! O senhor recuperou o juízo, capitão! – gritou, erguendo as mãos, abrindo caminho para passagem do homem com a garota.

– E agora, o que eu faço? – Sussurrou o capitão para a garota.

– Espere. Ele está vindo. – Todos os pelos do seu corpo, até os que ainda iam nascer, se arrepiaram ao ouvir isso. Segundos depois o navio começou uma queda livre. No mesmo instante ele fincou a ponta do sabre no convés o mais forte que conseguiu e se aferrou à lâmina, vendo alguns dos seus homens caírem no mar.

No fim da queda uma imensa nuvem d'água cobriu a embarcação completamente, e levou a garota dos braços do homem. O navio começou a escalar uma nova onda, uma ainda maior que qualquer uma das que tinham visto no primeiro dia.

– Ele chegou. Obrigada. – O capitão ouviu a voz da garota pela última vez. Afrouxou as mãos do punho da espada, sentindo um enorme peso o deixar ao saber que ela estava segura. Um forte vento o arrancou do navio e o lançou no mar revolto. Ele já não lutava por sua vida.

Avistou uma luz azul cintilante crescendo em algum lugar naquela escura confusão aquática onde ele tentava desesperadamente respirar. À medida que a luz se espalhava seus sentidos recuavam. Lentamente foi entrando num sono reconfortante como há muito não provava.

Acordou tossindo e cuspindo água salgada, pela boca, olhos, ouvidos e nariz, ao som das ondas quebrando às suas costas. Estava numa praia deserta, que lhe era familiar de uma forma que não compreendia. Virou-se em direção ao mar e viu, parado sobre as águas, uma criatura equina que era feita de vento e água marinha, ambos sempre em movimento. Sobre o fantástico animal, estava a garota que momentos, ou dias, antes estivera em seus braços. Ela ergueu e balançou a mão para ele, num sutil sinal de adeus. Seus cabelos cobriam todo seu rosto, empurrados pelo vento.

O homem que fora um duro capitão de navio pirata repetiu inconscientemente o gesto, chorando como nunca havia feito na vida.

– Adeus, minha senhora. – Disse ele, entre um soluço e outro, certo de que, independentemente de onde estivesse, aquele seria seu último dia no mar.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 01/10/2015
Código do texto: T5401283
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