Darcy pain
Darcy Pain
Meu nome é Darcy. Darcy Jhonson . Aqui na área todo mundo me chama de Darcy J. É bom ter um nome. É bom ter um apelido. Assim eu me sinto mais normal. E pra me sentir mais normal ainda eu dou bom dia ao padeiro, tenho três minutos de conversa com o jornaleiro, pego ônibus na esquina e cedo o lugar para a senhora idosa que sobe no ônibus. Não é fácil se adaptar a esta vida. Mas é o mínimo que posso fazer para ter, pelo menos, esta vida . Ainda não tenho amigos, nem colegas , o processo é demorado e eu ainda nãos sei em quem devo confiar. Não tenho muita experiência para falar disso, mas sei que os humanos são muito instáveis e uma hora eles podem ser um ombro amigo e outra eles podem ser um colo mortal. Não que eu tenha medo, até porque, muitas vezes, eu fui mais mortal do que amigo. Também não digo isso pra que sintam medo ou pensem que sou algum tipo de psicopata transtornado que não teve infância feliz e desconta as amarguras da vida enterrando garrafas de vidro na cabeça de inocentes. Estou dizendo, apenas, que prefiro evitar novos constrangimentos, novas confusões, para que eu não seja mais a amargura da vida de ninguém. Resumindo, eu ainda sou uma ameaça para a segurança de toda a cidade até conseguir me controlar em toda e qualquer situação. O governo foi bem claro: Nós faremos nossa parte, faça a sua e tudo correrá bem. Eu poderia não ter cumprido minha parte, não tinha nada a perder mesmo. Quer dizer, quase nada.
Até os cinco anos de idade eu ainda era inocente. Tinha amigos, brincava, era adorado pela família, a coisa fofa dos avós. Mas de repente eu deixei de ser as últimas duas coisas. Mamãe ficou grávida, de uma menina. Por mais que eu ainda fosse muito pequeno para ter um sentimento ruim como a inveja, percebi que a chegada de uma irmãzinha iria afetar o meu mundo de filho único, neto único e sobrinho único. Também não pude deixar de transparecer esse sentimento, controlar minhas ansiedades, até porque, como eu já disse, era uma criança,normal. Minha mãe não notava essa minha angústia , estava feliz demais vendo a barriga crescer, papai comprando roupinhas, preparando o novo quarto e sempre dizendo que seria ótimo eu ter uma companhia. Tudo clichê. Eu não tinha curiosidade em nada, não queria saber dos chutes nem quanto tempo faltava para ela dar a luz. Mas infelizmente o dia chegou e eu não estava preparado. Quando mamãe voltou da maternidade e chegou em casa toda radiante fiquei me perguntando se comigo teria sido a mesma coisa. “Bobagem, com certeza tinha sido, eu fui o primeiro”.Resolvi parar com a insolência e dar um crédito pra “irmãzinha”. Ajudei minha mãe quando papai não estava, a gente não podia pagar uma empregada ou uma babá, então minha mãe tinha que se virar com as duas crianças.
Até pensei que tinha me acostumado, me adaptado com esse aumento de família. Mas logo começaram a aparecer os sintomas. Lizzy chorava, berrava,ás vezes,em minha opinião, parecia até teatro. Eu tinha a impressão que ela fazia isso de propósito, chamar a atenção, fazer todo mundo olhar para ela. Pode parecer loucura, mas quando eu olhava nos olhos dela eu via alguma coisa que me incomodava, como se pressentisse que ela tinha a intenção de me fazer mal. Só que eu estava completamente enganado e a intenção era reversa.
Num dia desses em que eu a encarava, minha mãe estava na cozinha preparando o mingau dela e nós dois estávamos na sala assistindo um desenho animado na TV . Eu estava tentando me concentrar no desenho enquanto ela ria às gargalhadas batendo com os brinquedos na mesa como toda criança tonta. Comecei a ficar inquieto, então pensei em chamar a minha mãe. Mas quando fiz o gesto na intenção de me levantar ela parou e olhou pra mim rindo. Eu estagnei e olhei nos olhos dela me convencendo de que ela havia parado. Então me sentei novamente. Mas mal me acomodei no sofá ela recomeçou o barulho. Fingi que ia me levantar de novo. Ela parou. Quando sentei ela recomeçou rindo mais ainda parecendo sarcástica. Aquilo foi a gota d’água . Impulsivamente, me dirigi até ela, segurei nos seus pequenos braços e comecei a sacudi-la olhando pra ela furioso:
- Pare já com isso! -disse entredentes.
Então senti algo revirando no meu cérebro como se milhares de fios estivessem se entrelaçando e formando nós firmes e depois se rompendo com bruta força, e essa força se intensificando à medida que eu sacudia a garota indefesa.
Foi quando tudo aconteceu e eu deixei de ser o pequeno Darcy.
Lizzy olhou para mim com espanto e depois começou a chorar com fortes soluços. Havia muito desespero naquele choro para ser apenas por causa do susto. Começou a ficar vermelha e gritava loucamente tentando pronunciar o nome “mamãe”. Levou as duas mãozinhas à cabeça e balbuciou algo como para.
Só nesse instante foi que percebi que ela sentia dores. E só nesse instante também foi que percebi minha mãe na soleira da porta olhando na minha direção, chocada, como se estivesse assistindo a um massacre. Como se não soubesse o que estava acontecendo, me dei conta de que ainda segurava os braços de Lizzy e ela ainda chorava convulsivamente. Soltei seus braços lentamente e me afastei do mesmo modo, tentando entender alguma coisa e ao mesmo tempo respirar. Minha mãe se aproximou depressa para pegar Lizzy no colo e levá-la para longe de mim.
Fiquei onde estava esperando a repreensão ou o castigo. Mas mamãe nem sequer me olhou ao passar por mim e levar Lizzy para o quarto. Minutos depois de perceber que o choro havia cessado e que talvez Lizzy estivesse dormindo, resolvi ir para o meu quarto. No caminho passei pelo quarto de meus pais e vi a porta entreaberta. Na tentativa de explicar o que tinha acontecido na sala tomei a iniciativa de falar com mamãe para que ela não dissesse nada ao meu pai. Só que chegando perto da porta ouvi uns soluços. Ao espiar pela abertura vi mamãe ao telefone, andando de um lado pra outro, nervosa, dizendo que era preciso tomar uma atitude, que “ele” não poderia mais permanecer ali e que ela não iria aguentar fazer “isso”. Depois colocou o telefone no gancho e se sentou. Foi dessa forma que eu a vi pela última vez.
No dia seguinte, quando acordei e desci para tomar café, meu pai estava na cozinha. Quando me viu ficou meio que nervoso e enrijeceu as mãos. Tentou disfarçar com um sorriso e disse:
-Hoje não tem escola Darcy. Vamos passearum pouco, nos divertir.
Eu perguntei, mesmo sabendo a resposta, se mamãe não iria.
-Não, ela irá ficar com Lizzy. – respondeu ele, cauteloso com as palavras.
Meu pai pegou o carro e começou a dirigir em direção ao Central Park . No caminho, silêncio. Do lado de fora, nuvens carregadas prestes a soltar uma bomba de água. Silêncio. Chegamos ao CP em poucos minutos e ele logo me levou ao vendedor de crepes. Comprou um pra mim e disse que não estava com muita vontade de comer crepe naquele dia. Começamos a andar, como de costume sempre que ele me levava ali. De repente papai parou e disse que tinha se esquecido de pegar o troco com o vendedor de crepes. Pediu que eu ficasse ali esperando até ele voltar. Lembro-me como se fosse hoje.
Depois de horas e horas parado, em pé e com fome – o crepe já havia acabado faz tempo – percebi o que havia acontecido. Não, eu não percebi que papai tinha me abandonado. Disso eu desconfiei desde o momento em que ele me chamou pra passear. O que eu percebi foi que elesnão me deram uma chance. Não me aceitaram, não tentaram sequer descobrir o que eu tinha. Simplesmente me deixaram.
Comecei a chorar, mas não um choro de criança. Foi um choro de raiva, de ódio. Nesse momento eu virei outro Darcy. Nesse momento as nuvens explodiram e eu fiquei carregado . Guardei o choro e ainda guardo. No começo foi difícil me controlar. Dar uma descarregada ás vezes me fazia bem , me deixava leve. Qualquer situação constrangedora e eu acionava aquela parte do meu cérebro, a mesma que acionei com Lizzy. Depois comecei a gostar de verdade desse “poder” e passei a treiná-lo. Foram anos de prática. Hoje posso concentrar a dor em uma pessoa onde eu quiser, dependendo da situação e da pessoa.
Resolvi dar uma de herói e usar o meu dom contra bandidagem. Sempre saio às ruas à procura de alguém em perigo ou algo do tipo . Mas não faço isso porque sou bonzinho ou porque estou querendo compensar algo. Já disse, não confio muito em pessoas normais. Faço isso porque nasci pra isso. Porque eu não me vinguei? Por que não usei meu poder contra as pessoas em vez de ajudá-las? Simples. De uma forma ou de outra o poder que eu tenho não favorece a ninguém, só faz mal. Eu posso causar dores intensas em várias pessoas ao mesmo tempo num raio de até cem quilômetros . Posso matar sem usar as mãos. Eu já sou praticamente uma máquina mortal. Pra quê eu iria prejudicar mais ainda as pessoas se elas já sentem dores por conta própria. Como eu disse no início, os humanos são muito instáveis. Podem se descontrolar a qualquer momento e cometer barbaridades uns com os outros. Isso porque eles não têm superpoderes. Mas criam armas para se destruírem e destruírem o próprio mundo. Se descobrem o que eu faço, nossa, não quero nem pensar. São capazes de me transformar numa superhipermega potente arma de dor movida por ondas. Algumas vezes eu deixei escapar e quase fui descoberto. Mas hoje, apenas o governo sabe dos meus truques . Como descobriram? Uma vez, quando voltava de uma festa – eu disse que estava tentando ser normal – acabei entrando numa rua escura, inóspita e totalmente desabitável. De longe avistei um movimento estranho, três pessoas que não pareciam conversar, muito menos se conhecer. Assalto. Já sabia o que eu devia fazer. Só restava saber quem era a vítima e quem era o ladrão. Tive que chegar bem perto.
- Aí parceiro, procura outra que essa aqui é nossa.
Não era assalto.
Como já tinha entendido, mirei nos dois caras. Todo aquele processo ocorreu, dos fios se esticando e dando nós com bruta força, até eu concentrar a dor entre as pernas dos caras. A mulher ficou olhando, chocada, vendo os dois homens se contorcerem e gemerem de dor. Depois olhou para mim mais chocada ainda e saiu correndo. Como estava escuro achei que ela não tivesse conseguido me ver direito. Mas aí, no dia seguinte, uns caras apareceram na minha porta dizendo que eram da segurança nacional e me levaram pra responder algumas perguntas, ridículas do tipo “Você é deste mundo?” ou “Usa algum equipamento avançado de terrorismo?”. Expliquei de forma prática o que eu era e o que eu fazia. Eles entenderam.
Enfim, feito o acordo, voltei para casa com a promessa de não machucar ninguémcom aquelas “aberrações” que eu fazia. No fundo, no fundo mesmo eles viram que eu poderia ser mais útil do que agradável. Eu ajudo a diminuir os crimes sem usar armas e não recebo nada por isso. O governo não ia desperdiçar essa chance de economizar. E agora eu tô por aqui, vivendo e tentando ser normal como um ser humano não é. Pode parecer babaquice da minha parte não ter pedido nada em troca ao governo, mas pensando bem eles já me deram muito: o sigilo. Prefiro que todo mundo saiba que eu sou apenas o Darcy Jhonson e não o Darcy J. omanpain. Mas se precisar de um remédio pra dor de cabeça eu tô aqui.