O menino Peixe

Aquela música e o cheiro da maresia me faziam ficar muito calma. Chegava a dormir ouvindo aquele som e deitada na areia alva da praia. As ondas estavam bravias naquela tarde e eu sabia que não havia como vê-lo. Fiquei ali por algumas horas e então voltei pra casa.

Meu irmão vinha todas as tardes para ver nosso pai e resolvi esperar por ele no banco do jardim. Estava morrendo de saudades dele. Fazia um ano que eu partira dali e desde então não nos tinhamos visto mais. Tobi era meu irmão gêmeo e eu tinha uma intimidade com ele que jamais teria com ninguém. A ele contava tudo o que acontecia comigo e foi por isso que eu parti. Não teria como não lhe contar aquilo. Não era um segredo meu. Eu não tinha direito de expor meu amigo e assim fui embora com a desculpa de que estaria trabalhando em um lugar muito especial que eu havia encontrado em Los Angeles.

Não era verdade. Eu estava ali bem perto. Mas não poderia vir aqui. Meu coração doía de saudades mas resolvi que ajudar o Sincler era mais importante que a saudades da minha família. Meu pai trabalhava na oficina mecânica em frente a nossa casa e tinha uma saúde de ferro. Ele arranjou uma namorada que cuidava muito bem dele. Nos dávamos muito bem mas preferi deixar os dois a vontade.

Tobi chegou mais tarde naquele dia. Já estava quase escurecendo. Gritei pra ele do jardim pois ele não havia me visto. Quando me viu correu até aqui e me abraçou dando um suspiro que veio do fundo da alma. Chegamos as lágrimas. Contou-me tudo o que havia feito naquele ano. Estava pra nascer seu primeiro filho e sua casa estava quase pronta. Fiquei orgulhosa dele.

Entramos em casa e nosso pai nos recebeu com um delicioso café. Minha madrasta estava viajando pra casa dos pais dela. Conversamos durante duas horas mais ou menos. Eu falei de mim. Contei do meu emprego na Marina e de quase tudo o que acontecia em minha vida. Perguntei do pai do Sincler e soube da sua morte e do desaparecimento do menino. Ninguém sabia dele.

A noite foi pequena pra descansar minha carcaça. Dormi como uma pedra e voltei ao mar assim que amanheceu. Sentei-me a beira da rocha maior e fiquei olhando pro mar. Bem longe avistei um vulto em cima de uma ilhota. Era ele. Acenou-me com as duas mãos e resolvi chegar a nado até lá. Estava com um maiô e assim foi fácil nadar. Era campeã de natação da escola e ainda estava em forma devido aos treinos que fazia na Marina.

Conversamos pouco devido as suas dificuldades com nossa língua. Disse-lhe que ninguém havia perguntado por ele e que seu pai adotivo havia morrido no decorrer daquele ano que estivemos fora daqui. Abracei o menino com carinho e ele retribuiu meu abraço. Estava bem forte e bem alimentado. Comecei a falar sozinha de tudo o que aconteceu. Era assim que ele queria. Só me pediu que eu lhe recordasse de vez em quando que um dia ele fora humano normal como eu. Fui contando resumidamente os fatos enquanto ele ouvia calado.

_"Era verão de 2012 quando Sincler e seu pai vieram morar em Vilemar. Aqui ele fez poucos amigos pois não sabia falar direito. Tinha 12 anos e por esse motivo era anormal ele estudar ainda no segundo ano. Ia a escola todos os dias mas não respondia nada que o professor perguntava. Resolvi fazer amizade com ele e descobri logo que ele falava comigo por telepatia. Isto era incrível e ficamos tão amigos que ele me mostrou uma coisa muito esquisita. Embaixo da camisa estava nascendo umas escamas em seu corpo. Achei aquilo estranho mas não ri e nem critiquei o menino. Eu era bem mais velha do que ele. Tinha dezoito anos e era secretária sênior da escola em que estudávamos. Fazia o quinto ano. Estava atrazada nos estudos pois não pude frequentar as aulas por alguns anos para cuidar da saúde de minha mãe... "

Parei de falar alguns minutos pois senti sua mão em meu braço. Ela estava completamente coberta por escamas agora, bem diferente da última vez que eu o vira. Com seu olhar e em pensamento me disse que era pra contar logo.

_Está certo: vou adiantar. "Expliquei ao menino que era esquisito sim mas que eu iria investigar aquilo. Fiz uma longa pesquisa e descobri que até os treze anos uma sereia pode ser humana mas que ao se aproximar os treze anos de idade ela ganharia uma cauda e teria que viver no mar. Consegui arrancar uma escama dele, apesasr de doer, e analisei no laboratório de ciências da escola. Era autêntica. Não havia dúvida era um menino peixe. Quando contei-lhe, chorou mas logo se consolou e me disse que sempre se sentira mesmo um peixe fora d'água. Na água ele era forte e fazia tudo o que queria. Mas em terra sentia-se cansado e fraco. E por vezes seu pai tinha que ajudá-lo a fazer pequenas coisas que um menino da sua idade achava fácil demais.

Passei a levá-lo ao mar para ele se acostumar a ficar mais tempo na água do que em terra. Seu pai logo ficou sabendo de tudo e disse a ele que o havia encontrado em alto mar, em cima de uma rocha, onde só uma sereia poderia tê-lo deixado. Assim ele realmente devia ser um menino peixe. Passou quase um ano e suas escamas se espalharam pelo corpo de forma que ele ia a escola com camisa de mangas compridas e luvas para escondê-las. Eu disse-lhe que era melhor não ser visto por ninguém para não ser alvo de curiosidades. Sincler nadava todos os dias por horas a fio e eu o ajudava a sair da água quando escurecia para voltar para casa.

Um dia ele não quis voltar pra casa mais. Fiz de tudo pra que ele voltasse, mas ele disse que o seu lugar era na água. Ao vê-lo mergulhar eu percebi que ele não tinha mais as pernas. Era uma linda cauda.

Na escola começaram a me perguntar por ele pois estávamos sempre juntos, mas eu não disse nada. Fingi que não sabia dele. A diretora me avisou que ele havia sumido e eu fui procurá-lo nos lugares em que ele mais ficava. Ele apareceu pra mim mas avisou que iria embora dali. Suas pernas haviam dado lugar a uma cauda e ele não poderia ficar em terra mais. Estava feliz e pude perceber que estava atrás da sua felicidade. Faziam seis meses que Sincler partira e li uma notícia num jornal que me preocupou muito. Haviam capturado um menino peixe na praia da largada e ele estava sendo cuidado na Marina. Para não ser obrigada a contar sobre ele que me pediu segredo, parti pra longe de casa e de minha família. Fui pedir emprego na Marina e me apresentei como especialista em alimentadora de peixes. Eles acharam boa a idéia mas me avisaram que não poderiam pagar muito. Aceitei assim mesmo só para ficar mais perto de Sincler pois fora ele mesmo que havia sido capturado. Perguntaram-me o que ele comia e eu disse que deixassem comigo. Fiz questão de alimenta-lo e ele se aproximou de mim, coisa que não fazia com ninguém e por isso ganhei um certo cartaz por lá.

Alimentava meu amigo todas as manhãs, meio dia e tarde com algas e peixes miúdos. O que eu comia dava pra ele também, pra ele lembrar do cardápio que perdera ao se ausentar de nós. Estudava todos os dias uma maneira de soltar meu amigo. Mas não poderia correr riscos. Convenci os cientistas da Marina que ele estava muito triste pois sentia saudades da família e poderia até morrer em breve. Resolvemos sair em expedição para o mar e assim tentar pegar outro ser parecido para trazer até ele. O navio era equipado com uma piscina especial que caberia até mais de um homem ou mulher peixe. Foi içado ao mar e logo estávamos em alto mar. A piscina seria abaixada ao mar sempre que quizéssemos. Paramos perto de uma ilhota que foi onde o pai dele havia encontrado o bebê. Mas eu não disse nada aos cientistas. Abaixamos a piscina e esperamos que a noite chegasse. A altas horas da noite convenci a todos a irem dormir que revezaria com eles na espera de outro homem ou mulher peixe. Assim ficamos sozinhos eu e Sincler, que se achava escondido dentro da piscina e avisado por mim, deu um lindo salto para a liberdade.

Antes de sumir mar a dentro, prometeu-me que todos os anos, no primeiro dia do verão, voltaria a prainha das rochas pra me ver. Pediu que eu lhe contasse sua história sempre que voltasse, pra ele não esquecer de nenhum detalhe.

_E assim, aqui estou eu, no segundo verão, a lhe contar outra vez essa estória meu amigo!"

Num sorrizo lindo meu amigo Sincler, o peixe mais camarada que eu conheço, disse-me do seu jeito enrolado:

_Obrigado! Adeus! e me dando um beijo no rosto, ele que estava deitado na rocha, saltou pra dentro do mar. Mergulhou até a cauda desaparecer.

Gritei para Sincler:

_ Pode deixar meu amigo, seu segredo estará guardado para sempre comigo. Ele voltou, deu um aceno e partiu. E eu fico aqui esperando até que algum dia ele volte pra eu lhe contar novamente a sua história.

E saltando na água, nadei até a praia, voltei pra casa pra me instalar no meu lar. Pois a Marina não me quer mais. Acho que eles desconfiam que fui eu quem soltei meu amigo, pois ao chegarmos lá ele não estava mais. Fiz cara de confusa mas fui demitida assim mesmo. Foi bom assim. Voltei pra cá e vou recomeçar minha vida do ponto de onde ela parou.

Nilma Rosa Lima
Enviado por Nilma Rosa Lima em 24/08/2015
Reeditado em 24/08/2015
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