856-MONTEIRO LOBATO E JECA TATU - 2a. parte

Na semana seguinte, Monteiro Lobato visitou Dona Benta. A idosa senhora, tão bem retratada nos livros que anos depois Lobato escreveria, vivia no Sitio do Pica-pau Amarelo, que fazia limite com a fazenda, separado apenas pelo córrego Tremembé, o qual dava nome à propriedade de Lobato.

A conversa foi dirigida para a família que Lobato encontrara há alguns dias.

— Já conheço o Jeca, Doutor Lobato. Estive certa vez na sua tapera. Fiquei com pena dele e da família. Levei-lhe roupas e uns cobertores, pois fazia muito frio na ocasião. Mas o senhor sabe como é: o que é dado não é valorizado. Acho que já acabou tudo.

— O homem é doente. Aquela lazeira não é normal.

— Ele é analfabeto e não acredita em remédios nem tratamento de saúde. Quando estive lá, ele me mostrou uma garrafa com um liquido escuro, com folhas, dizendo que era o fortificante “receitado” por Nhá Zica, uma curandeira que mora por aquelas bandas, naquele grotão esquisito.

— Já falei com meu amigo Doutor Astúrias, médico em Taubaté. Convidei-o para passar o próximo domingo aqui na fazenda e vou levá-lo até a “toca” de Jeca.

Depois de mais um dedo de prosa com a simpática senhora, Lobato despediu-se.

No caminho de volta à fazenda, montado em seu esperto manga-larga, foi ruminando a idéia de escrever um artigo para o jornal “O Estado de São Paulo”, ao qual enviava colaborações periódicas.

“Vou escrever sobre este caipira e sua “toca”.

O que fez tão logo chegou a casa-sede da Fazenda Tremembé.

Chegou o domingo e com ele, o doutor Astúrias, competente médico, clinico geral, como era a maioria dos médicos de então. Entre uma conversa e outra, Lobato falou do Jeca, e lá pelas três da tarde foram os dois rumo ao grotão. Lobato tinha bons cavalos na fazenda e mandou arriar os dois melhores.

A visão da tapera e a visita à família do Jeca impressionaram o médico, mais do que havia impressionado Lobato.

— Isto aqui é um criatório de bichos, tem tudo quanto é peste. Veja estas frestas nas paredes, é onde ficam os “barbeiros”. A família deve ter lombrigas e outras doenças.

E dirigindo-se ao Jeca:

— O senhor tem febre à tardinha?

—Febre?

—É, febre. Sente frio, tremuras, ao entardecer?

—Ah! Isso nóis sente sim. Eu, a minha muié Nica, inté as criança... Nois sente muito frio de tardezinha.

—É a febre amarela. A terçã, como se diz pior aí. — O medido explicou a Lobato. E perguntou ao Jeca:

— E nunca tomaram remédio contra a febre?

— Nois bebe um remédio di garrafa preparado pela Nhá Zica.

— Deixa ver. — pediu o médico.

Jeca foi entrou no outro cômodo da tapera e de lá trouxe uma garrafa que entregou ao médico.

— Olha só, Lobato, que porcaria. — Cochichou o medico, não querendo ser ouvido pelo morador da tapera. Agitando a garrafa, o liquido tornou-se turvo. Mesmo assim, Lobato viu folhas e pequenos frutos no interior do frasco. Tirou o pequeno pedaço de sabugo de milho que servia como rolha e cheirou.

—Arre! Que fedor?

O médico tampou a garrafa e devolveu ao Jeca.

— Seu Jeca, o senhor e a sua família estão proibidos de tomar esse remédio. Ele pode até matar as crianças. Vou lhe mandar outros remédios amanhã mesmo. O compadre Lobato aqui fica encarregado de entregar pro senhor e ensinar como tomar.

Saíram e montaram. Na volta, Lobato perguntou:

—Porque o compadre (era um tratamento de muita amizade entre eles) não despejou aquela poção fora ou jogou longe aquela garrafa?

—Calma, compadre. Esse povo da roça é muito sensível, Se gente trata mal, perde-se a confiança e depois, não se consegue fazer mais nada para ajudar. Uma proibição é coisa que o Jeca aceita. Depois, quando mandar os remédios, peço ao compadre para entregar e obter aquela garrafa em troca. Longe das vistas dele, pode fazer o que quiser com aquela droga. Além do mais, não quero fazer nada que possa causar a raiva da curandeira. Política de boa vizinhança, sabe como é?

Ao se despedirem, horas mais tarde, o médico disse:

— Amanhã mesmo mando os remédios para Jeca. Peço-lhe que entregue e explique como tomar. Serão uns três ou quatro. Se for possível, faça umas visitas de vez em quando para ver se eles estão tomando os medicamentos.

—Prometido! – Disse Lobato, no seu jeito afirmativo e forte de falar.

No dia seguinte, chegou um empregado do doutor com uma caixa cheia de frascos e caixas de remédios. Lobato vasculhou tudo e leu todas as bulas. Quando levou ao Jeca, já sabia como deveriam ser tomados, e deu todas as instruções ao caipira e sua mulher.

O Jeca ainda tinha um resquício de bom senso e a vontade de ter de volta a saúde fez com que ele prestasse atenção e procurasse entender tudo. A mulher também estava atenta e no final da explicação, disse:

—Vou fazer tudinho como o senhor tá mandando. Juro por Deus.

—Agora, quero lhe pedir aquela garrafa, para o médico estudar aquele “remédio”.

O Jeca entregou a garrafa que lobato colocou num embornal que dependurou na sela.

—Semana que vem eu volto para ver se está tudo bem. Se vão tomar os remédios dirietinho.

Montou, deu rédea ao animal e seguiu a trilha. Na primeira volta do caminho, longe da vista do Jeca, tomou a garrafa, esvaziou o conteúdo e lançou o frasco no meio do mato.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 2 de setembro de 2014.

Conto 856 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 20/08/2015
Reeditado em 20/08/2015
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