855-MONTEIRO LOBATO ENCONTRA JECA TATU -

— Você tem certeza de que vai tocar a Fazenda Buquira?

— Tanto quanto dois e dos são quatro.

— Trocar um lugar seguro na Justiça para se enfiar na fazenda?

José Bento havia comunicado à família a intenção de mudar-se para a Fazenda Buquira, que herdara do avô, Visconde de Tremembé.

— E a literatura, sua coluna no jornal?

O diálogo acontecia entre Monteiro Lobato, Purezinha, sua mulher, e o cunhado. Ninguém acreditava que o doutor Monteiro Lobato estivesse disposto a abandonar o cargo de promotor público de Areias para se tornar fazendeiro.

Mas ele estava decidido. E entusiasmado

— É no campo que teremos de procurar a redenção do Brasil.

— Olha que são quase dois mil alqueires de terra! — O cunhado apresenta mais objeções. — E você não tem experiência nenhuma de tocar fazenda.

Nenhum argumento afastou Monteiro Lobato de seu desiderato. Em poucas semanas, assumiu a posse da imensa fazenda, transferindo-se para lá com a mulher, Purezinha e os dois filhos pequenos, Marta, com dois anos, e Edgar, com onze meses.

A mudança aconteceu em 1911. Era um fazendão: do avô herdara 1515 alqueires e do espólio paterno, mais 400 e poucos alqueires, No total, cerca de 2000 alqueires.

Cafezais em decadência — e o café era o que mantinha a fazenda — e pouco gado nas pastagens a perder de vista. Um casa-sede antiga, precisando de urgentes reformas, cercas por fazer. Dezenas de casas de colonos espalhadas por toda a propriedade, habitadas por empregados, que trabalhavam nos cafezais sob diversos arranjos: meeiros, empreiteiros, colonos. Em um país onde quase setenta por cento da população vivia em área rural, a lavoura e a pecuária eram a sustentação da economia nacional.

Uma das primeiras providências de Monteiro Lobato foi conhecer o pessoal de que dispunha. Visitou todos os empregados na fazenda. Encontrou famílias pobres, que tiravam da terra o sustento para o dia a dia em pequenas roças de arroz, milho e feijão. Roupas quase trapos. Descalços. Sem ânimo para qualquer coisa, principalmente para o trabalho.

Sentiu em poucas semanas que não seria nada fácil transformar a fazenda colonial em estabelecimento lucrativo e com perspectivas de progresso, como tinha certeza fazer.

Explorando a cavalo os limites da propriedade, chegou a uma grota sombria, onde havia uma casinha de pau-a-pique, coberta com folhas de palmeiras. Não viu ninguém pelo lado de fora.

“Parece abandonada”, pensou. Sem descer do cavalo, bateu palmas e gritou:

—Õ de casa!

Na escuridão do interior viu, mal iluminado pelas réstias de sol que passavam por entre as folhas de indaiá, um movimento. Lentamente, assomou a figura de um velho, mal vestido, chapéu de palha na cabeça, descalço e dando a mão a um garoto de três ou quatro anos.

— Ô de fora! — falou em voz fraca o morador da tapera. — Vamo apeá, seu dotô. Entra pro mode iscapá do sor quente.

Lobato desceu da montaria, amarrando a rédea num toco seco. Adiantou-se e ofereceu a mão ao homem.

Apertaram-se as mãos. Lobato sentiu pelo toque fraco e desanimado, que estava defronte a o típico morador do interior, do trabalhador rural que habitava os sertões do Brasil. Só que muito mais atrasado de quantos já conhecia. “Mais preguiçoso”, pensou.

Abaixou a cabeça para passar pela abertura que nem porta tinha. Ao se acostumar com o escuro do local, percebeu que o cômodo era a cozinha, pelo fogão rústico de lenha e por troncos de árvores cortados em pequenos toros que serviam de bancos. Uma porta abria para outro cômodo e outra, para os fundos, que seria o quintal

Uma mulher mexia uma panela no fogo. Mais duas crianças, além da que se mantinha segura na mão do homem, brincavam no chão, seminuas, espojando-se na poeira do piso de terra batida.

O fazendeiro sentiu uma imensa compaixão pela família. Ao mesmo tempo em que a associava ao grupo familiar dos tempos das cavernas.

“Que miséria!”, pensou.

— Num repare não, sem moço. A Nica ta fazendo uma comidinha, se o sinhor aceitá...

— Não, não, muito obrigado. Estava só passando, até pensei que não tinha ninguém morando aqui.

— Agente mora aqui de favor... A terra é do visconde... Di veis in quando trabaio pra ele, quando dá...

O homem falava baixo, revelando sua fraqueza até na emissão da voz. Arrastando as frases, que deixava sem terminar, emendando com intervalos de lassidão ou de cansaço. Lobato então viu que era agora patrão daquele trabalhador. Disse:

— Sou neto do visconde. Ele morreu. Agora sou o dono desta terra.

O homem olhou com olhar entre assustado e surpreso.

— Intão o sinhor veio prá me mandar imbora?

Lobato sentiu o medo nas palavras do caipira.

—Não, não. Estou só vendo a propriedade. Meu nome é Lobato. Como é o seu nome?

— Zeca... José da Silva... Mais todo mundo me chama de Jeca.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 1 de setembro de 2014

Conto 855 da série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/08/2015
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