O Fusca 63

Longa Vista, Recife, 1993.

Era madrugada e o céu estava nublado. Lâmpadas fluorescentes nos postes da rua iluminavam pequenos pontos do quintal – mas o resto permanecia em escuridão. Uma coruja branca cantou uma nota melancólica ao sobrevoar o terreno e fez o coração do garoto ir bater na garganta. Quis voltar para o quarto, para o calor do seu cobertor verde com desenhos espaciais infantis, mas se lembrou da Lagarta Feliz e da alegria profunda que sentia quando estava nela junto com as outras crianças... então continuou.

Apertou a chave no bolso por cima do tecido da bermuda, sentindo um calafrio, e caminhou pelo quintal lembrando-se da última conversa que tivera com seu amigo, Guga, um Fusca branco, cujo capô e portas ostentavam o número

63,

branco, no centro de um círculo preto.

– Eu não acredito, Guga! – Dissera o garoto, sorrindo abertamente, na manhã do dia anterior. – Mas nem o papai sabe!

– Existem muitas coisas que o papai não sabe, não é, Gui? Veja, ele não sabe das nossas conversas, sabe?

O garoto, sentado no banco do motorista do carro, descruzou as pernas e segurou o volante carcomido como se o acariciasse.

– Eu já falei pra ele, Guguinha, mas ele pensa que é brincadeira. Nem mamãe acredita.

– Tá vendo só, meu querido? Existem infinitas coisas que o papai não sabe. Ele também não acredita nos seus sonhos, não é mesmo?

– Bem... – o garoto suspirou – acreditar, ele acredita... mas diz que não são reais... diz que são coisas da minha cabecinha oca. Que não existe nenhum Parque da Lagarta Feliz. Não de verdade, só nos sonhos, só aqui dentro... – O garoto apontou diversas vezes para a própria cabeça, num gesto exagerado.

– Mas você sabe que existe, Gui, você viu... você vê, Gui, não vê?

– Sim... você sabe, Guga. Vou a muitos lugares quando estou dormindo, mas, às vezes, acho que o papai tem razão, são só sonhos bobos...

– Não, meu doce. Você até disse que sabia o caminh...

– Eu disse que aaacho... Acho que sei. Tem um pátio. Um pátio enorme, grandão mesmo, cheio de carros novos e bonitos. E há uma placa com uma palavra escrita... nunca me lembro qual palavra é quando acordo, mas sempre que a vejo percebo que já sabia. Está de noite, mas o pátio tem muitos postes que refletem uma luz branca bonita sobre um montão de carros..., e depois vem a área escura. Eu não lembro muito bem do que tem nela, só de umas luzes coloridas, uma neblina espalhada por todo lugar...e eu sinto um pouco de...

– Depois vem o parque.

– É! O melhor parque de todos! Com um montão de crianças, todas tão felizes quanto eu fico lá... e tem a Lagarta! Amarela e preta, dentuça, com um sorriso do tamanho do mundo.

– E ela fala?

– Sim... quer dizer... não exatamente. Fala como você, Guguinha. Ouço a voz na minha cabeça, mas a boca não se meche como a minha. Ela fica só sorrindo com aqueles lábios vermelhos e os dois dentes enormes.

– E tem sorvete, algodão- doce, pipoca amanteigada, picolé de limão, maçã do amor e os melhores brinquedos que se possa imaginar, né não, Gui?

– Os melhores! E a gente come tudo e anda nos brinquedos o tempo todo! Viva! – O garoto ergueu os braços, formando um grande V.

– Mas o melhor é a Lagarta Feliz, não é?

– Sim! Ela anda pelo parque inteiro, uma montanha russa gigante que sobe, desce e faz curvas o tempo todo. Sempre damos tchau para as pessoas que estão na roda gigante. Tão felizes. Essa é a melhor parte... – O garoto suspirou mais uma vez.

– Olha, Gui, você sabe que eu te amo, e sou teu melhor amigo, não é? Mas eu já conheci outras crianças antes...

– Mesmo? – Os olhos do garoto se iluminaram.

– Sim. Seu amigo tem girado suas rodinhas por aí desde o ano 1963 desta era, deste mundo, desta... enfim, um ano que nem deve parecer real para você, que nem sonhava em nascer. Mas eu já estava por aí e levei muitas crianças para... para o Parque da Lagarta Feliz.

– Então você pode levar a gente, Guguinha? Ah... mas o papai diz que...

– Seu pai não sabe de absolutamente NADA! – Os limpadores de para-brisa do carro começaram a se mover, raspando a poeira velha do vidro numa velocidade crescente.

– Desculpa, Guguinha, desculpa, Guguinha, me desculpa... – O garoto repetia as desculpas baixinho, abraçado ao volante do Fusca, de olhos fechados.

– Eu sei que ele acha que estou velho e que não sirvo para nada além de me desintegrar neste maldito quintal, mas ele não sabe QUEM EU SOU! – A voz era fria e rouca como uma serra enferrujada.

– Ele diz que você é só um carro, mas...

– Está vendo? Eu sou só um carro, Gui? – A velocidade dos limpadores foi diminuindo aos poucos.

– Não, você é meu amigo... você é especial.

– Exatamente, Gui. Por isso mesmo é que eu conheço lugares incríveis... e posso levar meus amigos até eles, claro. Porque eu sou muito bonzinho, não acha? Sou um carro muito bom.

O garoto abriu o sorriso, exibindo dentes irregulares.

– Que maravilha, Guguinha! Vai ser maravilhoso. Vou mostrar meus amigos, o carrossel, a Lagar...

– Mostrar a mim, Gui?

– Claro... e ao papai e a mamãe. Finalmente eles vão acreditar! – Os olhos do garoto brilhavam como duas estrelas recém-nascidas.

– Gui.

– Oi, Guguinha. – O garoto batia palmas.

– Eu disse que podia levar meus amigos, meus amigos, aos lugares especiais.

– Mas...

– Seu pai é meu amigo? Ele sabe quem eu sou? Ele pergunta como estou, ou ao menos passa um pano em minha lataria para remover essa maldita poeira, de vez em quando?

– Ele é muito ocupado, você sabe...

– Ah, mas para o carrinho novo ele tem tempo, não é? E sua mãe?

– Ela gosta de você, diz que foi um bom carro...

Os limpadores para-brisas voltaram a se mover, agora ainda mais rápidos que antes.

– Fui?! Quer dizer que não sou mais! Deixei de existir só porque estou abandonado neste maldito quintal nesse bairro nojento... Longa Vista! Daqui eu não vejo é nada!E faz anos que não vejo nem a minha chave! Ah! Como sinto falta dela!

– Desculpa, Gu...

– Chega disso! Estou farto! Vamos fazer um trato.

– Tá...

– Você vai procurar onde seu pai guarda as chaves dos carros... dos carros que ele não usa mais... e vai trazer para mim aqui. Em troca, levo você, você!, ao parque da Lagarta Feliz para brincar o quanto quiser e comer quantas maçãs do amor puder. O que me diz?

O menino já não sorria.

– Só nós dois?

– Claro, seus amigos não estão lá?

– Mas meus pais não vão deixar, Gu...

– Gui, Gui... Guizinho, meu amor... Eles. Não. Vão. Saber!

– Mas...

– Você quer ir ou não quer? Quer continuar sonhando com a Lagarta e algodão-doce e depois tendo que acordar para ir para aquele colégio chato onde ninguém gosta de você? Acorde! Se decida!

– É que...

– Tudo bem, eu entendo, retiro a oferta. Saia e feche a porta. Feche a maldita porta. E não conversaremos novamente.

Os olhos do garoto se perdiam em lágrimas.

– Não Guguinha, por favor – soluçava – você é meu amigo, meu amigo...

– Só seu amigo?

– O melhor – soluçou –, o melhor amigo!

– Então devia confiar em mim.

– Mas eu confio!

– Então faça como eu disse! Vamos juntos para o Parque da Lagarta Feliz, e eu duvido que você venha a chorar novamente como está chorando agora. Não vai chorar nunca mais.

– E meus... tá... tudo bem. – O garoto enxugava os olhos com as costas das mãos.

– Traga a chave para mim. Pode ser que ela ainda esteja presa no chaveiro da Pepsi. Descubra onde seu pai o guarda e venha. Então vamos passear.

– Sei onde ficam as chaves velhas. Vou trazer pra você, Guguinha.

– Agora não. Agora sua mãe está em casa, e tem muita gente na rua. Terá que ser de madrugada, quando estiverem dormindo. Você vem mais cedo e deixa o cadeado do portão aberto. Depois, quando todos estiverem dormindo, pegue a minha chave e venha até aqui. Vamos dar uma voltinha.

– Tá certo... combi-combinado...

– Não vá falhar comigo, Gui.

– Não, Guguinha, pode confiar. – O garoto deixou o assento do carro e fechou a porta com delicadeza.

– E, Gui, lembre-se: Eles. Não. Vão. Saber.

O garoto partiu aos saltos, com um sorriso no rosto que ele imaginava ser do tamanho do da Lagarta Feliz do parque dos seus sonhos.

Mas agora, à noite, a ideia não parecia ser tão boa assim. Cada passo dado no quintal emitia um som dez vezes mais alto que o esperado. Lutou, com o coração batendo na garganta, para fazer o máximo de silêncio possível até se aproximar do fusca. Um dos postes da rua lançava um feixe de luz fluorescente na porta do carro, destacando o número 63. Pôs a mão na maçaneta e a retirou subitamente com um grito, sentindo um arrepio que foi da mão até sua espinha e se espalhou pelo corpo inteiro. O metal estava frio como gelo.

– Gu... – Começou ele. Então ouviu um clique e viu a porta se abrir lentamente.

– Sabe, Guguinha...

– Vai ficar tudo bem, meu amor... Trouxe a chave?

– Tá... Tá aqui... – Ele ergueu o chaveiro da Pepsi, com uma chave de carro velha.

– Então vamos logo. Temos que ser rápidos. Vamos que vamos!

O garoto entrou, sentindo-se confortavelmente aquecido, e lançou um olhar para a casa onde vivera toda sua vida acordado.

– Papai, mamãe... me desculpem. – Falou baixinho.

– Vamos lá, Gui, se anime! Essa noite será i-nes-que-cí-vel!

O garoto notou a mudança no tom de voz do amigo. Parecia agora um apresentador de programa de auditório. Lembrou-se do parque, dos brinquedos, da lagarta... e dos amigos, tantos deles, todos tão felizes...

Enxugou os olhos com a mão e sorriu. Girou a chave na ignição e tomou um susto quando o câmbio de marcha se moveu sozinho, engatando a ré, enquanto o motor do carro emitia um som que lhe parecia um dragão engasgado, intercalados com estouros estridentes.

– Ai, meu Deus, meu Deus... – O garoto repetia, segurando firme no banco do carro.

Guga arrancou, cantando pneu, levantando uma imensa nuvem de poeira, e esbarrando de raspão em pelo menos três carros – um deles ficou cego de um olho com o impacto. O portão, que fora deixado sem cadeado, apenas com uma grande corrente enrolada, se abriu instantaneamente com a batida do carro, dando passagem para o fusca ganhar o mundo.

– Estou livre! Finalmente livre! Posso ir para casa, finalmente! – Guga gritava eufórico.

O garoto também gritava:

– Vamos voltar, Guguinha! Vamos voltar! – Chorando, aferrando-se ao banco rasgado do carro.

Então o rádio do carro ligou. Estranhamente sintonizado na frequência 63.93, reproduzia em alto volume uma das canções favoritas do garoto.

"Super fantástico amigo

Que bom estar contigo

No nosso balão!"

A medida que a música prosseguia, o garoto ia parando de gritar, e começava a sorrir. Quando veio o refrão, ele já cantava alegremente, a plenos pulmões:

"Super fantástico!

No Balão Mágico

O mundo fica bem mais divertido!"

Então o carro prosseguiu através da noite pelas ruas de Longa Vista até a Avenida Recife.

– Tá perto? – Perguntou o garoto, quando a música acabou e o rádio se apagou como se nunca houvesse ligado.

– Vamos abastecer primeiro, porque a gasolina que você me deu de beber semana passada já está quase acabando.

– Mas eu não tenho dinheiro, Guguinha...

– E quem disse que precisamos disso?

– Quero ouvir outra música...

– Se você se comportar, terá mais...

– Mas...

Então o carro acelerou em direção a um posto Shell, que estava fechado àquela hora, esbarrando na corrente de proteção. Um dos pinos de ferro que segurava a corrente foi arrancado do chão e voou direto no vidro do lado do garoto. Os estilhaços voaram sobre ele e o banco do passageiro.

– Desce logo antes que alguém nos veja! – Me abasteça como você já viu os homens fazendo.

Com a adrenalina a mil, o garoto desceu do carro e quase começou a correr, no mesmo instante começou a chover. Ele se voltou para o carro.

– Continue! É só água!

O garoto viu que a pistola da bomba de gasolina estava numa altura que ele não iria alcançar. Arrastou um caixote de madeira que estava sobre um monte de lixo, afastado. No caixote, velho, mas inteiro, estava gravada um elipse com as palavras REDE FERROVIÁRIA escritas em cima, DO NORDESTE, escrito embaixo, e o número 63, maior, no centro.

O garoto não ligou para aquilo. Correu com o caixote para bomba, subiu em cima dele e retirou a pistola de abastecimento.

– Rápido, Gui, rápido! – Apressou Guga.

Pouco depois ouviram as sirenes.

– Chega, chega! Entre no carro, a polícia tá vindo, vamos Gui!

O garoto deixou a pistola de combustível cair e voltou esbaforido para dentro do carro.

– Pé na estrada! – Guga gritou e saiu cantando pneu com os limpadores de para-brisa limpando água e poeira acumulada por anos no vidro.

– Estamos chegando? – Perguntou o menino.

– Quase. O portal fica numa rua sem saída, mas se formos pegos nunca chegaremos ao parque.

Guga acelerou, abafando o ruído das sirenes com o ronco do motor. A perseguição durou por cerca de uma hora, mas o fusca não reduzia nas curvas, invadia as calçadas, furava os sinais vermelhos, e atropelaria qualquer animal que resolvesse aparecer na frente sem pestanejar – como de fato aconteceu com um gato que voltava de um namoro noturno e foi dividido em dois pelo pneu do fusca 63. O garoto só ouviu a pancada e viu sangue espirrar sobre o para-brisa, sendo lavado em seguida pela água da forte chuva que caia. O gato, que pertencia a dois meninos e se chamava King, jamais voltaria para casa.

– Após essa curva, próxima parada: Parque da Lagarta Feliz! – Disse Guga, finalmente. Então ele fez uma curva fechada, invadindo a calçada e derrubando dois baldes cheios de lixo e com duas ratazanas que fugiram aturdidas. No fim daquela rua havia um muro alto, velho, cheio de lodo e pichações. Não parecia um portal aos olhos do garoto. Uma das pichações dizia:

"Num precisa parar o trem não, é só sair quebrando os vagão."

Em grandes letras tortas e relaxadas. Um 63 pintado em preto e amarelo estava coberto por um X em tinta spray vermelha. Abaixo havia o número 93 pichado da mesma cor.

A ansiedade era visível nos olhos do garoto que trincava os dentes fitando o muro a sua frente. As viaturas estavam tão próximas que ele podia ver as luzes azuis e vermelhas refletindo no retrovisor.

– Chegou a hora! Chegou a hora! Conseguimos, Gui! Conseguimos!

Cada vez mais perto, cada vez mais perto... Muito, muito perto e... um flash.

Lá estava um pátio enorme, repleto de carros novos. As luzes fluorescentes acendiam cada um deles como se estivessem imbuídos de uma energia sagrada. Cada carro parecia a coisa mais bela que o garoto já tinha visto na vida. Cada contorno, cada peça milimetricamente projetada para encaixar-se com perfeição no projeto maior. Cada farol era como os olhos dos apaixonados. Cada para-choque, uma testemunha da organização e do amor que havia na criação, em todas as criaturas e coisas que pudessem existir em qualquer um dos universos. O garoto caminhava entre eles extasiado.

Antes, quando acordado, não conseguia se lembrar de todos os detalhes do sonho, mas agora tudo fazia sentido. Deveria cruzar o pátio dos carros novos, deixar para trás toda sua luz fluorescente e beleza. Deveria prosseguir até a área escura se desejasse mesmo chegar ao parque, deveria cruzar a área escura. Começou a correr e percebeu que o fazia como nunca antes. Não se cansava, nenhuma matéria que copunha seu corpo parecia sujeita à gravidade. Corria livre, com um enorme sorriso, vendo os carros à sua volta passarem belos e iluminados. Aquilo durou por um tempo paradoxalmente longo e breve. Como se toda uma eternidade passasse em segundos diante dele.

Então chegou a área escura e sentiu como se anos, ou décadas, tivessem passado, apesar de ainda ser o mesmo garoto com a mesma idade. Não se via nada além da neblina. O frio era tão forte que ele quase recuou automaticamente para o pátio dos carros novos. Mas lembrou-se dos amigos que o esperavam no parque da lagarta, então seguiu em frente.

O caminho começou a ficar cada vez mais íngreme. Cada passo que dava era mais difícil que o anterior e a temperatura ficava ainda mais baixa. Finalmente chegou ao topo do que parecia um grande monte que se erguia acima da neblina. De lá ele viu, distante, à frente, o Parque da Lagarta Feliz, com os infinitos e sinuosos trilhos vermelhos por onde a lagarta trenó levava as crianças mais felizes que já encontrara, com o maior dos sorrisos estampado no rosto. Cada um de seus olhos verteu uma lágrima mais carregada de emoção que qualquer uma já vertida. O garoto começou a descer a colina, correndo e sorrindo, sorrindo e correndo ainda mais rápido. No meio da descida lembrou-se de Guga, com o susto, perdeu o controle das pernas que corriam cada vez mais rápido e acabou tropeçando e caindo de barriga no chão... Suportou a dor sem chorar graças a certeza de que em breve estaria no parque.

Levantou-se, limpando a sujeira da sua camisa do Mickey.

O amigo não era criança e saberia se virar sozinho, talvez até já estivesse lá esperando por ele.

– Me espere, Guguinha, não vá começar a brincar sem mim...

Inúmeros pontos de luz acenderam-se subitamente à sua frente. Azuis e vermelhas, as luzes pareciam emoldurar uma grande máquina. Poderia ser uma espécie de retroescavadeira, ou um grande robô, não conseguia discernir a forma entre feixes de luz colorida e neblina.

A coisa se movia resoluta em sua direção.

– Corra, Gui, fuja! – Falou a voz de Guga, pela primeira vez desde que estava ali, mas ele não estava visível em nenhuma parte.

– Guga, é você? – Gritou o garoto, começando a correr de volta, colina acima.

– Você está quase conseguindo, não desista Gui, não desista!

Mas subir a colina, diferentemente de como era no pátio dos carros novos, era um desafio grande demais para suas pernas pequeninas. E a coisa se movia rápido. Tudo em sua volta estava inundado pelas luzes vermelhas e azuis que não paravam de se mover. Uma espécie de pinça mecânica o segurou pela cintura.

– Socorro, Guguinha! Socorro! – Gritou o garoto começando a chorar.

Então ouviu o estralo, e soube, pela dor lacerante, que algo importante dentro de si estava quebrado. As luzes vermelhas e azuis se intensificaram até que sua vista escureceu. Sentiu-se numa viagem, através de um longo túnel escuro sem nenhuma luz no final, durante a qual tinha alguns lampejos de consciência.

As luzes continuavam piscando.

Pessoas o retiravam do meio de ferros retorcidos.

Gritos.

Choro.

Cheiro de gasolina.

Desespero.

"Ainda bem que o motor não é na frente...".

A porta do Guga retorcida, luzes vermelhas e azuis refletiam nas gotas de chuva que a cobriam, focada como num super zoom.

Uma maca.

A voz de sua mãe.

O choro dela.

A dor.

Então o confortável nada.

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No dia seguinte, a suspeita de sequestro do garoto Guilherme Batista Moreira, que resultou na colisão com o muro de um terreno baldio da Rua Rocha Pombo, no bairro da Estância, foi uma das notícias mais comentadas no noticiário local. Perguntas como: por que roubar um carro velho quando havia um novo no quintal? E como o sequestrador escapou ileso de uma colisão que transformou o fusca numa bola de ferro retorcido? Aliás, quem foi o sequestrador, para começo de conversa? O fato é que o garoto jamais poderia ter dirigido o automóvel, seus pés não alcançavam se quer os pedais... mesmo ele tendo sido encontrado no banco do motorista.

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39 dias após sua viagem noturna, Guilherme finalmente teve alta do Hospital da Restauração, para onde fora levado após o acidente e onde permanecera em coma por nove dias. Seu pai está no banco da frente do carro, um táxi, comentando o último jogo do Sport com o motorista, e sua mãe, ao seu lado no banco de trás, parece estar no meio de um dilema sobre como expressar o quanto está feliz em seu filho estar voltando para casa. Num momento abre a boca como se fosse dizer algo... então se cala. Noutro, se aproxima como se fosse fazer algum carinho no menino... então recua. O garoto apenas observa as folhas nos galhos das árvores à beira da estrada passando através da janela traseira. Seus olhos parecem perdidos. A mãe diz, finalmente:

– Fiz batata frita para o almoço. – E faz um breve cafuné no filho. Ele parece não notar.

Quando o táxi entra no quintal da casa de Guilherme, a primeira coisa que ele faz é procurar por Guga, fitando o local onde ele sempre estivera. O fusca, claro, não está lá, assim como o carro novo do seu pai, o que tanto causara ciúmes a Guga, também não estava. Só as velharias caindo aos pedaços ainda permanecem no quintal que mais parece um ferro velho.

O carro estaciona próximo à entrada da casa. O motorista e o pai desembarcam. A mãe parece ainda não ter percebido que chegaram em casa. Com a cabeça baixa, enxuga os olhos e soluça. Guilherme ainda olha pela janela para o lugar onde antes esteve seu amigo. A porta do seu lado se abre e seu pai se curva para pegá-lo nos braços. Nenhum dos dois diz nada.

Seu pai, com uma mão, empurra uma cadeira de rodas que viera no porta-malas do carro. No outro braço carrega o filho. A mãe vem logo atrás, ainda soluçando. O motorista murmura um "obrigado", e dá partida no motor do Gol. Não há resposta. Ele dirige devagar em direção à saída da propriedade.

O pai coloca a cadeira de rodas no terraço... então pousa o filho gentilmente sobre ela. Sem dizer uma palavra, ergue-se e encara a esposa, como se esperasse encontrar nela o que dizer. Ela abafa uma crise de choro e entra em casa, quase correndo.

Quem quebra o silêncio é o garoto.

– O que foi, papai?

– Nada. Nada não. – O pai apressa-se em responder.

– Gostei dela. – Diz o menino. – Confortável que nem o Gu...

O pai fecha a grade do terraço. E começa a empurrar a cadeira de rodas com o filho para dentro.

O garoto observa uma numeração gravada do lado de dentro do apoiador de braço da cadeira de rodas:

3.69.36.3

– O que é esse número, Papai?

– O quê? Ah... é só o número de série.

O garoto, com os olhos agora mais presentes e úmidos, passa o dedo lentamente por cima dos números e murmura:

– Me espera, Guguinha. Me espera.

Davyson F Santos
Enviado por Davyson F Santos em 10/08/2015
Código do texto: T5341171
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